É verdade que Moro e Bolsonaro reduziram a criminalidade?
(Postado no Facebook em 12/01/2020)
Que o governo tente faturar dados criminais dramaticamente elevados, como 50 mil homicídios, porque são 10% menores do que aqueles referentes ao ano anterior, é do jogo, mesmo que esse jogo seja desonesto. Agora, que jornalistas ou cidadãos com formação universitária comprem o discurso ufanista, acriticamente, é mais que lamentável, imperdoável. Como nos mostram dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Fbsp Fórum Segurança , analisados por Renato Sergio de Lima e expostos em sua entrevista ao Estadão, publicada em 2 de janeiro, a redução tem início em 2015, em 9 estados, se expande para 15 estados, em 2017, e para 24 estados, em 2018. Somente em 2018, torna-se suficientemente difundida para impactar o número total, o dado nacional agregado, impondo inflexão à tendência de crescimento anterior. Portanto, os dados de 2019, no que diz respeito aos homicídios dolosos, eram esperados e deram continuidade à dinâmica em curso. As variáveis que estão sendo examinadas pelos pesquisadores, como hipóteses, incluem ações dos governos estaduais, na linha da integração e do suporte à inteligência, e mudanças nas estratégias e nas modalidades de disputa e de relacionamento entre as organizações criminosas. Sabemos, por exemplo, que fundamental para a queda de homicídios em SP, verificada desde o final da primeira década do século, foi a decisão do PCC de submeter assassinatos ao crivo centralizado de instâncias superiores. Os casos locais e regionais exigem estudos específicos e os processos são complexos e as linhas de causalidade são múltiplas. Em 2019, a principal ação do governo federal foi a flexibilização do acesso a armas e, sobretudo, munições, cujos efeitos só se farão sentir a médio prazo, e não há dúvida de que serão amplamente negativos: como demonstrou Daniel Cerqueira, a cada 1% a mais de armas circulando corresponde um aumento de 2% na quantidade de homicídios. Infelizmente, é esperar para ver. O que se destaca como influência do governo federal, no campo da segurança, é o crescimento da brutalidade policial letal, sempre contando com o estímulo, ou a anuência, ou a cumplicidade, tanto dos governos estaduais (onde ocorre o fenômeno), quanto do MP e da Justiça. Os feminicídios explodiram (no Rio, o aumento foi de 24%) e os roubos continuam em ritmo acelerado. No Rio, como tem nos mostrado Silvia Ramos, a violência policial letal bateu recorde histórico: até novembro, houve 1686 mortes provocadas por ações policiais, um aumento de 16,6% em relação ao mesmo período do ano anterior (ano da intervenção militar), que já registrara um recorde. Na cidade, cerca de 40% do total de homicídios foram cometidos pelas polícias. Em certas áreas, 55%. No interior, mais de 30%. Como disse nosso amigo Pedro Abramovay, está havendo, no Rio, a estatização da violência letal. Eu complemento: em vez de prevenir e reduzir os homicídios, o Estado está substituindo os criminosos, assumindo ele mesmo o protagonismo criminal. As vítimas continuam sendo jovens negros e jovens pobres dos territórios vulneráveis. Quando Bolsonaro faz a coreografia estúpida da arminha em punho, atirando a esmo, policiais, na ponta, sentem-se empoderados e estimulados a matar. Quando, ao incentivo perverso federal soma-se o entusiasmo genocida do governador, o resultado é o banho de sangue, em curso no Rio. Finalmente, observem o seguinte: contradizendo a afirmação do governador do Rio de que os roubos caíram, as milícias têm expandido seu domínio, enriquecido e se fortalecido, sem qualquer repressão governamental. E o que fazem as milícias, além de torturar e matar, e impor sua tirania sobre comunidades e territórios? Elas subtraem propriedade alheia mediante violência ou grave ameaça, cobrando taxas sobre todas as atividades econômicas existentes na comunidade e, cada vez mais, também sobre habitação, transporte, água, luz e gás. Segundo o código penal, as milícias, entre outros crimes, praticam roubo. Mas esse roubo, que ocorre às centenas de milhares, não é computado pelo excelentíssimo senhor governador, que, aliás, foi juiz. No Rio, milícias já traficam drogas e armas, há tempos, e ajudam a eleger políticos, quando não são, os próprios milicianos, candidatos. A lógica da milícia chegou ao poder e já ameaça, no país, as instituições, aquelas que um dia foram tidas como esteios do Estado democrático de direito. Via poder miliciano, segurança e política se superpuseram, não só no Rio. Não me venha o ministro Moro celebrar melhora da segurança quando o sistema penitenciário continua dominado pelo crime organizado e as milícias se expandem, sem limite. Lembremo-nos de que milicianos são policiais e que, portanto, estamos falando de polícias. Suspender os parcos controles que há sobre as polícias e enaltecer torturadores e perpetradores de chacinas apontam para a afirmação de poderes intra-policiais, que prosperam à margem das instituições, nutrindo-se, como parasitas e zumbis, das próprias instituições. E dão ao descontrole, à fragmentação, à multiplicação de “baronatos feudais”mafiosos, o nome de ordem? A ordem é o que se fortalece, com a segurança patrocinada por Bolsonaro e Moro? Ou é a corrosão da ordem democrática, o que avança no submundo policial-miliciano, preparando a dissolução institucional para um golpe? Enquanto isso, segue a criminalização da pobreza e a voracidade do encarceramento, com a insana guerra às drogas. Por tudo isso, saudar o que está acontecendo como diminuição do crime só pode ser desonestidade intelectual ou adesão a um projeto de sociedade degradante e fascista.