Entrevista a Helio R. S. Silva, publicada pela revista virtual Iluminuras, sobre etnografia
ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
Hélio R.S. Silva1
1 Faculdade de Educação da Baixada Fluminense/Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil.
Hélio Silva – Penso na expressão de Malinowski, “limites e alcance”. E penso ainda que nossa conversa bem poderia orbitar em torno de uma questão: quais os limites e alcance da etnografia hoje? Dizendo isso, lembro de seu livro, O rigor da indisciplina, publicado em um momento em que havia certa efervescência em torno da questão.
Luiz Soares – Alguns capítulos, alguns dos textos e artigos foram reeditados no meu livro Legalidade Libertaria, em 2006, mas alguns apenas. Justamente para que eles pudessem se manter acessíveis, porque pessoas me pedem e eu não tenho em versão digital, na época não havia, pelo menos não entre nós. Eu gosto daqueles dois livros – Os Dois Corpos do Presidente e O Rigor da Indisciplina – eles são quase que um esforço único, por distinções internas, mas se complementam de alguma maneira. Os temas são variados, e eles – em perspectiva – estão presentes para mim até hoje. Continuo vivendo aqueles impasses e, ainda, esgrimindo com aqueles argumentos ou contra-argumentos. Mas são muito amplos. Eu acho que, se a nossa questão mais específica é a etnografia, há alguns textos que mereceriam atenção, particularmente “Trotsky e Travesti”. Não sei se faz justiça ao seu trabalho, Hélio, mas o toma como referência. Seu trabalho mostrava como certas estratégias narrativas, alguns recursos formais da linguagem, na composição do relato, são símiles invertidos e críticos de discursos que substituem o raciocínio pela verossimilhança. Na sequência, comparo sua etnografia – Travesti: a invenção do feminino – com algumas passagens da história da revolução russa, de Trotsky, especialmente aquele trecho extraordinariamente importante em que a revolução eclode e a obra descreve a emergência desse evento que marca a história do século. Um evento evidentemente nuclear para sua obra escrita e para sua vida. Trotsky, ou melhor, sua voz narrativa descreve fatos que se sucedem e movimentos de protagonistas de tal modo que a sequência de ações, de personagens distintos em cenários diversos convergem para o clímax que é a explosão revolucionária. Há ali um virtuosismo de Trotsky, ou da voz autoral. Ele era um senhor Hélio R.S. Silva
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escritor. A estrutura narrativa confere à descrição a aparência de realidade empírica, como se fosse, por assim dizer, fiel aos fatos. O relato edita, quase como Enseistein o faria, a corrente de eventos. A voz na narrativa, ou seja, a estrutura pela qual ela se ordena, infunde uma naturalidade orgânica ao desfecho como se ele fosse dedutível dos fatos precedentes, como se fosse um corolário do que o antecedeu, de tal forma que o elemento surpreendente, que é o próprio evento, sua indeterminação, sua imprevisibilidade se esvaem. Todas estas qualidades que correspondem à contingência do evento se esvaem. O evento se converte no resultado esperado e previsível da transição entre as cenas que compõem o fato. A dimensão indeterminada das transições que conduzem ao evento é domesticada. A face contingente dos elos subsequentes da corrente de atos é conjurada pelos elos anteriores, pelos momentos precedentes, como se fosse, repito, o desfecho se reduzisse à sequência orgânica, natural e dedutível dos passos anteriores, no âmbito da narrativa. Portanto, causas e efeitos parecem fluir numa espécie de equação transparente de um teorema translúcido, numa prosa econômica, precisa, aparente e supostamente fiel aos fatos. Nesta edição dos fatos relatados, o discurso produz um efeito de verossimilhança que converte uma sequência narrativa numa argumentação, num raciocínio, numa reflexão, em uma formulação que vai se sustentar inclusive teoricamente. Tal prosa vai refletir expectativas que estão presentes na teoria com a qual Trotsky se identifica. Na verdade, debruçando-se sobre esta obra historiográfica como um texto literário, como um engenho de linguagem, observando sua urdidura, sua tessitura formal, estética propriamente, nós surpreendemos esse truque, essa magia, esse encantamento do artista. Do artista, quero dizer, desse autor virtuoso, não necessariamente da figura Trotsky, mas dessa voz narrativa. E isso é extraordinário porque é capaz de promulgar esse contrabando de tal modo que os leitores entendendo aquela obra, e a lendo num contexto que a define como historiográfica, fiel a fatos, empírica ou leal aos princípios da empiria, os leitores tenderão a seguir o percurso da leitura convencidos de que havia ali, no relato, a demonstração de que certas causas produzem certos efeitos. O extraordinário é que houve um grande mal-entendido. O soar de um canhão, uma embarcação, medo, expectativas, projeções, movimentações mal interpretadas, toda essa babel acabou suscitando um movimento precipitado que podia não ter dado certo se não encontrasse também, por outro lado, tantos outros mal-entendidos do outro lado. E a revolução triunfou, naquele momento. Eu não estou querendo reduzir toda complexidade histórica ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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de um processo envolvendo milhões de pessoas e dinâmicas políticas das mais distintas, tudo isso àquele momento fortuito. Mas aquele momento fortuito foi decisivo, cumpriu um papel subsequentemente fundador; desempenhou uma função matricial no sentido prático, inclusive, não apenas simbólico. O momento não é o resultado das causas previstas em determinadas teorias. Aquele momento foi fruto, insisto, de um grande mal-entendido. Evidentemente ele era uma das possibilidades postas pelas circunstâncias históricas, senão a revolução não se afirmaria, não teria sustentabilidade, não poderia se desdobrar; mas a sua natureza singular como evento, esta se perde, porque era mais importante demonstrar tacitamente a teoria marxista – ou a necessidade revolucionária, orgânica, inscrita na história – do que propriamente destacar como processos interlocucionários, interativos, conflitivos (com interpretações que se chocam), poderiam suscitar resultados inesperados, que coincidem com certas expectativas, em um arranjo que sobrepõe, então, a verossimilhança à explicação. Por outro lado, no seu trabalho, Hélio, eu identificava o contrário. Um tratamento da linguagem, um refinamento, uma autoconsciência reflexiva que evitava justamente esse tipo de truque ou de magia, de estratagema. “A invenção do feminino” exigia uma acuidade crítica não só para o leitor que se debruçasse sobre a questão do gênero ou do feminino, do masculino, do conflito humano, da violência, da afirmação de identidades, ou das negociações e renegociações em torno de supostas identidades. Exigia também acuidade no reconhecimento de que havia ali uma mediação, a mediação da linguagem, da narrativa, do relato, da etnografia. Então, o seu modo de presença, como autor, a sua forma de construir – muito autoconsciente, e ao mesmo tempo muito sofisticada – permitia que se vislumbrassem alguns detalhes tão importantes quanto os eventos mais graves e o contexto e, ao mesmo tempo, sem que o leitor em algum momento fosse conduzido a supor uma relação imediata, ingênua, neutra, direta, transparente, com os fatos. A presença mediadora da etnografia é o que se dá a conhecer, com seus limites e seu alcance. Meu artigo procurava mostrar duas formas de lidar com a linguagem e os seus efeitos, seus resultados. Procurava sugerir uma reflexão mais ampla sobre potenciais da etnografia, etc. Sobretudo era uma tentativa de valorizar o trabalho etnográfico, a sua complexidade, mostrando como era indispensável a análise literária dos discursos sociológicos, históricos e etnográficos. Linguagem literária entendida como estética em seu sentido mais abrangente. Eu dei um curso no IUPERJ – O uso da análise literária na interpretação dos fenômenos sociológicos, no final dos anos 80, Hélio R.S. Silva
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início dos 90. Procurava reunir cientistas sociais e analistas da literatura, trabalhando com textos etnográficos e textos literários, para mostrar certa transitividade. A despeito das especificidades, havia ali – para nós – muito a aprender. Eu apliquei esta convicção – repito que não é original – num ensaio escrito naquela época, ensaio de mais fôlego, mais denso, chamado A Ética do Crime (que republiquei em meu livro de 2006, Legalidade Libertária – Lumen-Juris), em que eu analisava a biografia de presos, a partir de entrevistas longas sobre suas histórias de vida, focalizando a forma de seu discurso e o que se poderia extrair da estética da fala na própria construção analítica. Para aproximar aquele meu livro de que você falava ao nosso tema, talvez este fosse um caminho.
