Depois de Depois do Filme
Luiz Eduardo Soares
É a terceira vez que escrevo sobre espetáculos de Aderbal Freire Filho. Escrevi sobre O Púcaro Búlgaro, Moby Dick e, agora, compartilho com os leitores algumas impressões sobre Depois do Filme. Como, em matéria de produção acadêmica, teatro, cinema e literatura, só escrevo sobre o que admiro, me dá prazer e me encanta, a sequência constitui, em si mesma, modesta homenagem pessoal: expressa o reconhecimento da qualidade e a reverência pela obra de Aderbal. Por falar em admiração e apreço, cito meu saudoso mestre e amigo, Richard Rorty, que dizia mais ou menos assim: “Não gostou? Faça diferente.”
Na verdade, ainda não compreendo, por mais que leia e ouça os que se orgulham da própria (suposta) superioridade quando identificam vícios e defeitos. Parecem extrair prazer da humilhação que promovem com a aspereza de seu veneno crítico. Por mais que observe o gozo meio hierático dos que se comprazem em imitar o Deus do primeiro Testamento, expulsando obras e autores do paraíso, ainda não assimilei suas motivações.
Entretanto, é tamanha a desproporção entre os dois grupos humanos, a favor dos que menosprezam minha fraqueza, que recuei e me convenci de que meu caso é mesmo meio estranho, certamente minoritário, e talvez requeira cuidados. Contudo, nem por isso deixei de professar minha inclinação doentia, porque para este mal não parece haver cura fácil. E o impulso é mais forte que a prudência e o pudor.
Portanto, mais uma vez escrevo sob o efeito do encantamento.
E ouso afirmar: mais uma vez Aderbal surpreende. Na linha das experiências anteriores com os “Romances em Cena”, o diretor, agora também autor e ator, encena um monólogo que talvez melhor se definisse como um meta-monólogo ou uma história contada, uma narrativa dramatizada em várias vozes por um ator solitário, uma recordação em voz alta, uma evocação compartilhada, um roteiro declamado (o roteiro-em-cena), ou um convite à imaginação coletiva, ordenada e dirigida por um maestro hipnótico. Prefiro a seguinte descrição do evento teatral montado no teatro Poeirinha, no Rio de Janeiro, cuja temporada se esgota no próximo dia 23 de outubro: exercício de imaginação coletiva, conduzida por um maestro hipnótico, virtuose das artes da palavra, do diálogo, da construção de personagens, do movimento e da evocação cênica.
Os verbos apropriados para dialogar com Depois do Filme são estes: insinuar, sugerir, suscitar, propor e evocar. Nada no espetáculo é ostensivo ou reinvidica a objetividade que derivaria da autoridade de um autor demiúrgico. As cenas não provêm de um sujeito intangível, fora de cena, situado no centro de todas as coisas narradas, e cuja voz fosse a terceira pessoa ausente porém fundadora, fonte do sentido e da verdade como um deus-ex-machina. Não há um narrador-observador neutro. Tampouco a narrativa empurra o espectador para a posição na qual se iluda com a impressão de que vê os fatos narrados nas cenas com neutralidade ou com a sensação de que os fenômenos transcorrem à sua frente sem mediações, sem vetos e filtros, sem interpretação subjetiva e viés, sem véus ou máscaras.
Os fenômenos –acontecimentos, encontros e desencontros, palavras ditas e sinais emitidos, silêncios e pausas, corpos em marcha, gestos em deslocamento– não estão ali, diante do espectador, revelando-se, transparentes. São imaginados. Imaginados coletivamente, o que é extraordinário e, em vez de empobrecer a experiência teatral, a intensifica. Curiosa e talvez paradoxalmente, por não transcorrerem diante de nós, espectadores, as cenas se inflam com um sopro poderoso, que lhes confere uma carga vital inusitada. A verossimilhança, transferida ao tribunal das consciências individuais, submetida ao rigor de seus protocolos e ao crivo de sua fantasia, alcança uma potência rara.
Como se percebe, comecei pelo negativo: dizendo o que, a meu juízo, o espetáculo não é e não faz. Nisso, creio ser fiel à dramaturgia sobre a qual me debruço. Ela também começa por ser negativa antes de plantar suas colunas e erguer a plataforma de sua linguagem afirmativa. Negativa ao desconstituir expectativas e gramáticas convencionais que codificam a sensibilidade e as disposições comunicacionais dos espectadores, tais como costumamos ser, na rotina cultural do ocidente urbano e contemporâneo. Negativa ao propor o jogo teatral do modo como se espera encontrá-lo e desfrutá-lo, para logo surpreender e precipitar o espectador em uma aventura sem bússola do sentido e dos sentidos. As trilhas que não estão inscritas em mapas são fascinantes, porque misteriosas, mas inquietantes e até amedrontadoras, porque ignoradas.
