Ante a naturalização da barbárie, sociedade precisa se unir por um pacto republicano
Publicado no site Justificando em 10 de abril de 2017
Há algum tempo não escrevo. Não tenho me sentido capaz de romper o silêncio e vencer a impotência diante do que tem acontecido, sobretudo no Rio de Janeiro. Há uma desproporção irredutível entre a barbaridade das execuções extra-judiciais e os adjetivos disponíveis na linguagem verbal. Entre as barbaridades que têm sido ditas nas inacreditáveis tentativas de justificação do injustificável e as qualificações oferecidas pela língua portuguesa. Entre o assassinato da menina Maria Eduarda (desgraçadamente, apenas mais uma vítima) e as palavras que o discurso pode mobilizar. Entre os seguidos assassinatos de policiais e a pobreza do vocabulário acessível. Entre a naturalização da barbárie e as palavras que consigo articular. Esgotou-se o repertório do dizível. Não há mais ênfase possível, depois que a desgastamos em nossas denúncias e críticas proclamadas a todo volume. Por outro lado, o silêncio não é solução e a inércia é cúmplice do status quo.
E o Ministério Público? E a Justiça? O que fizeram enquanto sucessivos governos saquearam o Estado do Rio e devastaram a sociedade? O que fazem diante da explosão de violência policial e contra policiais? O que dizem da violação cotidiana dos direitos dos policiais militares, submetidos a intensa exploração, cumprindo jornadas de trabalho desumanas e ilegais, sem poder reagir porque, sendo militares, seriam presos, administrativamente, sem direito a defesa?
A Defensoria Pública atua, admiravelmente, no limite de suas possibilidades humanas e institucionais. Deve-se reconhecer também o esforço titânico, incansável, das entidades da sociedade civil que lutam pelos direitos humanos, por justiça, por democracia. Mas esses esforços têm sido insuficientes. A cidade e o estado estão sendo drenados pelo ralo da história, arrastando vidas.
E já não há palavras.
No plano federal, a temporada caça-direitos segue insaciável, patrocinada por um governo ilegítimo, cuja função é fazer o trabalho sujo que jamais seria autorizado pelo voto popular. Na sociedade, a polarização estúpida – em que a interlocução foi substituída pela acusação – abre espaço para o avanço do racismo, da misoginia, da homofobia e da demofobia. Esse contexto permite que saiam do armário personagens bizarros, abraçando o fascismo e defendendo a ditadura. Na retaguarda desse espaço público empobrecido e enrijecido avançam aventureiros perigosos, arautos de um pseudo-liberalismo conservador, socialmente predatório, como João Dória, Collor do século XXI.
Enquanto isso, a devastação ambiental se intensifica e os territórios dos povos originários estão mais ameaçados do que nunca, desde a promulgação da Constituição.
O que tem havido de positivo, em grande escala? O fortalecimento da luta das mulheres, principalmente. Esse avanço merece reflexão e destaque. Seria interessante que o conjunto dos movimentos sociais extraísse lições desse êxito.
Para concluir numa clave positiva, eis o que, a meu juízo, nos resta: unirmo-nos, todos aqueles e todas aquelas que saibam e queiram valorizar a democracia, a redução das desigualdades, uma política efetiva contra o colapso climático, os direitos das minorias, as conquistas sociais da última década e meia, a despeito de sua insuficiência –as quais estão sendo rapidamente dilapidadas–, os territórios dos povos originários. É imperioso e urgente isolar a direita e a regressão social rumo à consolidação da hegemonia do capital financeiro, regendo um mercado crescentemente iníquo e selvagem.
No pacto republicano que proponho teriam de constar: (1) uma reforma política digna desse nome, realizada por uma constituinte exclusiva, cujos membros não pudessem candidatar-se nos oito anos seguintes; (2) um acordo para a mudança da legislação e da política de drogas, rumo à sua legalização ou regulamentação; (3) o compromisso em torno da mudança da arquitetura institucional da segurança pública, o que inclui o modelo policial; (4) e também em torno da transformação da política criminal e do sistema prisional.
Muito pouco diante dos abismos sociais e econômicos brasileiros? Certamente. Tímido ante a magnitude do retrocesso em curso? Talvez. De todo modo, não adianta gerar expectativas irrealistas e propor avanços utópicos se essa ambição inviabiliza o engendramento de uma coalizão republicana e democrática consistente e acaba por isolar as esquerdas e enfraquecê-las.
Finalmente, um alerta (e aqui reproduzo considerações e propostas de Alê Youssef e Miriam Krenzinger): não é razoável discutir candidatutas à presidência em 2018 e deixar em segundo plano a seleção de candidatas e candidatos às Assembleias Legislativas, à Câmara Federal e ao Senado. Um eventual governo que se oriente pelo pacto suprarreferido pode vir a ser derrubado por novas manobras sujas de um futuro parlamento. A sociedade civil engajada nas lutas sociais deveria fazer sua própria lista, em cada estado, ocupando diferentes partidos. Eis aí um trabalho que deve e pode ser realizado desde já. Não esperemos a iniciativa dos próprios futuros protagonistas. Mesmo, e sobretudo, fora dos partidos, reunamo-nos, encontremo-nos, ponhamo-nos de acordo quanto a critérios e convidemos para a política nossos futuros representantes. Creio, salvo engano, que o movimento “Quero Prévias” aponta na mesma direção.