Contra a drogafobia e o proibicionismo: dissipação, diferença e o curto-circuito da experiência
Palestra na abertura da conferência que celebra os 58 anos da FIOCRUZ
Contra a drogafobia e o proibicionismo:
dissipação, diferença e o curto-circuito da experiência
à memória de Santuza Cambraia Naves e Gilberto Velho
Luiz Eduardo Soares
Não saberia como definir drogas, mas não creio que faça falta, ainda que se trate, justamente, de falta. Quando giramos no ar essa palavra valise, quase uma categoria de acusação prêt-à-porter, a fricção com o ambiente aquece o debate e torna incandescente a atmosfera. Evocá-la, portanto, perturba, embora ilumine. Melhor talvez fosse dizer que a luz da energia desprendida pela tensão revela a magnitude da obscuridade. A imagem não é minha. É de Faulkner, ainda que aplicada a outro objeto. De todo modo, bem vindo fantasma genial, anjo maldito de som e fúria. Que sua embriaguês mórbida e fecunda nos guie e aos positivistas não desampare. O fato insofismável é este: a noite formidável recobre, sob a palavra droga, sob o manto do vocábulo herético, uma complexíssima trama de enigmas, sofrimentos, desejos e desafios.
A matéria foi sequestrada pelo discurso da justiça criminal, a ponto de nortear suas práticas. Hoje, é impossível fechar os olhos para as consequências, em nosso país: a terceira maior população carcerária do planeta, 540 mil presos, e o maior índice de crescimento dessa população. Observe-se que o foco socialmente seletivo da política criminal e de segurança pública incide sobre jovens pobres, com baixa escolaridade. Entretanto, a despeito da voracidade monopolizadora da justiça criminal e de seus dispositivos, há tempos a chamada “questão das drogas” também frequenta a agenda da saúde. Mais que isso: deixou de se limitar ao escrutínio na área científica da saúde. Tornou-se tema fundamental para quem estuda a cultura e a política.
Uma pergunta elementar impõe-se: por que, ainda hoje, em pleno século XXI, quando gênero, sexo e corpo já aprenderam a falar línguas diferentes, quando a família encena arranjos imprevisíveis e a comunicação globalizada reinventa mapas e utopias, por que ainda balbuciamos o be-a-bá dessa ladainha enfadonha, em dicção policial: “as drogas”?
Seria porque muita gente se mata abusando de seu consumo? Ora, muito mais gente se autodestrói bebendo ou fumando cigarro. Nem por isso a mídia dramatiza o assombro nas manchetes. Nem por isso a pauta política é colonizada por propostas criminalizantes ou programas de higienização. Em síntese: a explicação materialista e funcional não se sustenta. Legisladores, assim como os operadores do sistema de justiça criminal e de segurança pública, não extraem a legitimidade de suas decisões repressivas da necessidade –entendida, por sua vez, como derivação do compromisso teleológico com a preservação da vida. Não determinam a repressão para salvar ninguém, a não ser suas carreiras –com as honrosas exceções de praxe. Na melhor das hipóteses, o debate público converteu-se em uma ciranda interminável de símbolos. Na pior, rendeu-se à farsa demagógica mais desavergonhada e obscurantista.
Caso os fatos empíricos valessem alguma coisa todos já teriam aprendido as lições mais triviais: segundo o UNDOC, o tráfico internacional de drogas ilegais movimentou, em 2005, U$ 320 bilhões, valor superior ao PIB de 88% dos países. Apesar dos custos bilionários, nem o consumo, nem os preços foram afetados. Os únicos beneficiários têm sido o tráfico e os setores da economia que lucram com armas, equipamentos militares e instrumentos de segurança. Além dos titulares políticos da moralidade dos costumes e dos governos que precisam de inimigos para promover a coesão ameaçada por crises e descrédito.
A guerra às drogas constitui o mais escandaloso fracasso de política pública transnacional continuada de que se tem notícia, nas últimas décadas, sem que o resultado pareça importar aos governos que a implementam. O que demonstra quão valiosos são os ganhos secundários e as vantagens setoriais.
Como afirmou o célebre liberal Milton Friedman, em 1989 (a posteridade só confirmou o que há vinte anos já era evidente):
“Após décadas de experiência, é evidente que: mais polícia, mais prisões, penas mais duras, aumento dos esforços de apreensão, mais publicidade sobre os males das drogas – tudo isto tem sido acompanhado por mais, não menos, viciados; por mais, não menos, crimes e assassinatos; por mais, não menos, corrupção e por mais, não menos, vítimas inocentes”.
De acordo com levantamento da Liga de Policiais contra a Proibição (LEAP), os Estados Unidos já gastaram, em ações domésticas e internacionais, desde 1972, quando Nixon declarou guerra às drogas, mais de U$ 1 trilhão
. Nas quatro décadas seguintes, a criminalização da pobreza avançou celeremente nos EUA. Se houvesse a legalização, dois milhões de prisões deixariam de ser feitas, a cada ano, naquele país –prisões que afetam sobretudo os negros e latinos.
No Brasil, com a Lei 11.343/2006, o usuário de drogas ilícitas não pode ser preso, mas deve ser conduzido à delegacia, depois a um Juizado Especial Criminal, onde poderá receber advertência verbal, pena de prestação de serviço à comunidade, medida de comparecimento obrigatório a programa educativo, ou multa. O consumo ainda é considerado crime. No Rio de Janeiro, segundo pesquisa para o PNUD de Luciana Boiteux e Elie Wiecko, de 2009, 80% dos presos por tráfico são jovens entre 16 e 28 anos, primários. A grande maioria foi capturada em flagrante, não portava arma, não agia com violência, não tinha ligação com organização criminosa.