O monólogo faz parte da gramática teatral. Se há apenas um ator em cena, antecipa-se, deduz-se o monólogo. Quando, entretanto, o discurso frustra a forma insinuada, assumindo a estrutura de enunciados breves, ordenados como um roteiro de cinema (“Exterior, dia, etc…”), cria-se um intervalo, uma fissura ou um lapso entre o método implicitamente anunciado –ou projetado pela expectativa da audiência– e o recurso narrativo posto em circulação pelo roteiro falado.
Uma característica fundamental e, de novo, surpreendente deste roteiro falado é a presença explícita das descrições e das instruções usualmente postadas na margem e dirigidas ao corpo técnico do filme para uso nos bastidores, não em cena aberta[1]. Trata-se de um making off, então? É a hipótese natural que decorre da primeira decepção, isto é, da expectativa frustrada de ouvir um monólogo. Mas por que um roteiro de cinema, se estamos em um teatro, diante de um palco?, indagam-se os espectadores. Traduzido para o teatro, o making off teria como equivalente um ensaio. Seria o caso?
Outro corte: não se trata de ensaio, nem de meta-teatro, mas de “vida”, “vida real”. As aspas aqui não são mero adereço de cena. A vida real se realiza sob a forma de fantasia compartilhada, via pinceladas magistrais do contador de histórias que incarna personagens: três mulheres e um homem.
Os laços são representados pela ponte, o celular e o automóvel.
Um homem no vão central da ponte prepara o suicídio, enquanto conversa com um amigo, ao celular. Um homem que envelhece e já não vê adiante tempo suficiente para as metamorfoses que talvez o salvassem da grande frustração. Um homem a quem falta coragem para matar-se, assim como lhe faltara coragem para viver, e que busca amealhar os restos de vitalidade para concluir o ato interrompido. O relato acompanhará sua jornada noite adentro, dia adentro, treva adentro, labirinto adentro, aos tropeços, entre encontros frustrados, até o despenhadeiro e a redescoberta, no fim, de que o mar do Leme pode remeter a um novo horizonte, a um possível reinício.
O desenlace dá-se quando o primeiro e único encontro com um personagem masculino face a face o salva do desastre, literal e metaforicamente, pela mediação de uma mulher, ao acaso, atravessando a babel das culturas e das línguas, perfurando a opacidade espessa que opõe rigorosa resistência à comunicação.
A transitividade como método e o cinema
Propus uma descrição do que acontece em Depois do Filme: exercício de imaginação coletiva, conduzida por um maestro hipnótico, virtuose das artes da palavra, do diálogo, da construção de personagens, do movimento e da evocação cênica. Explico: Aderbal anuncia cada cena como se lesse as notas técnicas de um roteiro cinematográfico, indicando, eventualmente, até mesmo a posição da câmera. Câmera que não existe assim como inexistem os personagens e suas interações, tanto quanto não estão lá os cenários mencionados. Só estamos presentes os espectadores e o ator. A voz que se ouve é a sua, emitida diante de nós. Os únicos instrumentos cênicos são a iluminação, a trilha sonora intermitente e alguma cadeiras dispersas no palco e fixadas na parede lateral, horizontalmente, como uma instalação de Marcel Duchamps.
Antes que o ator tome posse da arena, veem-se cenas do filme Juventude, de Domingos de Oliveira, com o diretor, Paulo José e Aderbal representando três amigos que se reúnem na serra, num fim de semana, em torno dos afetos, da memória e do envelhecer. O personagem de Aderbal chama-se Ulisses. Sua filha, Paloma, está doente. O tratamento é caro. Ele é médico mas não pode curar a filha. Precisa de um empréstimo pesado do amigo rico, que resiste.
As cenas projetadas são substituídas pela ação in loco de Aderbal, que adota o nome do personagem cinematográfico e o flagra tempos depois. Depois do filme. Assim como testemunhamos o ator, diante de nós, depois do filme, no tempo presente do teatro. Na imediaticidade da copresenca. Na urgência da comunhão de tempo e espaço. Na contiguidade material dos corpos.