Hélio Silva – Quando estava falando de Trotsky, você falou do caráter virtuoso do seu texto e que se tratava de um grande escritor. Então você usou uma série de adjetivos privilegiando essa enorme capacidade expressiva, enfim, literária, do autor. Eu me lembro que há muitos anos atrás, uma vez, conversando com você sobre Clifford Geertz, você me disse: “- …, mas o Geertz não tem uma metodologia, ele fala em descrição densa, mas parece que isso está a depender do talento. ” Há alguma analogia com o que você sublinha a respeito do caráter virtuoso, no caso do Trotsky? Somos professores, ensinamos metodologia e estamos formando etnógrafos. Em que consiste essa prática pedagógica? O exemplo de Trotsky parece reintroduzir a questão do talento…
Luiz Soares – Este é um ponto muito importante, sem cuja elaboração, de fato, acabamos por nos condenar ao pântano da metafisica do sujeito, ou de vacuidades retóricas e de uma sub-psicologia da criatividade, com efeitos danosos em todos os sentidos. É preciso muito cuidado e muita atenção de fato. Eu começo me lembrando de duas outras observações. Uma professora amiga nossa que diante do seu texto, discutindo comigo o meu texto a respeito da sua obra – A invenção do feminino – me diz: “De fato, reconheço, o Hélio escreve muito bem”. E eu respondi – um pouco mais delicadamente-, mas eu vou ser aqui mais grosseiro e direto -, negando e recusando aceitar esse qualificativo. Eu disse: “Não estou dizendo isso, eu não estou dizendo que o Hélio escreva bem, eu sei que ele escreve bem, e muitos autores, antropólogos ou não, escrevem bem. Escritores vários escrevem bem, isso quer dizer muito pouco. ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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Certamente não quer dizer aquilo que é o objeto das minhas afirmações. Escrever ‘bem’ significa dourar a pílula, significa tratar com certos adornos, dispensáveis, supérfluos, suplementares, a carne, a substância, a vertebração dos argumentos ou do próprio relato.” Em geral esta referência ao “bem escrever” me lembra um pouco as “belas letras”, a “bela arte”; algo que remete à retórica, ao estilo, não ao sentido contemporâneo da retórica, revigorado a partir dos anos 1940/50, e tampouco ao sentido aristotélico, que era muito relevante para a política. Refiro-me à retórica tal como ela acabou se degradando depois do escolástica, segundo, pelo menos, os intérpretes eruditos que se debruçaram sobre o tema. A retórica esvaziada tornou-se uma área de desenvolvimento, de estudo, de treinamento capaz de adocicar, de tornar os instrumentos da oração e da escrita mais conformes às expectativas elevadas de certa elite intelectual, de um certo momento, etc. Isso não tem rigorosamente nada a ver com o escrever reconhecendo o primado da linguagem. E escrever reconhecendo o primado da linguagem, ou da estética, ou da forma – uso a dicotomia forma e conteúdo apenas didaticamente, sem considerá-la aceitável, do ponto de vista teórico. Didaticamente eu uso a dualidade salientando a forma – para que se compreenda a relevância da estratégia narrativa, da sua estruturação do relato. Estruturação na qual evidentemente forma e conteúdo estão sempre inextricavelmente unidos. O desprezo pela linguagem, pela construção narrativa, pelas estratégias formais, pela edição do texto – na acepção cinematográfica do termo -, este desprezo me parece um desvirtuamento e condena à impotência o trabalho da escrita. O desvirtuamento remete ao seu oposto, a virtude, que estaria no reconhecimento da centralidade deste grande mediador que é a linguagem. E há um corpo a corpo com as palavras, o corpo a corpo do poeta, do escritor e de todo aquele ou, de toda aquela, que se debruça sobre o conhecimento, a comunicação e o juízo. Conhecimento este que pressupõe a identificação de significados como a tarefa da interpretação e, que é, portanto, o campo em que nós operamos nas ciências humanas e em nossa vida comum, social. Vamos recordar a professora que reconhece: “Sim, eu entendo o que você diz: ele escreve bem!” Acho que está mais claro agora porque me recusei a reduzir aquilo que de fato constituía e constitui o objeto do texto “A invenção do feminino” – e seu método, sua forma, indissociáveis, neste caso, do objeto -, às belas letras, a um evanescente talento que nos pudesse seduzir. Outro caso: um professor do Museu Nacional, numa banca (não me lembro se de doutorado ou de mestrado) diz o seguinte: “Fulano escreve muito bem e isso me preocupa muito. Isso está muito bem Hélio R.S. Silva
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escrito. O que para mim, significa um imenso risco e um problema.” Esse professor de alguma maneira talvez se aproximasse do sentido da linguagem como uma mediação complexa que permeia todo o trabalho e, talvez, ele se aproximasse dessa crítica ao bem escrever, quando o bem escrever não é mais do que retórica, no sentido de supérfluo, suplementar. Mas não era esta a intenção do professor. Ele dizia que o tratamento da linguagem, a atenção pela linguagem, essa ourivesaria lhe parecia muito… quase um fetiche, uma espécie de ilusionismo, prestidigitação que afastaria o leitor dos argumentos, do sentido cientifico, digamos assim. O literário funcionaria aí como um canto de sereia a encantar os leitores incautos, desviando-os do conteúdo, propriamente. Conteúdo científico seria aquele independente da forma. E aí está a razão de minha recusa em aceitar o argumento. O pressuposto deste argumento do qual discordo é este: são supérfluas as soluções formais. De meu ponto de vista, elas podem ser funcionais ou não, adequadas ou não, mas certamente estão no centro de qualquer consideração a respeito da construção etnográfica ou da constituição de conhecimento em nossa área, seja ela História, Antropologia, ou mesmo Sociologia ou Política. Portanto, são dois casos interessantes. “Cuidado com a linguagem!” Ou: “Ah! Que bonito escrever bem.” Nas duas observações, percebo um allheiamento completo em relação à linguagem -que está, entretanto, no centro das Ciências Humanas, das Ciências Sociais, da Psicanálise e da Filosofia. Por isso, me preocupa, me choca, me surpreende, esse tratamento. Geertz (Clifford Geertz) apresenta a ideia da possibilidade do controle metodológico e a necessidade, portanto, de que outro vetor se interponha para conduzir a interpretação, distingue o piscar de olhos, da…
Hélio Silva – Piscadela…
Luiz Soares -… diferenciar a piscadela, que é intencional, do piscar mecânico… dos olhos. Esta é a distinção a que Geertz se refere para definir ou indicar, ou circunscrever o que o etnógrafo faz. O etnógrafo é capaz de distinguir a piscadela, que tem um significado num certo contexto interlocucionário, do movimento da pálpebra, que é instintivo ou mecânico, proveniente de qualquer outra motivação, física, orgânica. Ou seja, o antropólogo, o etnógrafo, seria capaz de identificar nos movimentos dos atores e nos sons produzidos, os signos do que é ruído aleatório. Geertz representa, para minha geração pelo menos, um grande desafio, porque nos remete a toda uma reflexão a ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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respeito do conhecimento e das formas possíveis das construções de sentido. E, certamente, dado que eu e você, Hélio, somos amigos há tantos anos, nós conversamos em muitos momentos, em etapas diferentes de nossas trajetórias. Meu primeiro contato com Geertz me provocou essa reação que você mencionou na pergunta porque minha formação foi fortemente estruturalista. Portanto, me parecia simplesmente insustentável a remissão à interpretação que se dava sempre como qualificada a posteriori, mas desprovida de qualquer orientação teórico metodológica prévia. O mergulho no “Verdade e Método” (Hans-Georg Gadamer), o mergulho em toda uma bibliografia acabou me conduzindo a outra postura. Passei a valorizar Geertz. Evidentemente, há muitas dificuldades e muitos problemas, sobretudo, quando pensamos nos seguidores de Geertz. Isto porque alguns grandes desafios pareciam resolvidos com uma ou outra solução retórica. É sempre muito difícil lidar com questões decisivas, que são tão desafiadoras, sobretudo quando há uma profissão, um ofício, tarefas de pesquisa a cumprir e as estruturas acadêmicas às quais responder, instituições, carreiras e todo um processo reducionista de classificação. Tudo isso acaba impondo uma alteração às vezes muito profunda nas intenções originais. Eu acho que isso acontece com frequência com todos os autores. Lévi-Strauss teve seus leitores vulgares e todos os grandes mestres tiveram, Freud, Marx, Weber, gostemos ou não. Enfim, todos os mestres sempre suscitaram releituras e muitas vezes empobrecimentos, não porque eles tivessem a verdade que depois seria degradada, mas porque talvez eles tivessem uma estatura capaz de reconhecer a gravidade de alguns impasses que tinham que ser resolvidos por motivos práticos e que sequer eram muitas vezes reconhecidos pelos próximos. A meu ver, a onda que se seguiu ao Geertz nos Estados Unidos foi muito problemática. Em alguns casos houve uma certa vulgarização, e parecia que tudo caminhava na direção da facilidade. Ou seja, agora nós não precisamos da camisa de força dos métodos e das teorias. Agora nós podemos nos entregar à experiência, à sensibilidade, à intuição e este é um campo para o devaneio, para dotes quaisquer que nunca se deixam definir. Claro que não estou atribuindo este tipo de visão a todos que seguiram Geertz, de jeito nenhum, mas há discípulos que promoveram e difundiram esta visão reducionista. Geertz escreveu obras extraordinárias, obras em que ele mais do que dizer o que se deve fazer, fazia. Acho que ali nós encontramos contribuições fascinantes. Ele nos ajuda a pensar o que é que torna possível a observação e a observação que se traduz em textualidade. De que maneira se pode municiar o observador com alguns códigos, Hélio R.S. Silva