A Lei brasileira não define a partir de que quantidade o porte passa a ser interpretado como tráfico, o que estende ao limite a discricionaridade da autoridade judicial. Dispondo de larga margem para avaliações subjetivas, a maior parte dos juízes termina por reproduzir as desigualdades e discriminações que marcam a sociedade e a cultura em que foram socializados. Os efeitos desse coquetel têm sido mais graves do que a ingestão de qualquer outro pernicioso à saúde, composto por substâncias psicoativas.
Do ponto de vista antropológico, há vários mitos a desconstituir. Examinemos cada um deles:
- “Há um perfil padrão do usuário típico”.
Gilberto Velho já mostrou que não é assim. Os usuários de droga não compartilham nenhuma característica que os distinga dos demais indivíduos, exceto o fato de usarem droga
. O mesmo vale para os não usuários. Aliás, mesmo essa característica, digamos, diacrítica, deixa de existir quando o não usuário usa e o usuário deixa de fazê-lo, decisões imprevisíveis e sempre disponíveis aos indivíduos para confundir as ingênuas pretensões do iludido classificador.
Além disso, caberia perguntar: de que droga se trata? De que relação com a droga se trata? Só há uma droga e apenas uma modalidade de relação?
- “Todo consumidor de drogas ilegais é viciado”.
Essa afirmação, por absurda, dispensa comentários. Por outro lado, a palavra “viciado” menos descreve uma pessoa do que lhe determina um destino criminal e médico. É curioso observar que a palavra refere-se a uma pessoa como se a rotulasse, como se lhe atribuísse uma identidade. E o faz como se essa identidade esgotasse sua inscrição no mundo, como se a qualifidade destacada, o “vício”, fosse constitutiva de seu ser. Uma vez que fazemos coisas com palavras, a classificação “viciado”, tanto quanto “criminoso”, é uma intervenção performativa da linguagem, porque condena, traça um círculo em volta do indivíduo, prescreve um futuro e encaminha o sujeito para determinadas instituições, que o submeterão a certos procedimentos.
- “A droga suprime limites morais. Portanto, seu consumo gera a disseminação da amoralidade, derrubando barreiras à prática de crimes e violência”.
Esse enunciado suprime o bom senso. Para fazer algum sentido, seria preciso identificar o tipo de droga, a quantidade consumida (e a assiduidade), o contexto do uso, o significado de limite, o conceito de moralidade, o padrão que supostamente corresponderia ao comportamento desse mesmo usuário ante o mesmo dilema moral, em condições distintas. Além disso, seria também indispensável explicar por que estaria justificado supor que da lassidão moral se transita, sem mediações, para a criminalidade e daí à violência. Essa cadeia narrativa, essa corrente de passagens abruptas, que ignoram descontinuidades abissais, é articulada não pela razão, mas pela paranoia.
Para que se compreenda mais claramente quão estapafúrdia é essa generalização, basta considerar a seguinte sentença: “O envolvimento emocional na torcida, em um estádio de futebol, suprime barreiras morais. Portanto, a frequência popular aos estádios induzida pelo amor ao futebol gera a disseminação da amoralidade, derrubando barreiras à prática de crimes e violência”.
Outro enunciado desprovido de coerência também serve ao desnudamento da inconsistência da proposição sobre drogas, moralidade e violência: “A participação do fiel em rituais religiosos que o conduzem ao transe e à possessão suprime barreiras morais. Consequentemente, o engajamento religioso em tradições que implicam práticas de transe e possessão promove a disseminação da amoralidade, derrubando barreiras à prática de crimes e violência”.
O mero cotejo desvela a insensatez da asserção original. A experiência de alteração da consciência segue métodos e regras, é circunscrita por delimitações compartilhadas e coletivamente ordenadas, à luz de valores determinados. Códigos morais diferentes não deixam de sê-lo. Amoralidade é o nome que o pensamento etnocêntrico dá à ausência de seu padrão valorativo.
Nada disso significa que não haja cataclismos, colapsos da ordem, explosões individuais e coletivas que ignoram as referências tacitamente pactuadas. Há vandalismos, quebra-quebras, linchamentos e irrupções violentas massivas ou individuais. Mesmo nessas situações dramáticas e extremas, observam-se limites, regras, valores e propósitos, ainda que sejam negativos, destrutivos e ilegítimos. Os casos mais selvagens são tão perigosos quanto associar a tais extremos, de forma genérica e acusatória, drogas, religiões extáticas e celebrações coletivas.
- “A única meta das políticas públicas relativas a drogas é a abstinência.”
Não se trata de um enunciado analiticamente sustentável, nem normativamente defensável. Por que o mesmo corpo institucional não vê do mesmo modo o consumo de cigarros e de bebidas alcoólicas, por exemplo? Não há nenhuma razão para que a maconha e a cachaça tornem-se objeto de políticas cujas metas sejam a abstinência, em um caso, e a temperança ou a moderação, no outro. Não há nada na substância material desses produtos que determine um ou outro caminho, uma ou outra finalidade. Na verdade, há outra finalidade no mascaramento do caráter arbitrário dessas classificações e das atribuições de periculosidade. A finalidade é firmar e difundir a suposição de que há base substantiva para o exercício legisferante. O objetivo é formar a crença na existência de uma base substantiva para o exercício da autoridade repressiva do Estado. O poder político encontraria legitimidade por derivar seu funcionamento da ordem da necessidade, uma vez que suas ações decorreriam de imperativos morais, racionais e ontológicos. A base material de suas decisões equivaleria a uma plataforma sólida, arremedo de ontologia ungida de valor.