As cenas são evocadas por um apelo à imaginação coletiva. E somos lançados em uma aventura sem paralelo: a imaginação coletiva é um esforço individual, entretanto vivido no mesmo momento e sob a mesma batuta, o que gera uma atmosfera perturbadora e eletrizante, porque a suposição comum da intimidade com o outro é explorada até o extremo da saturação, até o limite da simbiose, embora não se possa realizar, muito menos verificar, tratando-se, cada mergulho pessoal no imaginário, de uma experiência incomensurável e intransferível, a mais singular entre as vivências humanas.
Olhamos os espectadores nas cadeiras à nossa frente, virados de frente para nós, posto que estamos em uma arena, e supomos ver juntos o que não se vê, sentir juntos o que só existe no fundo de nossa fantasia mais pessoal.
A conversão no outro, a sobreposição simbiótica, a incarnação do espírito alheio saboreia-se no mesmo movimento em que se intui a solidão mais vertiginosa e irreversível.
Tudo isso é bem diferente da emoção usual proporcionada pelo mistério do teatro. Quando um monólogo é declamado, está ali o ator ou a atriz que o declama. Ela ou ele nos convida a compartilhar emoções e situações que descreve, mas entre a atriz e cada espectador as fronteiras não se diluem, como tampouco se neutraliza a distância entre os espectadores. Por mais que a imersão em um mesmo fluxo de sentimentos e imagens nos aproxime, as individualidades permanecem relativamente estabilizadas.
Tudo o que foi dito sobre Depois do Filme também se distingue do teatro com diálogos e cenas interativas. Cada personagem é uma comprovação da verossimilhança do outro, o qual atesta, por sua vez, a existência significativa do outro ao reconhecê-lo como interlocutor. A verossimilhança ergue-se como um balão inflado pelo sopro conjunto de fantasmas cuja realidade é dada pelo outro, numa regressão especular e espectral ao infinito. O outro de cada fanatsma não é mais que o clamor de uma pretensão análoga à existência significativa, isto é, à existência para o espectador. Espelhos contra espelhos, em profusão, em procissão, virados uns para os outros, a divertir-nos, a contagiar-nos com a fantasia que compartilham.
Sem o suporte do outro ator, amparando o espectro de outro fantasma-personagem, como poderia o primeiro adquirir o status de dramaturgicamente real, crível, funcional e comovente?
Sem a rede vaporosa de fantasias erguidas umas sobre os ombros das outras, como poderíamos ver, enxergar, sentir e reconhecer as situações, os objetos, os cenários, as dinâmicas dramáticas, as coisas que habitam o mundo ficional montado sobre o palco?
Pois podemos, sim. Aderbal o demonstrou. Mesmo na falta de outros. Inclusive na ausência do modelo tradicional do monólogo. Ainda assim, apenas com a evocação de personagens e circunstâncias, a realidade dramatúrgica emerge e sustenta-se, comovendo e nos marcando com seus açoites, seus afagos, seus remédios.
Evocação corresponde a uma determinada metodologia performática ou a certa modalidade de construção de personagem. O ator que recebe a entidade-personagem como um cavalo em transe, e o cerebral, que esgrime o personagem com distanciamento crítico, dependem, ambos, de uma ordem cênica de outro tipo. No caso do roteiro-em-cena, proposto por Aderbal, o que marca o trabalho do ator é a transitividade entre as posições do relator da cena (o meta-ator, ou o narrador, ou o coro de um só homem) e do personagem que a vive, que a explora por dentro. Contudo, os limites entre dentro e fora são precários e as transformações, sutis.
Some-se a esse repertório de ingredientes, um aspecto delicadíssimo e tão óbvio e simples quanto refratário à percepção imediata: o roteiro proclamado antes das cenas, como molduras a circunscrevê-las e conectá-las, não é teatral, mas cinematográfico. Por isso refere-se à câmera. Se a referência fosse o teatro, veríamos (com o sexto sentido da imaginação) o teatro anunciado. Tratar-se-ia da crônica de um teatro anunciado e enunciado. Uma variante do meta-teatro. Não. Há um degrau para tropeçarmos. Há ainda um grau sutil mas decisivo a afastar-nos, mais uma vez, da realidade descrita pelas palavras pronunciadas. O que se anuncia é cinema, o que se vê é a fantasia evocada pelo gesto teatral. A tal ponto é importante esta volta do parafuso dramatúrgico que, quando nos abandonamos à realidade –despojada porém sólida– finalmente atingida do teatro, ela se furta e nos é negada. Deparamo-nos com a irrealidade do que suscitava em nós, espectadores, a impressão do fim da espiral imaginária. É ainda outra a realidade. A realidade é outra, diferente, portanto, do que conhecemos e esperamos, controlamos e palmilhamos. Ou outra porque sempre fora do lugar em que a procuramos. O efeito inquietante provoca a vertigem, simultaneamente da razão e da sensibilidade. Como também nós somos objeto de nosso escrutínio, também sobre nós recai o feitiço da des-realização, porque tampouco nós, enquanto objetos da auto-reflexão, estaremos onde nos procurarmos. Por isso, assim como os alvos da inquirição, também nós, sujeitos, estamos fora de lugar. E é esta nossa condição. O que, por certo, relativiza os próprios dilemas da verossimilhança dramática e da imaginação coletiva evocados pelo xamã hipnótico.