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algumas orientações e teorias, no desafio de adestrar sua voz narrativa, sua escrita, para que se torne capaz de realizar a melhor descrição possível. Ele nos ensina a perceber o que é passível, e merecedor, de uma atenção qualificada, mesmo sendo apenas um fragmento, um detalhe, um aceno minúsculo ao sentido, à comunicação, à multidimensionalidade invisível a olho nu. Aí está resumida a disciplina, esta é a história da Antropologia: contradições, limites, silêncios valorizados e seus diversos afluentes. O fato, entretanto, para mim recorrente e, aí nós estamos muito próximos do que eu acabo de criticar, é que a boa produção, em parte, a boa produção etnográfica depende de formação prévia, de leitura dos autores que nos ensinaram, mas em parte é imprevisível e indomesticável, refratária ao adestramento. Não decorre da aplicação do que já se leu e de normas já prescritas ou de boas teorias formuladas. Não. A virtude do que virá à público, virá à existência, no evento da linguagem, da escrita, vai depender de sua força autoinstituinte e de nossa capacidade posterior de reconhecimento. Reconhecimento que se dá a posteriori, porque não se apoia na verificação de créditos formais do autor e de sua trajetória, e de sua aptidão em citar e manusear o já sabido. No fundo, esta virtude (sobretudo do autor, mas até certo ponto também do leitor e, por extensão, da comunidade interlocucionária, na academia, e não apenas) se manifesta como o reconhecimento de que um tropeço, o inesperado, uma tensão desviada, uma comparação surpreendente produzem um resultado que pode, no início, até parecer trivial, mas que, em algum momento, tem potencial para promover, suscitar, fazer emergir sentido, conhecimento. Portanto, há uma dimensão que é sempre aberta para a incerteza, para a indeterminação, que não é domesticada de fato. Isso não significa que se possa prescindir da leitura dos mestres e das boas obras de teoria, pelo contrário, e não significa que nós não devamos nos municiar, sempre, de todos os instrumentos possíveis para qualquer navegação, mas significa que a navegação não dependerá apenas disso. E o adicional, este excedente, pode fazer toda a diferença para o bem ou para o mal, porque nós não estamos numa situação de aplicação, mas de interpretação, o que envolve uma iniciativa da voz narrativa (que não se confunde com o autor) e que só se manifesta consagrada, reconhecida, valorizada, a posteriori, porque ela não está atendendo a cânones previamente celebrados. E o que que irrompe aí? O que age aí? Sei que o risco é imenso. Eu sou obrigado a uma digressão de novo. Lembrando uma situação que foi muito bacana na minha vida escolar/acadêmica, na minha vida pessoal, porque essas coisas não se distinguem. Eu me lembro de uma apresentação de uma ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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professora, no final dos anos 70, no Museu Nacional (Programa de Pós-Graduação em Antropologia/UFRJ). Essa professora estudava movimentos sociais e nós, eu e você, Hélio, fazíamos lá o Mestrado. Naquela época o Mestrado era muito diferente porque nós não tínhamos Doutorado. Fomos ouvir a palestra muito interessante da professora sobre movimentos sociais, particularmente sobre quebra-quebra de trens, que eram fatos novos. Era o final da ditadura militar, mas ainda sob ditadura, então uma situação muito delicada. Estávamos aí por 1978/79, imagino eu, porque nem seria possível abordar este assunto, por razões políticas, antes. Talvez fosse 1980. A professora apresentou o conjunto de fatores e de variáveis, analisou comparativamente alguns casos, e eu lhe fiz uma pergunta, que acabou ficando sem resposta. Esta pergunta continuou a vida toda a meu lado. Eu a formulava para mim mesmo e me parecia que ela continha algo relevante. Eu perguntei à professora mais ou menos o seguinte: “A senhora circundou o fato (os movimentos sociais), que é o objeto da sua atenção, com um espiral de fatores que foram elencados, como se acumulados em torno do evento, o circunscrevendo, eles conduzissem à explicação de sua ocorrência, como se o evento fosse o efeito dos fatores que a senhora inventariou. No entanto, entre esse conjunto de fatores, que podem ser indispensáveis, e o evento (os movimentos sociais) há um vazio. Portanto eles não são suficientes ainda que sejam necessários.” Por que posso dizer que há um vazio? Porque podem ser identificadas várias outras circunstâncias nas quais todos os fatores estão presentes, mas o evento não eclode. Há alguém que em algum momento grita: quebra! Há uma pedra lançada em algum momento e, claro, depois que o fato tiver ocorrido, este tipo de dramaturgia e de performance ingressam no repertório comum das possibilidades e se torna mais fácil reproduzi-lo. O processo social pode se dar dessa maneira e há muito em Tarde (Gabriel Tarde) para aprender a respeito das disseminações de processos, etc. O fato é que a espiral de motivos, ou fatores, ou vetores, ou variáveis significativas não conduz necessariamente àquele evento, o quebra-quebra. Podemos constatar esta afirmação empiricamente quando toda a espiral gira sem que haja o mesmo efeito. Há um vazio, entre a espiral de determinações e o ato. O que dizer deste vazio? Se há o vazio não se trata de efeito e de causa, nós não podemos aplicar a linguagem da causalidade neste caso. Há um interveniente. Esta intervenção o que é? Qual seu nome? Como categorizá-la? E ela será sempre aquilo que, sendo “criativo”, vai operar expectativas, normas, ou as realizará, se as normas ou regras corresponderem ao rumo dos fatores. Mas não haverá evento sem esse grito, sem Hélio R.S. Silva
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essa iniciativa que não advém de um talento, de uma virtude, inscrita no espírito de um indivíduo qualquer, mas disso que nós chamamos acaso, desse imponderável, a contingência do ato. Que dizer da iniciativa ou não de um sujeito que nesse momento age? Ele não é autômato. Há um ponto que para mim é muito importante e não há crítica à metafisica que dê conta disso. Kant diz que se não há nenhum espaço para o pensar livre, também não há nenhum espaço para se pensar o sujeito humano. Nós não deveríamos nos apaziguar buscando identificar determinantes e condicionantes, ainda que possam vir a ser pensados numa outra linguagem científica naturalista futura, que não pode ser excluída, mas que não é ainda compatível com nosso modo de experienciar a própria vida e o que denominamos sentido. Então remeto aqui a uma instância psicológica, psicanalítica, que continua nos desafiando, e que tem a ver com esse fluxo errático que caracteriza o humano (ou a liberdade para usar a expressão tradicional) e que marca o ato ou a ação, quando ela não é a representação do condicionamento da experiência, ou de alguma determinação. Na contramão, na outra ponta da liberdade e da ação, está a incerteza e a indeterminação, a imprevisibilidade, ou seja, algum espaço, mínimo que seja, para a liberdade ou para a criatividade. Na outra ponta, há sempre essa fresta da indeterminação, da incerteza. E acho que há alguma coisa muito trivial, muito simples, mas bastante interessante nessa matriz kantiana da ideia de liberdade: ação humana envolve liberdade. Sempre há espaço para algum nível de deliberação e de autoconstituição subjetiva (ainda que a distinção objetiva-subjetiva seja obviamente precária). Se a força física constrange o sujeito empírico a um ato, não é o sujeito empírico que age como um sujeito, ele é portador de uma força que provém de outrem. No entendo, se é esse sujeito que, de algum modo, faz ou deixa de fazer, cabe a esse sujeito alguma faixa de decisão ou de intervenção – para evitar que minha descrição soe coimprometida com a vulgaridade positivista e utilitária, que supõe um sujeito onisciente e unidimensional, jogador do mercado. Retomo o fio da meada: isto é relevante sobretudo no momento de crise do antropocentrismo, no momento em que nós estamos especulando com tanta fertilidade sobre outras ontologias (e aqui me refiro à obra brilhante de Eduardo Viveiros de Castro) e refletindo sobre os limites do humano, e caminhando já para outras perspectivas. Eu sei que este meu discurso é muito perigoso, margeia o abismo da velha metafísica. A crítica já se fez, e dela até já se esqueceu. Não obstante os riscos, recuperar esses pontos me parece ainda pertinente. Posso ler Deleuze, posso ler Foucault, posso ler Lacan e Derrida, posso continuar ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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dialogando com os grandes autores pós-nietzschianos que desconstruíram a metafisica do sujeito, e ainda assim persistir, insistir, preservar alguns dilemas evocados pela tradição. Tenho me dedicado a fazer esta leitura crítica, da dupla crítica, digamos, dando mais uma volta no parafuso, buscando a preservação de alguns aspectos de nossa tradição sem os quais seria, por exemplo, impossível falar em direitos humanos.
Mas, enfim, deixando de lado a digressão e voltando à cena original, o que dizer do ato de escrever ou de descrever? Dessa voz autoral do etnógrafo ou da etnógrafa, ou da voz que já não remete a gênero porque gênero já é a escrita, já é narrativa? O que dizer da narrativa, senão a posteriori, analisá-la e incorporá-la? Mais do que isso, mais adiante não se pode ir, mas o reconhecimento de que há uma dimensão – para ser bastante franco e desarmado, por que eu sei quão problemático isso é – há uma dimensão de criatividade, de dom, de talento. Não necessariamente o talento é um jogo de linguagem que se reporta a algumas experiências humanas relevantes a partir de um certo tipo de codificação. Ou também uma maneira de domesticar e de infundir racionalidade a um certo tipo de estrutura de poder, certas instruções literárias, etc. O que importa é que se instaura um movimento errático e rebelde da escrita. Não se trata de mera aplicação (teoria em ato via método). Por isso, a escrita etnográfica é interpretativa e interpretável. Ela não é apenas código e realização. Ela é performance. E há uma dimensão de vitalidade, de potência -se você quiser- que requer sempre a presença do leitor ou da leitora, ainda que essa não seja uma instância física, empírica. Leitura é aquele momento no qual se reconstituem significações ou se identificam, ou atribuem, sentidos. Esses são os movimentos interessantes, fascinantes, do risco, da bobagem ou da insinuação genial. O que é insinuação genial? Uma composição, uma mistura, uma aproximação de elementos heteróclitos, sob nova luz, trazendo novas possibilidades e abrindo algumas portas. Wittgenstein dizia que o salto de paradigma, ou o rompimento de um paradigma é imprevisível. Evidentemente, porque se fosse previsível nós não estaríamos nesse paradigma e já se teria dado um rompimento. Isso não significa que não haja, na história, esses momentos, as rupturas, e eles se dão a perceber a posteriori; eles são frutos da ação, da criação. Não é preciso chamar de talento até porque todos esses trabalhadores suaram muito durante muito tempo aprendendo uns com os outros e errando. O dom é o nome que se dá, a posteriori, ao ato transgressor, ao erro, quando o erro se consagra ao permitir sua própria avaliação segundo critérios oriundos do novo paradigma que seu desvio instaura. Bruno Latour, em A Vida de Laboratório, mostra de Hélio R.S. Silva
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forma fascinante como é que as rotinas podem produzir descobertas se houver um outro olhar para o erro, para aquela combinação inesperada, porque aquilo poderia acontecer sem que ninguém observasse.