Por isso, a política de drogas proibicionista é anti-liberal, mesmo quando proposta e aplicada por liberais. O contrato, fundamento da visão liberal da política, rejeita absolutos e fundamentos ontológicos, e afirma que as normas do convívio devem repousar sobre a negociação livre de atores supostamente iguais. Não há nada mais distante do ideário liberal do que conferir ao Estado o papel de sujeito que sabe mais do que o indivíduo qual é (e deve ser) seu desejo mais profundo e seu interesse –a salvação de sua vida e de sua alma (de sua integridade moral)–, desejo e interesse por vezes supostamente encobertos por vontades patológicas e compulsões. O Estado converte-se em médico de espíritos e terapeuta de corpos indisciplinados. Como boa mãe, seleciona com esmero a dieta mais saudável para seus súditos –hesito em empregar essa palavra, mas não faria sentido falar, aqui, em cidadãos de uma República, muito menos de uma cidade democrática.
Mesmo nos casos que mereceriam ser tratados como patológicos, nos quais o sujeito confessa sua dor, reconhece sua impotência e pede ajuda, sabemos que há um vasto gradiente que se estende da redução de danos à abstinência, experimentada, entretanto, e não à tôa, dia após dia, como o comedimento exigido pela escala diminuta da precária resistência humana, exatamente para evitar a ambição desmedida da solução definitiva, cujo peso tenderia a jogar por terra todo o avanço alcançado com o esforço modesto e continuado, cotidianamente reiterado.
- “Legalizar implica liberar, o que provocaria a explosão do consumo”.
Liberar é um verbo caprichoso que insinua convite sedutor, apologia e celebração. Sobretudo, o verbo sugere falta de limites, ausência de regras e homogeneização das situações, sem respeito a nuances e gradações, normas e valores, cautelas e negociações. O verbo soa como a abolição dos males e o estabelecimento de um condição atemporal e estável. Nada mais enganoso. Drogas liberadas, no sentido vulgar conferido a liberado, sentido que associa o termo à ideia de anarquia, é o que temos: nenhum controle de qualidade dos produtos comercializados; nenhuma informação sobre limites de segurança para o uso de cada substância, ou sobre os riscos envolvidos; um mercado instável, em que a corrupção policial, a violência e as armas atravessam o caminho de toda a sociedade, mesmo dos que não têm interesse no consumo. Legalizar é criar o avesso do caos que hoje impera e que traz prejuízos para todos –menos para os que traficam. Legalizar implica disciplinar, regulamentar, negociar circunstâncias, métodos e padrões de relacionamento.
A experiência de políticas descriminalizantes tende a demonstrar que o consumo não sofre alteração significativa. A elevação gira em torno de 1,5% e fica na média do que se verifica em outros países que não flexibilizaram sua legislação, no mesmo período.
O grande erro de quem postula a proibição é a crença em sua eficácia prática. Supõe-se, ingenuamente, que proibir significa bloquear o acesso de consumidores potenciais às drogas. Não é o que ocorre no Brasil, nem em qualquer país não totalitário. O acesso às drogas continuou sendo uma realidade inabalável, ao longo das últimas décadas, apesar das políticas repressivas, independentemente do volume de dinheiro investido (ou perdido) nessa guerra e da qualidade das polícias mobilizadas. O acesso não é afetado pela proibição. Por isso, flexibilizações legais não importam em expressiva mudança na demanda.
Contudo, mesmo que as mudanças fossem significativas, esse fato não justificaria a intervenção do Estado no domínio da liberdade individual ou das escolhas privadas, desde que elas não violassem direitos alheios.
Por outro lado, essa minha opinião de princípio é reforçada pela avaliação pragmática dos resultados das políticas proibicionistas.
Não é demais repetir: os efeitos negativos agregados da criminalização e do proibicionismo são muito superiores às consequências do uso ou do abuso das drogas ilícitas. Dos 50 mil homicídios dolosos anuais, no Brasil, não sabemos quantos têm relação, direta ou indireta, com tráfico de drogas e com o tráfico de armas, que o primeiro financia. Mas estimamos que o percentual seja elevado. Assim como sabemos que a corrupção policial é alimentada pelas oportunidades de negócios ilícitos que o comércio clandestino propicia. Aduzem-se os custos financeiros e humanos impostos pelo sistema penitenciário, assim como os gastos com as instituições de segurança e de justiça criminal, cujas energias são em boa parte consumidas com essa vasta problemática.
Segundo levantamentos realizados pelo LEAP, mesmo os malefícios decorrentes do consumo excessivo de drogas devem-se mais à mistura do que à substância original. Pesquisa que realizei para meu livro, “Tudo ou Nada; a história do brasileiro preso em Londres por associação ao tráfico de duas toneladas de cocaína” (Nova Fronteira, 2012), constatou que, no começo do século XXI, entre a produção, na Colômbia, e a venda no varejo, na Inglaterra, a coca tinha sua pureza reduzida seis vezes, de 85% para 15%.
