15 de março de 2015, uma genealogia
(Postado no facebook em 15 de março de 2015)
Luiz Eduardo Soares
Milhares de pessoas nas ruas. Vozes em protestos se misturam a brados nas redes, sussurros em gabinetes, bate-bocas em reuniões apressadas e nervosas. Zoeira babélica frita mentes zen. Momento extraordinariamente rico para o país e para a reflexão. Tudo o que é rico é arriscado: o futuro se liberta da previsibilidade que domestica a liberdade da ação humana. Incerteza é o outro lado da criatividade, da potência coletiva. Bem-vindo o risco, bem-vinda a indeterminação, bem-vinda a política.
Momento precioso para quem ainda dispõe de alguma reserva de serenidade e respeito pelo Outro: plural, diverso, contraditório, polifônico. Interpretações dissonantes buscam eixo imantado que atraia os pedaços de significação e formate núcleos discursivos inteligíveis, consistentes e persuasivos. A única certeza que tenho: qualquer definição unilateral, unidimensional do que está acontecendo será reducionista. Portanto, tanto a exaltação, quanto a condenação se equivocariam, uma vez que só se sustentariam se imputassem aos fenômenos em curso um sentido único. Isso também implica o reconhecimento de que parte das críticas estará correta, dado o ambiente heterogêneo. Haverá cartazes evocando palavras de ordem de ultra-direita, defendendo, por exemplo, golpe militar. Mas seria um erro deduzir que as manifestações a isso se resumem. Haverá cenas de preconceito de classe, gestos elitistas, rompantes ressentidos, reações grosseiras a conquistas sociais. Mas seria equivocado reduzir a esses espasmos reacionários a energia multitudinária. Afinal, também estão nas ruas bandeiras universalistas democráticas, a começar pelo repúdio à corrupção, que já foi foco de manifestações lideradas pelo próprio PT no passado. Negar a infiltração epidêmica da corrupção no aparelho de Estado, ironizá-la como se fora mera preocupação pequeno-burguesa, dividir responsabilidades com o conjunto do universo político –afinal, “todos são iguais”, o que esperar do “cretinismo parlamentar”?–, atribuí-la ao sistema econômico –“o capitalismo é intrinsecamente corrupto”–, nenhum desses tratamentos seria aceitável para o PT da origem, nenhuma dessas formas de subestimação é compatível com qualquer definição elementar de República.
Por outro lado, também seria ingênuo subestimar os acenos regressivos e obscurantistas, presentes nas cenas do dia 15 de março. O sopão babélico das ruas exala perfume democrático e o azedume venenoso das mais sombrias e perversas fantasias. Por isso, a disputa desloca-se das ruas para as salas de edição da grande mídia, para as oficinas dos experts e para os gabinetes políticos. Tudo isso será o que se disser que foi. Os efeitos não dependerão do fenômeno, mas de suas leituras. E o jogo aí será pesado. Entretanto, restará a quem ainda ousa pensar o espaço para a reflexão. Minha modesta contribuição não servirá à guerra de interpretações. Espero que sirva ao diálogo paciente e aberto entre os que procuram compreender. Até para que, baixada a poeira, liquefeitos os fogos de artifício partidários, silenciados os dós de peito retóricos, o ativismo cidadão comece a construir caminhos que conduzam a mais democracia, mais participação, mais respeito à diversidade, menos desigualdades, menos violência, menos racismo, misoginia e homofobia, menos corrupção, menos desmoralização da coisa pública e da política. E à afirmação inadiável de compromissos com a sustentabilidade.
Tendo dito isso, eis a conclusão de minha leitura do que está acontecendo: Em 2014, o PT transformou uma eleição triangular em confronto bipolar. Para fazê-lo, teve de recorrer a elevada dose de violência simbólica para espremer a candidatura de Marina. A terceira via –como ideia, valor, simbologia, experiência e emoção– virou suco. Este reducionismo cumpriu-se ao preço de converter a divergência em traição e a crítica em condenação. A mutilação eleitoral correspondeu, e nisso consistia o essencial de sua operação, à hipertrofia do caráter agonístico da disputa política. A existência de segundo turno, naquele ambiente, congelou o dualismo e lhe infundiu emoções e símbolos bélicos. Como a rua ingressou no repertório da democracia brasileira, desde 2013 –a memória mais relevante e ativa não é 1964, é 2013–, ante as sucessivas demonstrações de vulnerabilidade do governo Dilma (cuja política econômica segue o figurino repelido na campanha e cuja postura, ante a crise, inclusive o petrolão, permanece olímpica), a intensidade massiva, a energia agonística precipitada no torniquete simbólico-eleitoral (três viram dois, a golpes de cinzel), emerge, faz-se fenômeno, fenômeno de massa. Os significados são múltiplos, como sempre. A heterogeneidade é imensa. Mas a pregnância nas retinas do país é feroz. O que está em jogo é a emergência de novas narrativas, plurais, nas quais o eixo gravitacional desloca-se, historicamente, de 1964 para 2013. As ruas, hoje, nada têm a ver com as jornadas de junho. Porém, o rio que flui é um só. Falo da energia, da intensidade, da experiência de estar na rua ao lado de outros. Falo da alegria rediviva de escrever em conjunto outra história. Falo da redescoberta da participação. Falo da falência, mais uma vez, da representação tradicional, desacreditada, corrompida. Falo de uma nova fome de legitimidade republicana. Não se trata de moralismo, mas de moralidade, respeito à coisa pública, respeito à sociedade, à Constituição. Quem disser que moralidade é coisa da direita, não entendeu nada. Ou melhor, ajudou a jogar no chão a bela história do partido dos trabalhadores.