Hélio Silva – O caso de Pasteur…
Luiz Soares – Exato. O grande antropólogo americano, Rabinow – que não é muito benquisto no Brasil porque fez aquela incursão antipática -, também escreveu sobre isso de uma maneira muito interessante. Ou seja, além do aprendizado, da aplicação, das regras do jogo, das obras e das teorias, há um espaço de experiência, um espaço de risco, um espaço de criatividade que nos aproxima da arte, disso que nós chamamos arte. Um espaço que nós conferimos a essa possibilidade de movimento, e que nos aproxima da interpretação e do juízo também, do juízo ético, do juízo estético. Essa área da estética, do juízo ético e do juízo estético, eu acho que é contígua à da experiência etnográfica, de sua validação e, num sentido muito, muito radical. A vulgata diz que há semelhança entre a descrição no romance, num conto, e uma etnografia, ou seja, há elementos comuns. Mas não se trata disso, é evidente. Sim, há algo aí! Mas muito mais grave. Uma invenção humana. A Antropologia é um gênero, uma multiplicidade de gêneros institucionalmente organizados para os quais contribuem autores interessantíssimos, com obras criativas, que iluminam e esclarecem momentos da vida humana e, em seu universo, contraintuitivamente, surpreendentemente, o que há de mais interessante é a imprevisibilidade e a criação. O que não significa que não haja ciência. Há muito a ensinar e aprender até porque esses eventos e essa singularidades, essas diferenças, elas se dão num terreno adubado, pensado e fertilizado pela experiência da leitura, do estudo, etc.
Hélio Silva – Eu acho que a sua reflexão sugere um fio condutor para a entrevista, quer dizer sugere vários desdobramentos. Eu vou aleatoriamente ficar com um. Não é uma questão destacada, mas, em literatura, é um truísmo, eu li isso dezenas de vezes: “quem bate nesse livro, bate num homem, quem toca nesse livro, toca num homem”. É uma expressão que a gente já ouviu várias vezes e que afirma que o livro é aliciante, é convincente, por que o autor viveu isso. Quer dizer, a ideia de que a virtuosidade da escrita depende de uma vivência no contexto evocado. O autor esteve aí, quer dizer, tem ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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conhecimento íntimo daquilo que o texto (re)produz. O que remete a mil questões. Mas provisoriamente destaco a questão da observação. O que remete à questão da inscrição no campo. Quer dizer, essa relação objeto, sujeito e tal. Toda etnografia é parte da biografia do etnógrafo. Se a experiência for realmente relevante, você sai mudado. Se você for um burocrata da etnografia, não, mas, se você for a fundo, essa experiência etnográfica muda você; se torna um capítulo da sua história. Do que se trata essa atitude etnográfica? Porque uma coisa é você dar testemunho de uma experiência vivida por você. Tennessee Williams escreveu sobre a família em que viveu – e não estou dizendo que se reduza a isso, nem todos que viveram na família de Tennessee Williams descrevem o que ele escreveu, claro que não. Essa é uma questão mais da etnografia, você não parte de um universo familiar, mas do exercício etnográfico. Estranhar o familiar e, ao mesmo tempo, descrever tudo com a familiaridade que, nessa ótica, autentica o texto. E aí nem se trata de estranhar o familiar, mas de uma tessitura urdida pelos fios da familiaridade e do estranhamento, indissolúveis.
Luiz Soares – Eu acho que isso é muito importante. Nós estamos no centro da questão. Me lembro da Marilyn Strathern, que é uma autora brilhante. Ela mostra como o trabalho etnográfico é indissociável da reflexão que é tanto teórica, filosófica, epistemológica quanto metodológica. A observação se dá o tempo todo e falar em observação é só uma forma de descrever essa prática. A observação, ao mesmo tempo, é a desconstrução de categorias com as quais nós nos aproximamos do fenômeno observado. Nós não podemos observar sem as categorias que classificam e atribuem significado aos eventos, sejam categorias antropológicas que nos formam como observadores, sejam categorias da nossa cultura, digamos, quase infra-disciplinar, sub-disciplinar. Aquelas que nos formam sem que nós as identifiquemos tanto quanto aquelas resultantes de um esforço de descortinamento de nossos afetos, emoções, medos e percepções ao mesmo tempo que de nossa relação sensual e física com o fenômeno que estudamos. Esse quadro de observação é o nosso, e nos inclui ao mesmo tempo. Nos aproximamos do fenômeno focalizando um dos seus aspectos e projetando o que carregamos, digamos, como orientações prévias, expectativas, etc. E a observação, em geral, tende a ser, acredito eu, mais interessante, mais reveladora, na medida em que ela se desguarnece, se livra, tanto quanto isso seja possível, das pressuposições que nós sabemos estão presentes em todos nós, inclusive no esforço de suprimi-las, na medida Hélio R.S. Silva
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do possível, como se nós nos tornássemos o objeto do observado, imaginariamente, nesse confronto com o observado. Ou seja, o objeto nos vê. O fenômeno nos encara, nos questiona. Isso existencialmente é muito complicado e psiquicamente muito complexo. Mas se tivermos a coragem de aceitar as desconstituições todas que o objeto porta, potencialmente ou, pelo menos, a partir da nossa apreensão, então, não há um jogo ativo/passivo, mas, ativo/passivo-passivo/ativo. E no plano imaginário, que seja, tanto quanto possível, tal jogo deve se externalizar na interlocução. Quando isso se der, a relação real – quer dizer, aquela que pode ser vivida e que vai receber significados distintos de diversos dos interlocutores e também aqueles que nós projetarmos – se dará a nós como um campo de tensão, de negociação e de vivência da alteridade. E aqui nós chegamos num ponto que para mim está no centro de questões que são, digamos, existenciais, políticas, éticas, filosóficas, etc. E que esteve no centro da minha tese de doutorado. Na tese, eu havia identificado um certo tipo de procedimento intelectual que estaria na origem de uma determinada forma de pensar. Eu estudava as origens do liberalismo, as origens do pensamento político ocidental moderno, contratualismo, utilitarismo, eu lia também os filósofos do século XVIII, etc. E eu identifiquei um certo tipo de estratagema, de procedimento; ele não é difícil de identificar, mas talvez não tenha merecido a atenção que devesse, pelo menos entre meus interlocutores mais próximos. Um autor havia detectado, descrito e nomeado aquele estratagema de forma precisa e brilhante: Paul de Man, que estudava literatura, ligado a Derrida, e lecionou nos Estados Unidos, onde terminou se fixando. A categoria que usou, que ele cunhou, referindo-se ao procedimento que me interessava, foi simetria substitutiva. Ele dizia que era o que ocorria nos leitores de Bakhtin, não na ideia da polifonia bakhtiniana ou da dialogia bakhtiniana, mas em análises de seus epígonos. O modelo que eles adotavam para ler Dostoievski, a partir de Bakhtin, tinha por base a ideia da simetria substitutiva. E o que isso significa? Diversos sujeitos transitam entre si e são intercambiados como se não houvesse opacidade, alteridade. Trata-se de uma diluição da dialogia, não de diálogo. Não há, segundo Paul de Man, no pensamento desses seguidores de Bakhtin, definitivamente diálogo, não há dois sujeitos, há um só que transita entre dois polos. É como se você fosse um mau dramaturgo e escrevesse um drama com dois ou três personagens que discutissem ideias, todas expressões de sua própria consciência. Eles estariam ali apenas para defender o ponto de vista A, o outro para fazer o contraponto B e o terceiro, C. Mas todos são o mesmo. São mimetizações do mesmo. Simulacros da ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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unidade. O mal dramaturgo é aquele que constrói só um personagem (que deixa de sê-lo, neste jogo especular) e faz com que ele se desdobre em outras máscaras. Nessa dramaturgia pobre não há efetivamente diferença, é uma consciência que transita entre as diversas posições possíveis de uma coreografia previsível e fechada. Por outro lado, há algo radical na verdadeira dialogia, e sobre isto refletiram autores interessantes. Lévinas, Buber, Derrida e o próprio Bakhtin trabalharam bastante essa problemática. E na literatura há exemplos extraordinários desse tipo de construção. A literatura talvez não seja senão esse exercício. No sentido forte, a dialogia é aquela experiência em que o sujeito se encontra com o outro, é o momento da alteridade. Em se tratando de comunicação, a alteridade não implica a incomensurabilidade, incomunicabilidade absoluta, intransitividade. Há negociação, esse encontro, mas nada é garantido, não há um telos que se confunda com arché e que, no final dos tempos, ou da história, ou do cálculo, restaure a unidade perdida, como na teleologia hegeliana ou nas cosmogonias judaico/cristãs. Na dialética apaziguadora, há todo um trânsito humano que segue o modelo da Odisseia, no qual o diverso, os eventos e as singularidades emergem para serem todas, entretanto, suprimidas numa dialética cuja síntese nos dá, novamente, a unidade – requalificada, mas restaurada. Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento trabalham esse tema como sendo o tema da filosofia propriamente. É um livro absolutamente fascinante. De fato, é como se na falsa dialogia, na dialogia diluída e trivializada, a que se aplica a má dramaturgia, a má antropologia, a má etnografia, o outro fosse o mesmo. A diversidade toda, o conflito todo vai ser superado por essa dialética que vai, digamos, subsumir as contradições e nos proporcionar a síntese restauradora de uma unidade de novo reconstruída no diálogo, no entendimento. O consenso restaurado, por exemplo, de que trata a filosofia do Apel e de Habermas. Há a pressuposição do consenso, partimos da necessidade do consenso e de sua possibilidade. E se definem as dificuldades para promovê-lo, como obstáculos à comunicação e à razão comunicativa, à argumentação, à razão argumentativa. A razão, então, afinal, seria essa possibilidade de os seres humanos nos aproximarmos do que essencialmente nos define como humanos. E então, enfim, no final dos tempos, escatologicamente, ou na conversa que flui sem obstáculos, neuroses e ilusões ideológicas, nós seriamos um. Na razão idealizada como arché e telos, não há espaço para a diferença, em sua radicalidade, matéria, afinal, da antropologia, experiência e desafio, afinal, da etnografia. A razão, esta, nos salva! O diálogo em Habermas é um Hélio R.S. Silva
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adiamento da matriz, da restauração da matriz, que é esperada porque está dada no princípio e como princípio, assim como no fim para onde caminha a humanidade. Por isso, arché e telos. Habermas e Apel, cada um a seu modo, deixam isso muito claro: só é possível o diálogo e a compreensão porque há a suposição de sua possibilidade, que está inscrita na própria linguagem, e na razão – que é o que nos define. Para o etnógrafo, ao contrário, o diálogo já resolvido é o falso dialogo, pois nele somos um, já não há alteridade, nem risco, nem a iminência do silêncio, nem o imperativo de relativizar-se e deparar-se com a própria finitude (o avesso da atitude colonial). Para a tradição metafísica racionalista e idealista, a diferença radical é impertinente (e impensável): é o resto, é o que a matéria impôs sobre nós, é corpo, é inclinação, é paixão, são as afecções. Para o racionalismo, restaurado o espírito, pela razão, ou pela razão argumentativa, ele será igual a si mesmo e nós deixaremos de ser múltiplos. Nesse caso, como se vê, tanto a utopia cristã quanto a utopia comunista em alguma medida se realizariam. O diálogo “para valer”, que é o diálogo da etnografia, da antropologia, é o diálogo difícil, que não está garantido, que não corresponde a nenhuma necessidade inscrita em natureza alguma, que é risco, é aventura, que se dá a construir, e não há categoria prévia que o garanta. O diálogo no sentido do entendimento, não apenas da comunicação, mas do entendimento mínimo do outro, isso não está garantido, se há alteridade. Ou, então, o outro é apenas um particular de uma classe, uma espécie de um gênero, uma manifestação de uma essência. Não é outro, portanto. Se há outro, então eu ali tenho um corpo a corpo com a diferença desmedindo-se no sentido radical. O arco do diálogo diluidor é o truque narrativo da dramaturgia previsível de nossas filosofias da representação.