Nada do que escrevi deve ser entendido como subestimação do sofrimento que pode estar envolvido no consumo de drogas, lícitas e ilícitas. Meu argumento é simplesmente este: tal sofrimento pode justificar, por parte do Estado, cuidado, preocupação, difusão de informações, oferta de apoio para a busca de alternativas, mas não a intervenção autoritária e paternalista no âmbito da liberdade individual, quaisquer que sejam os valores reivindicados, mesmo aqueles tidos por caridosos, aliados da saúde e moralmente edificantes. Aliás, em nome da saúde do corpo e do espírito cometeram-se as mais abjetas e cruéis violências.
- “Não é possível adotar políticas mais firmemente descriminalizadoras antes que o concerto das Nações se disponha a fazê-lo”.
Essa é a melhor justificativa para o imobilismo político. Nada mais do que isso. Faço, desde que os outros façam primeiro. A inércia se escuda na ostentação teatral da responsabilidade. No flagrante de um flash, a convicção desponta, sob o jaquetão da autoridade, como a piscada furtiva da leviandade pueril. Ela sinaliza para os críticos que continua um deles, não traiu sua origem, mas, afinal de contas, amadureceu e, hoje, sua voz é institucional.
Para haver avanço mundial, será necessário que cada país assuma o protagonismo na matéria e ouse.
- “O Brasil não está preparado para a legalização das drogas”.
O Brasil está preparado para milhares de homicídios dolosos e o encarceramento massivo de jovens pobres? Está preparado para conviver com o tráfico de armas que se nutre do tráfico de drogas? Está preparado para arcar com os custos de uma política irracional, ineficiente, cujos resultados frustram expectativas, sistematicamente, e geram efeitos perversos em larga escala? Está preparado para acompanhar o calvário dos dependentes que desejam ajuda, mas não podem contar com todo o potencial de acolhimento aberto, transparente, solidário, dos profissionais especializados e das instituições. Está preparado para testemunhar, passivamente, a farsa a que são submetidos os que compram gato por lebre, e os que percorrem uma senda suicida por falta de diálogo e informações?
Não, nenhum país está “preparado” para esses horrores e não deveria aceitar conviver com eles, naturalizando-os, como tem feito a sociedade brasileira. Estaria, o Brasil, preparado para um salto de qualidade? Se não está, deveria preparar-se, com urgência. Nenhuma deficiência de qualquer tipo poderia justificar a persistência numa política contraproducente. Além de tudo, uma transformação na abordagem da questão das drogas constituiria parte da própria preparação que se deseja: uma preparação para recepcionar e implementar as melhores ideias, a serviço do bem comum, adaptando-se a melhores condições de vida, com mais liberdade, menos hipocrisia, menos violência e corrupção, mais responsabilidade e mais respeito pelas diferenças.
- “Há uma porta de entrada para o mundo das drogas. A mais inofensiva leva às mais destrutivas”.
A imagem de uma progressão negativa, ordenada em escala de gravidade ascendente, deriva dos seguintes pressupostos falsos: há continuidade entre as experiências de consumo; há uniformidade dos produtos, que apenas se distinguiriam pela exacerbação de efeitos de mesmo tipo; e há homogeneidade do campo em que se dão as relações entre sujeitos e substâncias, assim como entre os próprios sujeitos.
Tais pressupostos são falsos: as experiências de consumo são descontínuas, assim como os produtos e seus efeitos são diferentes entre si, do mesmo modo que os campos instaurados por relações de uso e de convivência ou negociação (de significados ou produtos) são distintos. Em outras palavras, os usuários se reúnem ou se isolam, e vivenciam os momentos de consumo das diferentes drogas de formas diversas, negociando, diferenciadamente, seja o sentido da experiência, seja o acesso ao produto no mercado clandestino. Por consequência, a experiência com cada tipo de droga ilícita não corresponde a uma etapa na escala evolutiva rumo à dependência mais aguda, partindo do tapinha ingênuo no primeiro baseado oferecido por um colega e terminando com um corpo estirado na sarjeta.
A verdadeira continuidade é aquela determinada pela criminalização do uso das substâncias em pauta. A Lei uniformiza ao construir uma classificação comum, gerando a homogeneidade da transgressão. É também a Lei que separa consumo e comércio, apondo ao segundo o adjetivo hiperbólico “hediondo”. A Lei estabelece limites onde nem sempre há. As categorias legais –na teia de suas aplicações (aliás menos puras do que a cocaína vendida no varejo)– promovem distinções rígidas entre ações e atores, os quais nem sempre se diferenciam por uma divisão do trabalho estável, e menos ainda se opõem como vítimas e algozes, ou criminosos ativos e personagens passivos. Nos termos do código penal, os usuários são quase vítimas, no máximo são vistos como cúmplices involuntários, condenados a jogar o jogo de um destino prefixado pelo congelamento do desejo. Na visão de mundo subjacente ao discurso jurídico proibicionista, todo desejo é preâmbulo de compulsão e toda experiência de uso de substância proibida é prenúncio do cativeiro do vício. O consumo antecipa e termina por cumprir o percurso de um ser débil, que orbita em torno de uma dependência idealizada e que, por isso, só encontra salvação nas mãos maternais do Estado. O usuário é passivo quando se relaciona com o criminoso hediondo comprando dele a droga. É passivo ante seu destino, ante o destino compulsivo de seu desejo. É passivo, então, ante o Estado, que lhe estende a mão, depois de adverti-lo, educá-lo e puni-lo. A punição veste a máscara da mais doce correção de modos, para o bem do pobre consumidor infantilizado. Do outro lado do usuário está o monstro, diz-nos a Lei, o perverso que, para vender a droga, seduz o consumidor e o vampiriza, inoculando, em seu espírito curioso e inexperiente, o vício degradante.
