(1) A mobilização estudantil é parte da história de nosso país. Os estudantes tiveram e têm muita importância por sua ação política em geral crítica, sensível às grandes questões democráticas e populares. Nos últimos 20 anos, mais ou menos, as entidades nacionais mais relevantes por sua tradição, como a UNE, foram aparelhadas pelo PCdoB, em acordo com outros partidos, o que esvaziou a força de sua voz, abalou sua legitimidade e sua representatividade. Sobretudo depois que o PCdoB passou a gravitar em torno do governo do PT. Quando governo se confunde com Estado, com partido e com entidades da sociedade civil, o castelo não se sustenta: ou se cria um aparelho-catedral, como o PRI, mexicano, que se deteriora ao eternizar-se no poder, convertendo-se em instrumento conservador e corrupto, ou desaba ante a vitalidade da vida social, e é substituído no curso dinâmico dos processos históricos. Mas os movimentos estudantis no plural não se esgotam em partidos disputando quem aparelha o quê. São muito mais que essa crônica melancólica. São potência criadora e subversiva no melhor sentido da palavra, isto é, são combustível para o aprofundamento da democracia e a radicalização da justiça.
(2) Quanto ao evento referido, digo o seguinte: para mim, subversão transformadora, que desnaturaliza o senso comum e a velha ordem desigual e iníqua, faz-se com o exercício incansável da dúvida. A dúvida se manifesta sob a forma do diálogo, do questionamento e do auto-questionamento. Nada mais radicalmente oposto aos dogmas e aos fundamentalismos —pilares dos autoritarismos, dos preconceitos e da violência- do que a dúvida. Por isso, costumo dizer que quem grita em uma reunião, expondo sua posição ou seu argumento, é porque não tem coragem suficiente para viver a radicalidade da dúvida e tenta convencer-se a si mesmo. Ilusão: o tom elevado da voz não eleva o grau de verdade das frases, não aumenta a certeza, nem convence com mais eficiência os interlocutores. O grito é sintoma de insegurança e medo de duvidar. Gritar é tentar exorcizar a dúvida, é encobrir o rumor da própria incerteza. É também a dramatização da força por meio da voz e das palavras. Um simulacro da violência. Não gosto dos gritos, salvo da massa na rua, porque nesse caso a dramaturgia é outra. Quando não é um expositor que alardeia seus argumentos aos berros numa reunião, mas, pior do que isso, é todo um grupo que ergue uma barreira de vozes para impedir que outros falem, enquanto esses outros tentam falar, o que se instaura é o teatro inquisitorial contra a dúvida, pois quem se recusa a ouvir outras vozes e argumentos é porque deseja afirmar a certeza de suas convicções, mas não consegue fazê-lo dialogicamente, argumentativamente. É por isso que o faz pela força da voz-pedra, da voz-parede, da voz-embargo, da voz que censura, da voz que castra, voz que afirma seu poder pelo tom e a intensidade em lugar da fala, da ideia, que é troca. O som de vozes erguidas como barreira cancelam conceitos, análises, avaliações, com suas nuances, mediações, sutilezas, complexidades. A complexidade não se pronuncia aos berros em coro para calar os outros. Não há ideia digna desse nome que não seja passível de dúvida, que não seja histórica e finita. Mas as vozes que se levantam para que outras vozes não se ouçam, em sua individualidade, pluralidade, contraditoriedade, as vozes em uníssono dos cantos de guerra, das palavras de ordem, essas vozes-barreira são símbolos de ordem autoritária, símbolos de uma homogeneidade que reivindica o estatuto da verdade sem fissuras, sem poros, que reivindica a certeza —certeza que, reitero, é o oposto do pensamento e do diálogo, do questionamento e da possibilidade de transformação. Nada mais autoritário, velho, conservador, obtuso, obscurantista, redundante, refratário à criatividade e à invenção. A estética daquela dramaturgia é o avesso da dúvida e do convite à mudança e à participação democrática. E tudo isso aconteceu na universidade, que deveria ser o espaço por excelência da dúvida, do desejo de duvidar, da disposição para duvidar. Falta coragem a esses estudantes: coragem para se abrir à dúvida, para ouvir o Outro (dentro de si e na sociedade) e para admitir o contraditório sempre. O pessoal não percebeu que agir com violência (simbólica ou não) é mimetizar o Outro-violento, é engendrar-se como espelho do inimigo, é reproduzi-lo, tornar-se igual a ele, dar-lhe sobrevida, entregar-lhe a vitória na bandeja de prata, é sacrificar a própria cabeça, a própria potência crítica e transformadora. Fizeram um teatro de péssima qualidade, hostilizando pessoas respeitáveis, em particular um colega da melhor qualidade humana e profissional, um cidadão extraordinário que arrisca sua vida há anos pelas causas mais nobres dos direitos humanos, resistindo como poucos à violência do Estado: Ignacio Cano. Os estudantes encenaram uma performance sem alma nem vitalidade e encarnaram ali o pior da polícia que pretendiam denunciar. Eu não quero a caretice da academia engravatada, quero efusões criativas e novas estéticas. Não me apetece a poeira de universidades caducas e me revolta o sangue que escorre das armas de polícias brutais. Mas me causa a mais profunda tristeza ver meninos e meninas que conheci em momentos mais auspiciosos vestindo fardões empoeirados, brincando de senhores dos trovões com as armas e os escudos de seus supostos inimigos, imitando sem perceber o que pensavam rejeitar. Que melancólico equívoco. Pensei que eu estivesse velho, mas, diante deles, sou um adolescente solar. Pensei que eu fosse um ancião reformista, mas, diante deles, sou um revolucionário de almanaque, um menino insurgente.