O diálogo pra valer é conquistado quando não há garantia de permeabilidade da alteridade. Quer dizer, a alteridade resistente, radical, ela não é a incomensurabilidade, ela é um risco para o diálogo, ao mesmo tempo em que constitui sua condição de possibilidade. O diálogo emerge como um sucesso, um evento, com toda a sua precariedade, desde que a alteridade seja reconhecida em sua plenitude, em sua radicalidade. Quando o diálogo não é necessário, inevitável, garantido, ele é, paradoxalmente, uma possibilidade. Se ele for construído teremos um momento extraordinário de realização humana. Se eu encontro um outro que é tomado como um enigma, eu tenho a possibilidade de um diálogo. Pode se dar, pode não se dar – isso eu não sei. Não há garantia, é um risco e eu vou ter de lidar com esse enigma, com o ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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enigma radical, e tudo que eu sei cessa. Tudo que a antiga musa cantou, tudo que eu sei, tudo cessa, menos o reconhecimento da necessidade da supressão, na medida do possível, dos pressupostos, porque este reconhecimento é indispensável como instrumento para que eu me aproxime da alteridade enquanto tal. É necessário reconhecer a diferença, ou meu limite, me dizer a mim mesmo, nada sei sobre o outro, senão tudo aquilo que minha cultura antropológica me ensinou a respeito da necessidade de partir desse ponto. Eu não estou dizendo algo sobre o outro mas sobre mim e sobre uma atitude que devo tomar que é a de ver o outro com olhos novos. Ver o outro como um desafio, como não sabido, deixar que o outro vá se desenhando para mim, diante de mim, comigo, numa interação tensa que não está garantida. É uma aventura. Não é impossível a relação com a alteridade senão não haveria diálogo, mas o verdadeiro diálogo não é o que eu já sei, não é a reiteração do que sei sobre o outro. Mas veja que interessante, como é difícil essa aproximação do inabordável: a própria metáfora da visão, que adotei – ver, vislumbrar, visão, olhar, ótica, perspectiva, ponto de vista, contemplar, iluminar, esclarecer, focalizar – reflete meus próprios antolhos – de novo -, nossa tradição.
Hélio Silva – Uma radical introspecção e um confronto das minhas predisposições culturais, minhas categorias e conceitos da disciplina frente ao outro. Mas isso é muito difícil de fazer.
Luiz Soares – Sim, é claro. Isso se dá no plano de um modelo ideal, de um tipo ideal de introspecção, porque ela não se coloca na prática. Na prática você está diante do outro, numa situação qualquer. Agora, no jogo de linguagem fluindo, a introspecção serve analiticamente para você recompor tudo isso num modelo formal. Sim, ela teria lugar. Você tem o tempo todo que desconstituir as impressões iniciais, as suposições, as interpretações e, ao mesmo tempo, tem que formulá-las, senão você não avança. Mas avançar com esse veneno o tempo todo, questionando e permitindo que o outro signifique para você, sempre. Faça o papel do advogado do diabo, questione tacitamente todas as atribuições e todas as imputações que você lhe faça. Então, primeira atitude: “Ah, eu sei quem é esse personagem, e sei, isso aqui é um tipo tal, categoria tal, e remonta a tais estruturas, já posso imaginar o que daí venha.” Estou num terreno perigoso, ainda que seja inevitável que eu desenvolva suposições. Se eu permitir que o Hélio R.S. Silva
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outro, ao invés de se revelar imediatamente, se mostre mais e mais obscuro e enigmático, estou num bom caminho, porque estou fazendo um esforço imenso, interno, de aceitar a minha ignorância a respeito do outro e dar ao outro a possibilidade de se autoconstruir diante de mim e para mim, num jogo tenso, que pode ser progressivo ou não. Isso tem começo e recomeço. Você vai dormir com uma ideia, acorda com outra, encontra o interlocutor em outra circunstância, refaz a ideia, etc. Evidente que esse é um jogo permanente, mas eu acho que essa é uma maneira mais interessante de pensar o que a gente fala do familiar e do estranho, mais interessante porque é mais complexo. Quer dizer, há o diálogo trivial e que não é no fundo um diálogo porque os dois são o mesmo, expressões do mesmo. Os dois têm ideias de cultura, ideias de pessoa que são equivalentes, se pronunciam, se esculpem na linguagem de maneira análoga. E eu suponho que o outro possa estar no meu lugar e vice-versa, e eu já categorizo o outro facilmente com os meus instrumentos e pronto, apreendi o outro, isto é, aprendi quem é o outro. É muito fácil, isso pode até ser correto se o outro for uma variação de mim mesmo. O outro é um antropólogo, eu estou numa categoria que eu conheça, ali as variações são triviais porque somos muito parecidos e as nossas questões mais ou menos são comuns. É diferente, nós estamos num espaço comum. Mas se houver alguma distância de qualquer natureza social, cultural – para usar expressões que a Marilyn (Marilyn Strathern) questionaria -, nós estamos diante do enigma. Nós temos de, em algum momento, nos sentir completamente perdidos. Se nós não nos sentirmos completamente perdidos nós não vamos achar caminho nenhum.
Hélio Silva – Às vezes eu acho que para o iniciante a alegria e o júbilo das pequenas descobertas inibem muito esses questionamentos mais densos.
Luiz Soares – Sim, sim. E aí você acha que já conhece, você acha que já sabe. Você vê na literatura, por exemplo, um personagem de uma obra interessante. Há momentos de grande obscuridade, há momentos em que parece que você está com universos muito diferentes, que um personagem está num universo e outro está em outro universo. Quando eles são só vozes que explicitam ideias e posições provenientes do mesmo, de uma única matriz, a do autor, é o autor que fala pelos vários personagens, são apenas opiniões superficiais que se distinguem, e tudo se reduz a um jogo de marionetes muito simplório. Por outro lado, um diálogo como o que encontramos na peça de Samuel ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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Beckett, Esperando Godot, por exemplo, aquele tipo de diálogo em que as coisas são trocadas e os nomes são nomes das coisas, aquilo parece colocar de fato frente a frente, e de público, personagens que vão aos poucos se tornando mais e mais obscuros, mais e mais enigmáticos, entre si e para o terceiro polo, o público. Claro que ali há todo um movimento no sentido de apontar a incomunicabilidade, os limites da compreensão recíproca, o fim do jogo, enquanto a antropologia continua a jogar, de alguma maneira não relaxa, não se entrega, não se rende e começa de novo. É como se, na antropologia, nós tivéssemos possibilidades sucessivas de aproximação. A dramaturgia beckettiana é um jogo de coisas e palavras sendo trocadas, palavras e coisas pouco reveladoras de personagens, num ambiente perfeitamente compreensível e simples, ao mesmo tempo intransitivo e impermeável. Beckett cria e exercita um diálogo completamente diferente do pastiche trivial em que dois personagens parecem brigar, mas na verdade são expressões do mesmo. Beckett põe em cena um análogo da experiência etnográfica, que é, por sua vez, uma condensação artificial do dilema existencial chave. Eu estou, é claro, pensando na etnografia radical, aquela que envolve um grande esforço de compreensão, revisitando os confins da impotência, sem render-se à mera celebração cética (e relativista) da finitude. De certa maneira no trabalho de Lévi-Strauss, por exemplo, sobre os mitos, recorre-se a uma certa compreensão do espírito humano, do funcionamento do espírito humano, mas dando espaço também para a invenção, inclusive na interpretação. Os mitos são desconstituídos. O primeiro momento é o momento em que há uma transformação do mito em alguma outra coisa do ponto de vista mesmo analítico: o desmembramento, a classificação, a intervenção do analista. Isso é muito diferente do mito sendo rapidamente apreendido, aprendido, decodificado e comparado com algo de nossa cultura tradicional. Lévi-Strauss recusa-se a interpretar o mito aproximando seu relato de um certo tipo de simbolismo que nos seja próximo. Por analogias. Recusa-se a simplificar. O mito é tão prenhe de significado que é muito importante devolvê-lo ao osso, não o entender, torná-lo música, para que ele possa dizer alguma coisa que não provenha mais de mim. Porque essa desconstrução do mito é uma desconstrução de minha expectativa como leitor, como intérprete, é a desconstrução de um simbolismo já constituído – afinal, estamos esmagados ou afogados na redundância por 2500 anos de símbolos tratados já de tantas maneiras, tão próximos de nós como repertório. Portanto, devolver o mito ao ininteligível, do ponto de vista dessa nossa simbólica tradicional ocidental, é um modo de constituí-lo, permitindo que outras vozes Hélio R.S. Silva
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sejam ouvidas, até que, do tensionamento fragmentador e explosivo, das cinzas, da coisificação, da objetificação, ensejada pelo formalismo adotado, seja possível devolver o mito à inteligibilidade. O percurso me lembra o da poesia concreta, que devolve o poema ao silêncio e à página, no limite o dissolve, o decompõe, o devolve à matéria, para salvá-lo do acúmulo de expectativas (retóricas, sentimentalistas, clichê, e também eruditas, referidas à história canônica, geradoras da “angústia da influência”, para citar Harold Bloom, ele próprio reverente ao cânon), para salvá-lo de si mesmo, de sua história, possibilitando assim seu renascimento, sua vitalização, conferindo-lhe de novo o frescor da invenção. Mas tudo isso, claro, sem ingenuidade, isto é, consciente de que até mesmo o frescor é artifício. Talvez por isso dois dos mais brilhantes, radicais e criativos estruturalistas brasileiros, Luiz Costa Lima e Eduardo Viveiros de Castro, tenham sabido valorizar tanto e dialogar com os irmãos Campos, Haroldo e Augusto, nossos principais concretistas. Por aí chegamos também a entender que etnografia não é aplicação do já sabido ao terreno para, através de levantamentos empíricos, estender o campo do conhecido. Assim como teoria antropológica não se reduz à sistematização de descobertas etnográficas. Etnografia é invenção teórica pela mediação da linguagem performativa e descritiva, enquanto a teoria é a leitura inventiva da etnografia pela mediação da redescrição das tradições de pensamento que nos formaram. Basta lembrar da poesia concreta para perceber as semelhanças.