A continuidade pode ser construída por determinados grupos, sob certas condições, mas está longe de ser uma trajetória necessária. A expectativa de avanço por um gradiente em direção ao vício devastador choca-se com a densidade simbólica e prática, emocional e social, das fronteiras erguidas pelos vários universos culturais vinculados a drogas específicas.
Entre o uso de maconha e o consumo de cocaína pode haver um abismo. Não por acaso cada uma delas apresenta afinidades eletivas com distintas épocas da história recente. Para explicar essa hipótese interpretativa, cito um trecho de meu livro mais recente, “Tudo ou Nada”
.
Cito “Tudo ou Nada”:
“O choque entre os extremos, em sua vida, corresponde, na verdade, a uma reacomodação de camadas profundas da história, que seguia seu curso ao apagar, nos dedos yuppies que contavam dinheiro, os últimos lampejos dos anos 1960 e dissipar a fumaça inebriante da velha e boa marijuana. Ficavam para trás, num rastro de bosta e cinzas, os cogumelos bucólicos e lisérgicos, e a nuvem cigana de hippies, freacks, beatnicks, sex-drugs&rock&rollers, a embriaguês dos sonhos, a bem-aventurança cósmica. Em vez da prometida era de Aquarius, semeando a paz e o amor, aportaram no planeta os tempos de cólera, grana e guerra. Novos e paradoxais arcaísmos: voltou a ser bacana o careta conservador. Saiu de moda o pé na estrada e o passo fora do compasso da nova ordem mundial. As viagens perderam encanto; os viajantes, brio e frisson. A Odisséia do Ulisses de nossa época pós-hippie passou a ser a navegação virtual do nerd voyeur que trocou a experiência pelo google. Tempos agitados, os nossos, que gravitam em torno da grana e abrem alas para a ligação. Maconha e haxixe são drogas contemplativas, que reduzem a velocidade e excitam a sensibilidade musical, visual, gustativa, táctil e erótica. A cocaína é a droga da velocidade e do trabalho. A droga de zumbis travados e brochas insones. O pó não veio para relaxar a tribo durante o recreio da civilização tecnológica, trazendo consigo o parque de diversões e o jardim das infâncias perenes. O pó veio para neutralizar as epifanias sensuais do corpo e os devaneios espirituais. As carreiras da cocaína ligam o sujeito ao fio desemcapado do capitalismo febril”.
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Uma abordagem cultural da problemática das “drogas” nos levaria a pensá-las em suas relações com o imaginário coletivo e os desejos individuais, sob a ótica das dietas e de suas linguagens, ou sob a perspectiva do tabu e da ordem totêmica, ou da circulação de mercadorias, ou ainda sob o prisma da recriprocidade e de sua lógica social. Caberia explorar todos esses ângulos analíticos. Nesse momento, vou me concentrar em outro foco, que envolve as abordagens mencionadas sem reduzir-se a qualquer uma delas.
Numa sociedade dominada pelo mercado, em que tempo é dinheiro e quase todos os objetos e atividades humanas são mercantilizados, a experiência e as diferenças reduzem-se a variações inscritas em uma só dimensão, como se fossem marcas sobre um contínuo. Esse contínuo é o plano da vida coletiva regido pela moeda. Nesse plano, a espessura do vivido, sua singularidade, é achatada. A tabela monetária opera a conversão entre as unidades comparadas e trocadas. Dinheiro é o comutador universal. Entre uma noite em Casablanca e uma enceradeira pode haver um abismo de sentido. Entretanto, esse abismo dilui-se e a diferença irreconciliável dissolve-se quando valores monetários são atribuídos à noite glamorosa e ao eletrodoméstico. Por serem compráveis, são também intercambiáveis. Representam custos distintos numa escala compartilhada. À variação de preço ficou resumida a diferença. A comparabilidade tornou-se irrestrita, assim como a intercambialidade. E essa tradutibilidade recíproca ilimitada acaba insinuando uma ontologia (uma espécie de condição transcendental), como caução da univocidade. Assim como a linguagem insinua a unidade do mundo, que chamamos realidade.
Claro, sabemos que a linguagem não é espelho da natureza e que a moeda prescinde de metafísica para funcionar. Não é senão um operador imprescindível para que a troca ultrapasse o escambo e a economia supere os muros da comunidade, permitindo a complexificação da divisão do trabalho, maximizando a cooperação e gerando ganhos agergados, potencialmente em benefício de todos. A moeda corresponde à introdução da razão, isto é, da medida. Historicamente, a razão concebeu-se a si mesma, conceitualmente, inspirada na medida, na ideia de medida. Sabemos de tudo isso e ainda assim os efeitos persistem: a ubiquidade da imagem (projetada e pressuposta na cultura) de uma ontologia unitária que neutraliza a diferença e, por consequência, dilui a experiência e a singularidade. Por outro lado, aprendemos que essa imagem ubíqua (a comutabilidade sem limite, a afirmação da unidade essencial que subjaz à diversidade humana e a dissipação da diferença) transcende o domínio da imaginação ou o universo simbólico: transforma-se na força propulsora da sociedade e na experiência matricial de pertencimento a esta mesma sociedade. A comutabilidade é uma realidade no mundo regido pelo mercado.
