Conversa de segundo turno
(Publicado com pequenos cortes na página 3 da Folha de SP, em 16/10/2014)
(60 anos, cientista político, antropólogo e escritor)
Tenho amigos e interlocutores no PT. Os amigos respeitam e
calam. Os outros me pedem calma. Acham que estou reagindo com o fígado, por
mágoa. Eu lhes digo que não é mágoa, é indignação. Balançam a cabeça,
condescendentes. Ainda têm esperança em minha conversão. Cada voto vale a
paciência dos militantes. Sei que essa indulgência com minha rebeldia tem prazo
de validade. Assim que desistirem de mim, empurram-me ao inferno sem
piedade. Quando digo que Marina foi caluniada da forma mais torpe pela
campanha do PT, atribuem a selvageria ao marqueteiro, álibi para toda vileza. Se
reajo, cobrando responsabilidades, transferem-na à natureza, digamos,
aguerrida das eleições. Quando afirmo que o governo federal endossou a
repressão criminosa às manifestações, vacilam, mas apontam para o futuro: o
segundo mandato será melhor. Se questiono o otimismo, lembrando a proposta
da candidata de que as forças armadas participarão dos comandos locais da
segurança, hesitam, mas justificam: isso é retórica eleitoral, o que vale é a
prática. Quando digo que a prática tem sido lamentável, voltam a acenar com um
futuro diferente. Quando digo que a desigualdade parou de diminuir, respondem
com a crise internacional e a estabilização do emprego. Se digo que o pleno
emprego cederá ante a estagflação, contestam, dizendo que estou hipnotizado
pelo discurso terrorista da mídia. Se acuso a regressão na área ambiental,
mudam de assunto. Se cobro a cumplicidade com ameaças crescentes a indígenas
e seus territórios, atribuem os recuos à necessidade de concessões para garantir
a governabilidade. Quando menciono a manutenção dos velhos métodos
políticos, que tem corroído a legitimidade da representação, dizem que a
presidente até tentou estimular uma reforma política, mas não dependia dela, e
que, afinal, este é o preço a pagar para deter o poder. Quando pergunto para que
o poder, se nada avança, respondem com o futuro de conquistas sociais
extraordinárias. Se duvido da profecia e falo da corrupção na Petrobrás, dizem
que herdaram a peste dos governos anteriores. Se lembro que, mesmo assim, já
são doze anos de PT, atribuem o escândalo a maquinações destinadas a
desmoralizar a empresa e torná-la presa fácil para a privatização. Quando cito
outras instâncias de poder aparelhadas e sublinho o dano causado aos
movimentos sociais pela cooptação, respondem com hostilidade, afirmando que
meu olhar está viciado pelo ingênuo encantamento com as manifestações de
2013. Quando, finalmente, afirmo que o governo Dilma foi medíocre, mostram-se
dispostos a aceitar, mas questionam qual poderia ser a alternativa. Digo-lhes,
então, para seu desgosto, pois gastaram tempo comigo: haveria alguma coisa
mais conservadora e medíocre do que defender a mediocridade conservadora?
Resta-lhes a última bala, a bala de prata: o medo. A oposição arruinará os
programas sociais e aprofundará as desigualdades. Pondero: e se o compromisso
de manter os programas for pra valer? Duvidam: a política econômica neo-
liberal os destruirá. Argumento, lembrando que Lula governou com o maldito
tripé neo-liberal e com Henrique Meireles no Banco Central. E foi por isso que
arrumou a casa para investir nos programas sociais. Mas Lula é Lula, proclamam.
Minha capacidade de acompanhar o raciocínio de meus interlocutores esgota-se
nesse ponto, coincidindo com o limite da tolerância que eles se esforçam por
estender. Percebendo que o voto está perdido, confessam o diagnóstico letal: no
fundo, você não passa de um neo-liberal.