Hélio Silva – Eu estava pensando na sua experiência como orientador. Essa relação, sobretudo, dos trabalhos que tinham um escopo etnográfico, você fez orientações em outros campos de conhecimento, mas naqueles trabalhos que tinham escopo etnográfico, quais são as memórias que você tem dessas relações? E nessas relações, como é que esses temas, essas relações tão densas, se insinuam?
Luiz Soares – Eu teria de me lembrar porque são tantas situações e muitas delas interessantes. Posso tomar como exemplo a tese de doutorado de Isabel Mendes de Almeida, sobre subjetividade masculina. Claro que este era o título geral, mas se tratava de evitar a simplificação ou a reificação das próprias categorias presentes no título, subjetividade e masculinidade. O que seria subjetividade masculina? Qual o objeto de fato de que se tratava? O trabalho não é ingênuo, pelo contrário, é bastante interessante. Houve um momento em que Isabel, entrevistando homens de certa geração – todos ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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próximos -, viveu uma dificuldade muito grande. Ela travou e não conseguia ir adiante tamanha era a impressão que as entrevistas lhe causavam. Então, sugeri – e esse foi uma espécie de pulo do gato – que ela escrevesse sobre a sua resistência. Tomar a impressão paralisante como objeto – a resistência, a impressão e a dificuldade –, deixar os homens de lado, um pouco, e por esta impressão, por esta resistência, ela talvez identificasse algumas características do interlocutor. A ideia era ela fazer um esforço interno de identificação de algumas características dos interlocutores que exigiriam dela uma enorme desconstrução, num esforço de reconstrução a partir do questionamento suscitado por esse desencontro, ainda que tudo parecesse muito simples. E foi muito interessante. Ela começou a fluir e escreveu extensamente, e bem, tomando suas impressões, ou mesmo projeções, como objeto, impressões causadas pelos entrevistados, ou pelos discursos dos entrevistados ou pelas próprias entrevistas. Claro que não estamos falando de um tipo de dialogia muito particular, típica da tradição etnográfica. O grupo social era muito próximo. A única diferença significativa, mais ostensiva pelo menos, era a do gênero, a de pôr-se como um homem diante de uma mulher em dado contexto. O diálogo dizia respeito a esse jogo que naquele contexto deixou de ser simples, a tal ponto que não se tratava de identificar e interpretar de forma inteligente o que porventura estivesse por trás dos discursos. Tratava-se de pensar o mal-estar e, a partir do mal-estar, seguir adiante nas reflexões. Outro exemplo poderia ser a minha própria experiência, quando trabalhei com um grupo de camponeses do interior do Maranhão, nos anos 70. Um grupo de negros que tinha resistido ao processo de expropriação, um grupo interessantíssimo, vitorioso, porque eram raros os grupos que resistiam à expropriação e que ainda compartilhavam um sentido de comunidade e uma história comum, uma memória comum. Eles se afirmavam como negros. E houve alguns momentos de grande impacto, surpresa, que persistem até hoje, e que constituem para mim objetos de reflexão. Momentos que eu não resolvi inteiramente na dissertação, mas indiquei como pontos, rumo a uma espécie de poço sem fundo. Momentos assim ocorrem quando a gente percebe que foi até um certo estágio, revelador mas insuficiente diante de tudo que ainda se exigiria para que o diálogo prosperasse de fato com mais radicalidade. Foi o momento em que, não sei por que, numa conversa muito informal com alguns interlocutores, eles descobriram, por mim, que havia várias línguas no mundo. Eles ficaram perplexos, completamente atônitos. De minha parte, achei aquilo bastante interessante, mas de toda maneira não seria algo que, em si mesmo, Hélio R.S. Silva
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surpreendesse, dado o isolamento do grupo. O que de fato surpreendeu foi o que derivou daí, porque na sequência eles disseram: “Você está brincando? Jura que não é brincadeira sua?”. Eu respondi que não, não é brincadeira, é verdade. Eles continuaram: “Mas, então, se um cristão passar na minha porta e pedir água, eu não vou entender e não vou dar, não vou poder dar?” A questão da comunicação e da linguagem foi transposta para a esfera da sociabilidade, da reciprocidade e daquilo que constitui, de modo mais central, decisivo e elevado, o humano. Cristão, no código do grupo, é sinônimo de humano. Um humano passa aqui e não encontra em mim reciprocidade? O que significaria para esse morador anfitrião deixar de cumprir seu dever de cristão, deixar de sê-lo? Estaria expulso para fora do mundo dos cristãos, que corresponde ao mundo do humano, deixaria de ser humano, se você não dá água a alguém que passa. Então a pluralidade das línguas tinha a ver com o limite do humano, com a própria humanidade e, logo em seguida, com algo ainda mais fascinante e desestabilizador. Explico: na conversa que prosseguia, cada vez mais calorosa e emocionante, outro interlocutor me pergunta mais ou menos assim: “Está bem, eu posso admitir isso, afinal quem somos nós?, somos ignorantes, mas ele, que fala o que não entendemos, ele entende a nossa língua, não é?.” Ao que eu respondi: Não. Quem fala outra língua, não entende a nossa. Isso foi inadmissível para eles, absolutamente insuportável. A primeira ideia que me ocorreu, transpondo-me para o ponto de vista deles, era que isso indicava o caráter, digamos, construído, relativo, contingente de nós mesmos – nesse caso, deles mesmos. A desnaturalização do que somos, do que eles são. Nós nos pensamos como absolutamente transparentes, fazemos tábula rasa da linguagem, quando cremos que as coisas são o que vemos e o que delas pensamos. Se o mundo é transparente, não há representação nem linguagem, ou ela é pura e direta expressão das coisas mesmas. A língua, a linguagem estaria colada às coisas, ao mundo, à natureza. Outra possibilidade: a linguagem seria universal porque colada à natureza humana, parte dela, não variando. Ainda que isso abrisse uma brecha entre as palavras e as coisas, fecharia os abismos entre os seres humanos. De todo modo, quando a linguagem se diferencia e o mundo deixa de ser universalmente transparente, instaura-se uma espécie de pânico ontológico, ou melhor, relativo à solidez das âncoras ontológicas. A desestabilização e aterradora. Eu percebi que na história do diálogo e das línguas, dos limites do diálogo, da sociabilidade e do humano, havia muita coisa ignorada em minha dissertação, que levaria para outras possibilidades reflexivas. Eu não consegui naquele momento ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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compreender as incompreensões deles, e eles, as minhas. Senti que havia um ponto importante, como o umbigo do sonho para Freud, um limite do diálogo que era justamente a tematização do diálogo, a metalinguagem. Escrevi dois textos sobre este imbróglio, em 1996 e 2014. Minha dissertação foi publicada em 1981, pela editora Zahar. Chama-se “Campesinato, ideologia e política”.
Hélio Silva – Você fez um mapeamento de grandes questões em torno dos problemas suscitados pelo encontro com o outro. Permito-me derivar para um problema adjacente. Trata-se do contexto desse encontro. Há alguns que não parecem etnografáveis [sic]. Por exemplo, o universo sobre o qual você tanto produziu. Segurança pública, violência, crime, conflito. E, no sentido mais rasteiro, situar-se em uma situação conflitiva na qual a violência explode, lançando mão de todos os recursos que a potencializam e que todos podemos imaginar. Então, o que é praticar as técnicas etnográficas em tais contextos? Você está sempre, O etnógrafo está sempre negociando um lugar, um ponto de observação. A presença do etnógrafo na observação é sempre difícil. Mas, em tais contextos, parece impossível.