Nesse contexto, o indivíduo corre o risco de sentir-se supérfluo e perceber os outros com o mesmo desdém: as coisas e as máquinas trocam-se entre si, emancipadas, autônomas. O ator social, nesse cenário sombrio, vale por suas extensões atuais e virtuais –vale por seu potencial de comprar e vender, isto é, por seu potencial como consumidor e produtor, ou intermediador desse jogo que não cessa. O tempo do indivíduo custa: ele paga para curti-lo ou o vende para ganhar o dinheiro que lhe permitirá, por sua vez, adquirir objetos ou comprar a fruição gratificante de shows, jogos, férias, viagens ou degustação culinária.
Os pontos remanescentes de fixação apaziguam a ansiedade provocada pela vasta onda que suprime a experiência e neutraliza os sujeitos. Esses pontos são os vínculos afetivos e os gestos autorais –ou criativos–, que fogem aos padrões, aos clichês e às previsões.
Gestos e laços que não cabem na lógica das trocas e que desarrumam a reciprocidade previsível, as rotinas comportadas, as tabelas codificadas, o equivalente universal (monetário) e até os jogos de linguagem ordinários. Vejo os laços sociais personalizados sob o modo dos afetos e os gestos inventivos como o âmbito não apenas no qual pode se dar a reinvenção de si –um self-fashioning–, se adotarmos os termos de uma estética da existência que o último Foucault redescobriu, mas também como a matéria-prima para o readensamento da vida individual e para a inscrição da diferença, isto é, o estabelecimento das condições de possibilidade da experiência, sem a qual tampouco o Outro aparece.
O que rompe a reciprocidade, desequilibra, fratura a unidade, desafina a gramática da ordem social é o excesso, a intensidade e o que é produzido e apropriado em sua singularidade irredutível, em sua diferença. Não me refiro a transgressão enquanto contraponto incluído na lógica que institui a norma. Exemplo da irrupção da diferença é o perdão, em lugar da retribuição do mal com a vingança. Outros exemplos seriam os mergulhos do sujeito na alteridade, seja por meio da metamorfose, como faz o poeta, segundo Elias Canetti, seja por meio do êxtase místico. Entregar-se a miragens provocadas pela ingestão de plantas sagradas ou a transes induzidos pelo uso de substâncias psicoativas constituem modos de estender a percepção de si e da realidade até o limite da dissipação, contrapartida da simbiose com o mundo, vivenciada, nesses contextos, como seu reencantamento panteísta, mais do que como reificação da subjetividade.
Não digo que essas experiências se equivalham, até porque tenho afirmado que, exatamente por serem experiências no sentido forte da palavra, são singulares e marcadamente diferentes (das rotinas e entre si). Contudo, a despeito da pluralidade de vias, fenômenos e significados, estamos diante de empreendimentos que, em conjunto, resistem à comutabilidade universal, à mercantilização, à colonização do mundo da vida pelo sistema, como diria Jurgen Habermas. As experiências dignas desse nome são, insisto, pontos de não retorno, irreversíveis, o que as aproxima da problemática do tempo, que é o outro nome da irreversibilidade. A experiência é o tempo, assim como, nesse sentido, tempo é diferença: não há unidade no tempo ou continuidade; somente reiteração (como nos ensinou Derrida), em que se embute ação e risco, incerteza. Mas o tempo a que me refiro é incalculável, não se perde nem ganha. É o tempo que risca o verniz da consciência como estrita e radical irreversibilidade. Tempo liberto do sequestro perpetrado pelos efeitos da domesticação. A domesticação cotidiana do tempo é operada por mecanismos e dispositivos tão diversos quanto relógios e aniversários, agendas e rituais, rotinas institucionais e códigos de conduta a serviço da divisão social do trabalho.
Quem busca substâncias psicoativas talvez esteja à procura de outra química consigo mesmo, de outra química para si mesmo, de outra química em suas relações com o Outro. Talvez esteja em busca da experiência, ou seja, do mergulho na diferença que singulariza. É preciso muita leviandade irresponsável ou muita coragem, a depender de como se dá essa busca e em que condições ela se efetiva. Uma coragem heroica, quase épica, porque não se brinca com fraturas e dissipações. O compromisso com esse caminho pode condenar o sujeito à afasia, porque aprender a falar de novo (na experiência a linguagem emerge alterada) pode provocar um desaprendizado, desmascarando como tais as convenções e desnaturalizando o mundo social e a vivência de si mesmo. Pode ser doloroso suspender a experiência para voltar a lidar com as rotinas.
Essa busca não deve ser idealizada, porque nem sempre entrega o que promete e pode ser destrutiva, inclusive do ponto de vista dos valores que inspiram o sujeito, como autoria e afeto. Não há garantias e seria tão preconceituosa e empobrecedora a apologia, quanto a estigmatização.
Sugiro que se compreenda a dependência (nesse caso, limito-me ao caso do uso de drogas)
como o curto circuito da busca da experiência, como o curto circuito do desejo de experiência. O sujeito deseja a experiência e a procura recorrendo a práticas místicas, de meditação, de criação estética ou consumindo substâncias psicoativas. Gera para si mesmo um núcleo gravitacional poderosíssimo, que tanto pode incitar o gesto criador e a entrega amorosa, quanto pode aterrorizar, face à perspectiva da perda de controle e da própria dissipação de si –isto é, face à perspectiva de lançar-se à diferença. Lembremo-nos de que a morte é uma das figuras da alteração. A finitude é a outra face da singularidade. A morte é outro nome da irreversibilidade. E a morte assombra os mortais.