O filme que antecede a cena teatral volta a impor-se como plataforma da experiência narrativa e horizonte das fantasias coletivas. Mas o filme já não está onde o vimos e dele apenas herdamos os vestígios, tanto quanto deles sua linguagem se alimentara. Claro, o filme não é o começo. Ele remete a um nexo anterior. Mas não haverá cena anterior desprovida de fantasia e dramaturgia, qualquer que seja a arena da vida. O que nos torna cativos da máquina de sonhos de que somos feitos. Por isso, mesmo antes, sempre nos situamos depois do filme, porque o solo a partir do qual nos erguemos como personagens compõe-se de tramas das fabulações que pudemos narrar e compartilhar.
Panorama visto da ponte: três mulheres, Valentim e Paloma
As três mulheres correspondem a três vetos distintos à relação: (a) a amiga-amante que rejeita o protagonista; (b) a desconhecida que discute uma relação inexistente, confundindo o protagonista com o marido, tomando-o por quem ele não é; negando-o, portanto, por meio da troca de automóveis e papéis; (c) a vendedora boliviana de bugigangas na praia que recusa a abordagem, porque é casada com homem ciumento.
A quarta mulher será a filha, afastada do pai pela interposição do homem com quem se casa e do mundo obtuso e luxuoso deste homem. Mas em nenhum momento a filha estará presente. Seu nome será apenas referido. Ela será o ponto de fuga na cadeia de vetos e obstruções.
O primeiro veto dá-se no plano da afetividade e da intimidade: falando-se a mesma língua da subjetividade, os sujeitos se repelem.
O segundo, na esfera da ilusão e do engano, em que a língua é a mesma, porém os sujeitos que a falam não são mutuamente identificáveis ou reconhecíveis, confundem-se, misturam-se em suas máscaras, em suas personae.
O terceiro, no âmbito formal e institucional, em que as línguas são substantivamente diferentes e o obstáculo está regulado na própria constelação de papéis –identificados, formalmente, pela instituição: o matrimônio.
A primeira mulher tem endereço. Mora em um apartamento ao qual o protagonista tem acesso barrado, vence a barreira e termina derrotado pela barreira. Ela tem lugar fixo.
A segunda está em um carro e o troca por outro, confundindo o meio de transporte com o espaço doméstico, onde se abre com o marido. O veículo é um meio que remete a deslocamento.
A terceira está sempre na praia, espaço comum, lugar de todos e de ninguém, em que não há posições fixas, mas onde o pouso e a fixação provisória podem ocorrer.
As três distintas relações com o espaço ganham funções especiais quando confrontadas com o mar, cujo significado oscila entre a sepultura do suicida e o horizonte de seu possível renascimento. A ambivalência devolve ao sujeito a responsabilidade pelo gesto que atribui sentido. A fluidez da água é receptiva às opções contraditórias e extremas. O sujeito absorve o poder de decisão. Assume na integralidade o papel de fonte do sentido. O mar é espelho. Um imenso vazio que acolhe projeções.
A ponte liga os pólos opostos na geografia do sujeito, permitindo o tránsito entre os pontos (o protagonista suicida e, no fim, esperançoso), o que implica infundir incerteza e insegurança no espírito apaziguado (papel diabólico, perturbador), mas também implica acender o clarão da dúvida na sombra do desespero. Os polos são permeáveis a seus contrários.
Eis aí, na tensão matricial em que se instaura o sentido, a possibilidade da vida e da dramaturgia. Da vida como desassossego e esperança, desamparo e aposta. Da dramaturgia como universo em que convivem as contradições, no qual as polaridades deixam-se contaminar pela vontade feroz e vital de seu oposto, liquidando certezas, atazanando consciências em paz, pacificando espíritos em guerra.