Luiz Soares – Posso fazer uma pequena digressão para retomar um ponto antes de chegarmos a esta questão? Hobbes, em O Leviatã, começa com afirmações epistemológicas, dizendo que é impossível conhecer, porque o ato de conhecer está ligado à sensibilidade, à percepção. Por isso, é possível conhecer aspectos físicos, mas não um outro ser humano. Porque não se tem acesso à intimidade anímica do outro ser humano. Acesso cognitivo para ele significa também acesso físico ou sensível. Portanto, é impossível conhecer um outro ser humano. Ele se definia como um geômetra e operava de forma muito rigorosa logicamente, com a linguagem lógica de seu tempo, que ele ajudava a renovar. Só é possível conhecer a si mesmo. A partir daí, pergunta: O que é a sociedade? Como é possível a sociedade? Quais são as condições de possibilidade da sociedade humana? O que torna possível sua existência? Qual é a gênese do social? Para responder é preciso começar com a inspeção de si mesmo, porque isso é possível. Seu ceticismo epistemológico diz respeito ao outro, não a si mesmo, uma vez que o contato consigo mesmo dá-se, para Hobbes, naturalmente. Trata-se, então, de proceder como em uma espécie de inventário interno. Será possível o conhecimento da sociedade? É possível construir cognitivamente a sociedade a partir de Hélio R.S. Silva
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um modelo? Que modelo é esse? Como é possível compor o modelo quando os outros não são incognoscíveis? O conhecimento de si mesmo permitirá construir uma antropologia, um modelo de ser humano, tomando o conhecimento de si como referência e o estendendo ao universal, sabendo-se que esta extensão é especulativa. De todo modo, é aceitável e necessária, posto que não haveria alternativa. Será projetado sobre os seres humanos empiricamente existentes, sobre as figuras que comporão o modelo, o conhecimento obtido pelo autor em seu autoexame. Portanto, todas as figuras, todos os seres humanos cognoscíveis, isto é, tratados na esfera do modelo, serão iguais. Esse é um universo paranoico em que não há alteridade, são todos absolutamente iguais – não por acaso vai dar no estado de natureza, o constructo mental que lhe serve de referência contrafactual para pensar a gênese do social via contrato. Podem-se antever as reações dos outros a quaisquer circunstâncias porque eu me conheço e posso identificar as minhas reações diante do fator considerado. As reações dos outros e as ações dos outros são análogas às minhas, são as mesmas, todas elas são especulares porque o ser humano é um só – ou não é cognoscível. Todos são tratados como se fossem o mesmo não porque o sejam, mas porque este é o único meio de conhecer, dado o postulado epistemológico cético. Se eu sou guiado pela razão, mas impelido pelas paixões, e se a mais forte de todas é a paixão pela vida, que se faz sentir pelo avesso, como o medo da morte, será fácil prever a guerra de todos contra todos sem saída. A antropologia hobbesiana constrói-se partir da projeção do um, do indivíduo que se examina a si mesmo e vê-se instado a tomar-se como modelo, o único disponível. E é muito interessante porque aqui nós temos uma espécie de realização justamente da simetria substitutiva. Todos são um, todos são o mesmo, todos operam da mesma forma, todos reagem diante das mesmas situações da melhor maneira, que é uma só. Por isso aquilo que é absolutamente opaco se torna completamente transparente e previsível. Essa possibilidade de se colocar na posição de um sujeito universal, que se completará depois com Kant, em Hobbes vai se dar no campo operacional, digamos, do geômetra. Colocar-se na posição de qualquer um significa colocar-se na posição sub specie aeternitatis, para além da cultura, da história, das distinções empíricas, etc. Da parte de Hobbes, há um esforço metafísico, a constituição do ente de razão (por enquanto dotado também de corpo e paixões) como a referência matricial. E Hobbes leva maravilhosamente às últimas consequências essa ideia da simetria substitutiva, ou desse sujeito que é transitivo, que anula a alteridade. Não há alteridade porque todos são ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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iguais e são projeções do mesmo. E os embates que há, e há muitos embates, não negam essa igualdade, ao contrário, eles expressam essa comunhão dos fins, são todos o mesmo. O conhecimento de si de cada indivíduo empírito segue o mesmo percurso e conduz às mesmas conclusões. A antropologia concebível do ponto de vista de cada um, empiricamente, será a mesma, o que proporcionará a cada agente-observador, automaticamente, a mesma plataforma de avaliação e cálculo sobre os demais. Afinal, cada mente e cada corpo funciona segundo os mesmos princípios, ou melhor, esta é a hipótese sine qua non, por ser a única saída para o ceticismo epistemológico mitigado de Hobbes. A teoria do conhecimento hobbesiana é brilhante porque leva a extremos esta suposição. Ele assim a define: é verdadeiro o enunciado que é passível de ser explicado persuasivamente a qualquer um. Aquele que for capaz de produzir um enunciado persuasivo, para si mesmo, será capaz de transmiti-lo ao outro, sem nenhum tipo de obstáculo, considerando-se a uniformidade que marca sua antropologia. Portanto, e aqui está o pulo do gato, o enunciado verdadeiro é aquele que não tem sujeito, que é de qualquer um, é de todos, é de quem se puser na posição do autor para testá-lo. Veja que interessante. Essa teoria do conhecimento, ou da verdade, remete de novo à negação da alteridade. Nós estamos no circuito do sujeito universal, pressuposto e efeito da antropologia solipsista, fruto da epistemologia cética – falei em ceticismo mitigado porque, afinal, conhecer é possível, desde que haja laços sensíveis entre a instância cognoscente e o objeto. Acho que isso ajuda a esclarecer com mais detalhes a ideia da simetria substitutiva e indica o seu potencial de funcionamento. Tenho um texto que é um dos que mais gosto, talvez seja o de que mais goste, chamado A antropologia Sob o Signo da Crítica. Nele, comparo a estratégia adotada por Kant na Metafisica dos costumes para definir o ser racional, e os postulados da ética, com os rituais de passagem das sociedades sem Estado. Victor Turner fala em afastamento e liminaridade, antes da reintegração, referindo-se às etapas em que ocorre a desconstituição de todos os traços que caracterizam a singularidade individual. Exercícios simbolicamente análogos tornam comparáveis o movimento filosófico metafísico do idealismo kantiano e a produção ritual. O corpo do neófito que é destituído de todas as marcas externas, marcas identitárias, que é afastado do comum e, depois, quase que reduzido às cinzas, para usar a metáfora comum, necessita ser reconstituído. Essa possibilidade de colocar-se na posição do zero ou quase é também a elaboração do potencial de transcendência em relação às individualidades. São Hélio R.S. Silva
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movimentos que apresentam certas analogias muito curiosas na construção “de éticas coletivas” ou, do ponto de vista da filosofia, na desconstrução das dimensões materiais, corpóreas – dos interesses, das paixões – do sujeito, até que seu espírito se reduza à pura racionalidade, como num mergulho ontológico desconstitutivo das singularidades individuais. Claro que há distinções fortes. A redução ritual não depura o sujeito para a razão, mas o devolve ao zero que o instala no comum, convertendo-o em plena transitividade, ainda que, reificado, enquanto simples corporeidade faminta e dolorida, represente a própria impermeabilidade, a opacidade da matéria. Eu queria lembrar isso porque creio que esta seja uma associação fascinante e riquíssima, à qual tenho me dedicado. Em termos das questões da pesquisa em torno da violência, e aqui retorno à sua pergunta, diria o seguinte: violência é um lugar de observação das nossas situações cotidianas que tende a reduzir os espaços possíveis para o observador, para a observação. Claro que a gente vive isso no dia-a-dia e não tem uma resposta simples e unívoca. Acho que há muitos limites. Limites ditados por aquilo que a Marilyn Strathern chama, não só ela, de autoantropologia. A gente paga um preço por isso, tudo parece mais fácil, mas também a gente tende a ser muito mais raso. A contribuição é limitada, é um espelhamento que é muito complicado. Talvez não se esteja sempre fazendo o mesmo que se faz numa etnografia em que haja de fato um risco diante duma alteridade mais radical. Entretanto, na nossa sociedade, eu enfrentei pelo menos alguns momentos de radicalidade de encontros com manifestações da alteridade radical no terreno da violência. Meu grande desafio como ser humano, cidadão, agente público, e também antropólogo, porque essas coisas evidentemente se misturam, é levar a sério cada uma dessas esferas da vida sem esquecer as demais, buscando ser fiel a todas elas, na medida do possível. Um dos grandes desafios foi lidar com o monstruoso e com o sujeito da crueldade. Não da violência propriamente, muito menos da violência instrumental, que é mais simples: “Matou por quê?”. Quando você tem uma resposta tudo fica mais simples. Se aplica o utilitarismo, é horrendo, absurdo, mas faz algum sentido de algum ponto de vista: o sujeito queria um picolé, o sujeito ficou com raiva da amante, tinha ciúmes e tal. São situações absurdas e muito tristes, mas que remetem ao conhecido, a certo tipo de pressuposto que funciona como um apaziguador das nossas inquietações diante da violência. Mas quando não há nenhum motivo codificado e remissível aos jogos de linguagem ordinários, não apenas para produzir a morte do outro, mas para fazer o outro sofrer, a violência sem nenhuma razão, aí tudo se ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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complica. Refiro-me à crueldade como um excedente à racionalidade típica, tradicional, na qual se inscreve inclusive a tortura padrão, que é levar o outro à confissão para obter uma informação. Mas a diferença se instala quando se trata de tortura pela tortura, a crueldade que se dá pelo mero prazer ou pela mera vontade, não sei se prazer, pela decisão do agente supliciador sem conexão com finalidades extrínsecas ao desejo. Nesse caso, é muito difícil. O ato é perturbador também porque, sendo esse indivíduo perpetrador da crueldade alguém que participa de nossa sociedade, compartilhando elementos do que nós chamamos cultura, tudo fica ainda mais perturbador. Há um sentimento muito inquietante de que nós seríamos capazes disso. Há, de fato, tanta distância entre nós e o outro radical, o monstro? Talvez nós tenhamos imaginado aquela monstruosidade, e não a tenhamos praticado. É claro que há uma distância abissal entre passar ao ato e simplesmente imaginá-lo. Mas