Percebendo-se à beira do abismo, precipita-se, na suposição de que já não é possível retornar, depois de ter provado o sabor da potência enigmática, mas, sim, é possível saltar no descontrole justamente para controlar a vida, o tempo, a incerteza. O que era disposição para a abertura converte-se em vontade de poder sem freios: hybris. Falo em abismo porque a experiência ou é a voragem que energiza ou a iminência insuportável, intratável, inabordável do que não faz sentido, não cabe em narrativas, não é representável, não circula na linguagem dominante das equivalências
e aterroriza. Por que consumir compulsivamente poderia significar controle, vontade de poder sendo exercida, quando, de fato, implica perda de controle e, por isso, dependência? Creio que nada é mais previsível, nenhuma rotina é mais rigorosamente ordenada, nenhum fluxo cotidiano é tão esquadrinhado pelo impulso de controle quanto aquele de quem repete, repete e encena, diariamente, a ingestão da droga cobiçada.
Em vez de compulsão, podemos pensar em recusa à incerteza, ao vazio produzido pela imprevisibilidade do futuro. A repetição circunscreve a potência incontrolável e desestabilizadora do tempo. O uso reiterado é um compromisso com a conservação rígida de práticas.
Concluo, citando trecho de “Tudo ou Nada”, que ilustra a complexidade desse movimento duplo, contraditório, de quem busca a liberdade e se descobre cativo dessa busca, impotente para romper o círculo vicioso desse eterno retorno ao vazio, que atrai e repele, seduz e assombra.
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Cito “Tudo ou Nada”:
“Lukas e sua terceira esposa, Marguerite, mudaram-se para o Rio de Janeiro. Ele voltava para casa depois de oito anos no mar. Recebeu com alegria a guarda da filha. Em 1990, nasceria seu filho. Tornaram-se, então, um casal como qualquer outro. Ou quase. A diferença relativamente ao modelo convencional continuava sendo o pó e passara a ser, crescentemente, a heroína. Maconha e haxixe constavam do cardápio. Nunca foram excluídos. Mas ocupavam o segundo plano na hierarquia dos desejos. O cigarro era um caso especial. A nicotina sempre foi o veneno mais fiel. Seu lugar jamais seria contestado. Veneno legal tem status distinto.
“Lukas recomeçava a vida na grande metrópole com família pra sustentar e sem profissão definida.
“Ele se abrigou numa produtora de cinema cujos sócios eram velhos conhecidos. Cumpria seu horário como todo mundo e fazia hora extra, mas também circulava na rede clandestina onde comprava um pouco de tudo de que precisava, para si próprio.
“A vida em transe tinha graça até um certo ponto, a partir do qual tornava-se monótona, previsível, essencialmente insatisfatória, mecânica, angustiante e depressiva. Alguém tinha de segurar a onda no casal. Alguém tinha de organizar o cotidiano das crianças e pagar as contas. Era Marguerite. Precisava preservar-se do naufrágio que se avizinhava. Era óbvio que se avizinhava. Em algum nível mais sutil de sua mente, ela percebia que o naufrágio inundaria sua vida e arrastaria o casamento para o ralo. A crise se aproximava.
“Quando Lukas abria a guarda e lhe oferecia uma brecha, ela ousava dizer-lhe algumas coisas duras e o alertava. Não queria ser cúmplice por indulgência e omissão. Embora reconhecesse que lidava com questões delicadas e penetrava um planeta fortemente defendido: a cabeça de Lukas. Conhecia o arsenal de explicações e racionalizações, e o festival de autoengano com que o marido se iludia. Ele fingia um autocontrole inexistente. Fantasiava e representava uma autoconfianca inexistente. Exalava uma serenidade inexistente. Rondava cabisbaixo o abismo, atormentado pelo tamanho da sombra que projetava. Assombrado pelo que trazia consigo e não era ele. Torturado pelo que, nele, não era ele.
“Ninguém se basta: há o corpo. O corpo e suas extensões: água para beber; alimentos para comer; ar para não asfixiar; espaço para exercitar braços e pernas, pescoço, mandíbulas; luz para realizar o sentido da visão; uma temperatura compatível com a fragilidade da natureza humana; outro ser humano para que a imagem do humano se construa e sirva de espelho. Tudo muda, entretanto, quando adere ao corpo outra fome: a fissura, a dependência. O vício gasta o fogo do desejo fazendo-o arder em vão, até consumir o óleo da vida. Nenhum apaziguamento no horizonte. Nenhum porto à mão. Nenhuma terra à vista. Nem mar, nem país, nem apaziguamento algum. Não há mais nada. Depois do vício não há nada. Enquanto está aí, grudado no sujeito, inseparável de Lukas –seu duplo, irmão siamês, gêmeo de sua fome–, o vício é o que existe, o que há, e é quem manda. A dependência é soberana. É ela quem deseja pelo sujeito. É ela quem fala e sente por Lukas. Ela reina no vasto deserto do ser. Lukas quer mais. O vício quer mais. Lukas está exausto. Quer dormir. Apagar. Sumir. Evaporar. Lukas está saturado. Esgotado. Estafado de tudo. Sobretudo de si mesmo. Exausto da vida. Lukas quer morrer.