A primeira mulher está mais distante do mar do que a boliviana, porque esta última demarca os limites com mais solidez e consistência: as línguas são efetivamente diferentes e há o abismo cavado pelo casamento, sinal da norma institucionalizada, sancionada pelo Estado –poder que transcende os indivíduos e suas idiossincrasias.
Entre o apartamento bem instalado e a praia, está o carro, feito casa duas vezes, veículo para circular entre polos e possibilidades, mas também espaço apto a simular a casa, ainda que sempre em condições melancólicas, que remetem mais a desabrigo e confusão de papéis do que a abrigo e acolhimento. Mesmo quando usado como casa, o carro sugere movimento e torna a imagem difusa, indiscernível, meio rua, meio sítio doméstico, meio elo entre alternativas, a caminho de cada uma, embora as excluindo. Automóvel, o que se desloca, leva e traz para opções de vida diferentes e opostas, até virar arma, virando-se pelo avesso e virando ao avesso os horizontes do protagonista.
O espelho que a iminência da morte propõe ao protagonista, como um enigma –depois que o sertão virou mar e o mar, sertão, depois que o alto pôs-se a baixo e o baixo, ergueu-se, depois que o carro virou, e a vida–, é o hippie latino-americano, que ele não foi. O protagonista preferiu formar-se em medicina e seguir uma carreira no hospital público de São Gonçalo. Carreira que não foi capaz de lhe garantir o amor próprio nem o de sua filha, Paloma –a mediadora, pomba da paz que une as pontas do destino. A filha voou para os braços de um yuppie confortavelmente instalado na caretice do mercado, e usufrui as benesses que o vértice superior da escala liberal-darwiniana lhe proporciona. O pai não tem lugar nos salões dessa corte que ele desdenha.
Talvez ele tenha perdido sintonia com o canal de comunicação afetiva e simbólica da filha não por ter seguido tal ou qual caminho, mas por ter hesitado entre todos os caminhos, mantendo-se no carro, indeciso, impreciso, incompleto, fragmentado, errante. O automóvel reduz o lugar do protagonista no mundo a um prosaico e incessante vai e vem, a um lusco-fusco incerto, frágil, poroso, oscilante, de imagem difusa e identidade esmaecida.
Radicalizar a oscilação e provocar a capotagem do veículo foi o primeiro passo para uma promessa de fixação. Pelo menos, um ensaio de ruptura com a circulação entre a vida e a morte, o sim e o não. Entre a nudez sob a chuva do êxtase pagão e a mimetização histérica do desalento, do desabrigo, do exílio.
Ser salvo pelo marido da boliviana remete o protagonista a um campo simbólico em que superpõem-se dois conteúdos, apenas na aparência contraditórios: por um lado, a solidez estável e bem marcada das normas, da vida institucionalizada e da língua estabelecida, ainda que em sua pronunciada estranheza; por outro lado, a vida nas margens, a experiência limite dos estrangeiros, que se inscrevem no território do Outro sem aderir à imagem da alteridade, sem renunciar à diferença, entretanto negociando com o Outro por meios estáveis, fortes, duradouros, criativos, flexíveis e aptos à intertradutibilidade.
Por exemplo: a arte. Por exemplo: o teatro. Por exemplo, o comércio na praia e o casamento com Valentim.
De que modo se comunicam a transitividade como método de construção dramatúrgica e a trama evocada no relato? Se me fosse permitido recorrer a uma dualidade metafísica absolutamente imprópria, mas aqui talvez útil, diria que a forma é necessária ao conteúdo. Indispensável. Se, em Depois do Filme, os personagens e suas vias de solução do enigma humano são campos de experimentação e linguagens mutuamente traduzíveis, se os caminhos individuais são postos de observação do fenômeno existencial abertos à frequentação pela poiesis imaginária, se os polos extremos são estações pelas quais nos é dado circular, é porque a transitividade nos é acessível e talvez constitua a arte mais rigorosa e iluminadora. Se as possibilidades do humano nos dizem respeito, todas, sempre, é porque podemos percorrer as mais variadas arenas subjetivas por meio da interpretação empática e da compaixão, metamorfoseando-nos –como o poeta–, seres permeáveis e transitivos. É porque as podemos narrar e reviver, dramaturgicamente. É porque as podemos, portanto, transformar.
[1] Flora Sussekind e Gerald Thomas mostraram o potencial dramatúrgico resultante de explicitação análoga para montagem de Nelson Rodrigues.