esta fronteira não é intransponível se nós somos processos, movimentos e nos redefinimos, nos reinventamos; se vivemos sempre a incerteza e todos os caminhos, nesse sentido, continuam abertos. As fronteiras são permeáveis e as linhas são mais tênues do que poderíamos supor, se nós não nos identificamos por uma essência natural, material, coisificada, estagnada, estática, permanente. Há permeabilidades entre nós e aquele outro extremo – temido, fonte do horror -, se nós somos outro, isto é, se nos reportamos às possibilidades de nós mesmos com um repertório aberto que nós mesmos reconstruímos, e se a dinâmica de autocriação depende do outro, porque é o outro quem devolve a nós a nossa imagem. Ora, se somos hesitações e trânsitos, não está fechada para nós definitivamente a hipótese do monstro, do que nós chamamos monstro. E talvez esse ódio, essa repugnância tenham a ver também com a necessidade de expulsarmos de nós, de exorcizarmos, de nos mantermos à distância do monstruoso como uma hipótese identitária. A repugnância expressa nosso medo e nosso esforço de afastar de nós essa potencial promiscuidade com o avesso do que somos. Vale a velha fórmula, vulgarizada mas absolutamente central: “Tudo que é humano nos diz respeito”. Quão mais você se aproxima do monstro, para dar-lhe voz e permitir que ele ou ela saia do espaço do enigma para se constituir numa relação de diálogo efetivo – eu já tive várias vezes esta experiência –, mais perturbador é. A proximidade vai se tornando insuportável. É o contrário do que acontece frequentemente, quando o outro é tão esquisito que é assustador e você perde totalmente a bússola e se sente amedrontado por estar diante da interrogação. O assassino cruel que fala nossa língua nos coloca diante de uma Hélio R.S. Silva
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alteridade que não é absolutamente desconhecida e desmapeada. Ele vai se tornando perfeitamente mapeado na medida em que você abre um espaço de interlocução e na mesma medida a agonia vai ficando maior. Eu acho que os trabalhos mais interessantes que pude fazer, além da elaboração teórica a que me referi antes, foram em torno da ideia de invisibilidade, porque é uma ideia simples, uma redefinição da ideia de reconhecimento, que permite lidar com casos triviais e extremos, desde que se respeitem as mediações pertinentes. De todo modo, trazer a questão do reconhecimento para o centro de nosso debate nos leva a separar os atores de seus atos, a qualidade dos atores da qualidade de seus atos (alguém cometeu um crime, alguém não É criminoso), desloca os agentes sociais da substancialização, da essencialização, da prisão em uma ontologia paralisante que os condenariam à malignidade, à própria violência. Nesse contexto escrevi sobre a privação de liberdade sentenciada pela Justiça criminal como um aprisionamento sintático. Uma problemática que tem para nós, eu acho, uma importância grande do ponto de vista teórico, antropológico, filosófico e, também, do ponto de vista político e existencial. Isto porque a gente passa também por todos os momentos. O momento do ódio, o desejo de vingança, a perplexidade, o horror. Ao mesmo tempo, sem negar a gravidade do que está em jogo – o que é muito difícil e arriscado – é preciso deixar ao sujeito do ato brutal o seu lugar de sujeito, mesmo porque só assim haveria uma chance de que ele se reinventasse. Tradicionalmente, há um esforço dos que têm mais sensibilidade social de atribuir ao que acontece causas quaisquer, explicações que, de alguma maneira, diluem a responsabilidade e a culpa. Eu acho que o mais difícil é não deslocar a agência do seu locus original, do sujeito. Manter a agência em seu lugar, para não paternalizar e, ao mesmo tempo, dar a essa agência algum lugar no espectro do inteligível e do passível de diálogo, por meio de em algum tipo de comunhão empática, para que um diálogo se dê na diferença, mas com o reconhecimento. Muitos colegas também fazem esse esforço. Para mim, a pesquisa nunca foi dissociada da vida, seja como cidadão, seja como agente público. É claro que isso impõe enormes restrições ao trabalho de observação.
Hélio Silva – Mas quando eu estou falando dessa questão da violência, da guerra, do risco, da falta de lugar para o observador, numa guerra, numa batalha, eu não estou restringindo a isso. Eu acho que isso é uma manifestação social mais espetacular de um fenômeno que atravessa várias instâncias do social, dimensões, domínios, instituições ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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que não reservam lugar para observação. E a etnografia é uma aposta na possibilidade de tentar. Então quando eu falo disso, estou pensando assim: há inúmeras dimensões do social que não são observáveis, que não são etnografáveis…
Luiz Soares – Eu me lembro, agora, que você tinha mencionado esse ponto e eu fui para o mais imediato. Etnografar entendido como sinônimo de descrever e interpretar – sendo essa interpretação validada a posteriori por processos que envolvem múltiplos atores e instâncias – é, ex ante, guiado pelo passado, por teorias, por orientações práticas, metodológicas, mas não inteiramente e nem sempre. Porque ela é prática, performance que se autoconstitui, ela é ação. Essa dimensão performativa, de “ação”, está presente. Então, assim como o sujeito não está completo, a etnografia, tampouco. Há o intervalo, o vazio, o silêncio numa ponta e na outra. No entanto, acho que não faz sentido dizer “é impossível etnografar”. Isto porque só a posteriori cada etnografia pode se configurar como tal. E não há um limite para o repertório, para a prática etnográfica, como não há para a ação humana ou para os textos que se podem escrever, os romances que se podem escrever, as canções que se podem compor. Alguns textos seriam impensáveis em um certo contexto e, depois, se tornam até vulgares. Por isso, eu acho que o não etnografável não pode ser pensado antes de sua identificação, sendo que sua identificação corresponde já a um processo de descrição. Então a gente está no processo, já está no meio da etnografia.
Hélio Silva – Alguma coisa que eu não lhe perguntei?
Luiz Soares – Há um ponto ainda. Você é um excelente observador dos detalhes e, portanto, o que vou dizer não se refere à sua obra e sim às obras dos autores que foram chamados, nos anos 80, pós-modernos. Naquela época, as referências aos chamados “detalhes” diziam respeito às questões da representação e da autoridade etnográficas. Lembro dos textos do James Clifford e do próprio Clifford Geertz, por exemplo. O debate girava em torno da verossimilhança, da autoridade etnográfica, do “eu estive lá”, “eu sou testemunha direta”. Nesse ambiente, o detalhe aparece como índice de autoridade, expressão do caráter testemunhal da etnografia, que se passaria por depoimento, o qual, por sua vez, remeteria à autoria, à problemática da autoria. A autoridade epistemológica, a legitimidade acadêmica da pesquisa e a fidelidade Hélio R.S. Silva
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empírica da observação repousariam nesses indícios da presença no campo, os detalhes: “é assim, eu vi”. Os detalhes garantem o pacto entre leitores e etnógrafos. O modelo extremo da separação entre o verdadeiro e o falso talvez seja a acareação policial. Os advogados sabem do que estou falando. Os policiais mais ainda. Contudo, detalhes não remetem apenas a esta problemática – que considero relevante, claro, ainda que tenha sido, a meu ver, hipertrofiada, esvaziando outra dimensão para a qual gostaria de chamar a atenção. Eu percebi que durante algum tempo, pelo menos por parte de muitos dos meus alunos, o “detalhe” passou a ser desprezado, como se fosse exclusivamente uma espécie de recurso metodológico para a construção da autoria, da autoridade da obra etnográfica. Por isso, considerando este contexto, o que aconteceu no seu trabalho eu acho que foi raríssimo. O tipo de atenção que você dá ao detalhe é notável. Destaco este ponto no prefácio que escrevi para a segunda edição de A Invenção do Feminino, que você desenvolveu, aprofundou e renomeou. No Trotsky e Travesti me refiro a pequenas cenas no banheiro, pequenos detalhes: eles são absolutamente decisivos. É como se você pudesse contar a história pelo contorno, pelos pequenos utensílios e pequenos movimentos, bordejando as pequenas cenas para abordar os personagens e bordar a descrição. Isso é muito mais eloquente do que a grande cena. A grande cena, às vezes, não está onde se pensa que está, e talvez o virtuosismo da observação esteja em olhar para o lugar certo, como a câmera no cinema. E o que que é o lugar certo? É aquilo que a posteriori se revela capaz de ser revelador de alguns aspectos que se mostram, na descrição etnográfica completa, especialmente relevantes. É como o fotógrafo que escolhe um certo ângulo que permitir que algo diverso se veja. Em suma, a reconstrução desse olhar e a coleção de miudezas: temos aí um repertório que é absolutamente fascinante e não se limita, em absoluto, a recurso de autoridade ou a caução de verossimilhança.
Hélio Silva – Aliás essa questão do detalhe me parece que está no coração da etnografia, que em vários autores é muito tênue. Trata-se de um material que permite reconfigurar certos processos, restituições, enfim.
Luiz Soares – Eu vou te dar um exemplo. Já escrevi algo parecido com biografia, no caso do Tudo ou Nada (história de um brasileiro preso em Londres por associação ao tráfico de duas toneladas de cocaína). O que torna impossível para mim biografar ou ENTREVISTA COM LUIZ EDUARDO SOARES
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escrever um relato a respeito duma experiência vivida por alguém é a impossibilidade de ter acesso ao detalhe que escapa à visualização do próprio personagem. Eu não consigo. Fica uma coisa absolutamente rasa se eu me ativer exclusivamente ao depoimento, a não ser que o depoimento seja rico o suficiente para trazer outros elementos contraditórios em relação a si mesmo. Às vezes, o fato acontece quando o observador-narrador tem sensibilidade para ir além de argumentações. Mas é muito difícil que você seja capaz de tratar uma sucessão de circunstâncias e de atos sem levar em conta o que não faz parte da sucessão de circunstâncias e atos. Você sabe muito bem disso, muito melhor do que eu, não é verdade? Isso me lembra da tal “atenção flutuante” de que fala Lacan. Você usou isso explicitamente em algum texto seu, não foi? É mais ou menos disso que se trata: se você está muito focalizado no que supostamente acontece no centro da cena, você vai perder tudo mais. Se você está um pouco mais aberto às demandas por sua atenção, você tem mais possibilidade de transitar por outros ritmos, insinuações, outros lugares, outras tramas da própria cena.
Transcrição Samandra Paz Azevedo (Navisual, UFRGS).