“A noite anterior atravessou acordado, vigilante como um porteiro diligente. Vigilante para evitar que alguma janela se abrisse e alguma ideia forte de mudança o derrubasse no contra-pé, num momento de fraqueza. Uma ideia à qual o impulso vital o fizesse agarrar-se. O dependente é antes de tudo um conservador. Luta por todos os meios e com toda a energia contra o canto de sereia da mudança. Outra noite insone, outro dia perdido. Lukas se arrastava quando não dormia. A experiência mais dolorosa, embora rotineira, era cheirar a última carreira de cocaína com o dia amanhecendo, consciente de que não haveria tempo para relaxar e dormir quando o efeito declinasse. Pelo contrário, coincidiriam os fusos horários: a curva descendente da excitação artificial cruzava a curva ascendente das obrigações profissionais no ponto crítico. A consequência era a seguinte: a noite passava o bastão para o dia transferindo-lhe um baixo astral pesado e o cansaço cósmico, justamente quando o dia demanda energias recompostas da noite finda.
“Lukas arrastava asas negras como quem traz a sombra na coleira. Chorar, não chorou. Coisa tão rara, Lukas chorar. Mas era como se chorasse. Como se chorasse copiosamente, torrencialmente, vertendo rios e mares, inundando a cidade. Até que alguém o avistasse na ilha que se formava sob seus pés e lhe lançasse uma balsa ou pelo menos lhe acenasse.
“Foi o que aconteceu. Exatamente.
“Ele se sentara num dos bancos de pedra na marina da Glória. Volta e meia fazia isso, na hora do almoço. Comprava um sanduíche e ficava ali, contemplando o mar, os iates, os barquinhos menores, os veleiros. Namorava a ideia da navegação e do veleiro todos os dias, mesmo sabendo que não fazia sentido. Tinha os filhos, amava os filhos. Se não fosse por mais nada, que fosse pelos filhos. Eram a âncora e ele prometera a si mesmo que não trairia o amor que sentia por eles, nem o amor que ambos lhe devotavam. Era pai, afinal de contas. Isso é o que ele era. Aguentaria firme o rojão. A onda mais cedo ou mais tarde, de algum modo, passaria. Viria outra, n’outra maré, com ventos diferentes e seu destino engataria numa rota mais feliz.
“Mas angústia teimava em sepultar a esperança. Não se tratava de ideias contra ideias. Nada era mental, naquele momento. A angústia era um movimento físico no esôfago, que se espraiava para a traquéia e o fazia engasgar. Se não se levantasse e respirasse fundo, erguendo o maxilar, asfixiava.
(…)
“Os dois meses seguintes seriam cruciais. Desceu as escadas do iate, passou à plataforma, ganhou a terra firme, caminhou pra fora da marina da Glória e um lampejo feliz o salvou da angústia devastadora. Cem dólares não fariam falta, qualquer que viesse a ser sua decisão crucial, depois dos sessenta dias cruciais. No bolo de cinco mil, a cédula de cem lhe subtrairia dois por cento do montante. Não era nada, quase nada, e o levaria ao paraíso. Mesmo que a visita fosse breve e a aterrissagem, acidentada. Cada dia, sua agonia. Na aterrissagem pensaria na aterrissagem. Além do mais, pior do que estava não ficaria. Supôs. Pôs-se em marcha, à cata de pó e heroína. Eram quatro e meia da tarde. A noite lhe traria recompensas pelo dia infernal. Os ratos fazem a festa, enfim. Os ratos também amam. Pronunciou, baixinho, estas frases de péssimo gosto, engolindo o riso, e arrependeu-se. Temeu a cólera dos deuses. A vingança dos elementos.
“Naquela noite, regalou-se. Cheirou à farta, picou-se, arremessou longe as dívidas contraídas com seu futuro, sepultou promessas que fizera a si mesmo no momento de fraqueza –ou de força–, e enfiou com gosto o pé na jaca. Deixou-se cair mais fundo no buraco em que se metera.
“Os dias seguintes não foram bons. Como previsto, a aterrissagem foi dura. Lukas fez um esforço titânico para safar-se do redemoinho: “mais droga para suportar seus efeitos”. Ponderou as opções. Cinco mil, quer dizer, àquela altura, uns quatro mil e oitocentos dólares, mais ou menos. O que fazer? Acender uma noite no fogo da outra, até queimar o último neurônio?; ou resignar-se ao monastério sul-africano, à remissão dos pecados, a um projeto razoável de vida?”
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Tomei a liberdade de citar um trecho tão longo porque acredito que assim ilustro com mais clareza de que modo a busca pela experiência pode degradar-se em dolorosíssima obsessão pelo controle do tempo, em compulsão pela administração da incerteza. O corpo a corpo com o risco da mudança, da metamorfose, da alteração, provoca angústia visceral ao evocar a figura assustadora da finitude. O ímpeto de domesticar o futuro, de colonizá-lo emulando o passado, abole o repouso, a entrega. O protagonista não se rende nem mesmo ao sono, embora inteiramente exaurido. Sua vigília dá testemunho do terror suscitado pela irreversibilidade e a indeterminação. O futuro enquanto abertura ao desconhecido precisa ser exorcizado. Lukas amarra uma ponta a outra da corrente em que se aprisiona até o limite de acender uma noite no fogo da outra.
Descrever essa desventura do espírito apenas como manifestação de uma patologia explicaria seus efeitos e a impotência para reverter o cativeiro auto-impingido, mas manteria à sombra o frêmito subliminar que vibra, incitando a grande navegação do personagem em busca da experiência.