Entrevista de Luiz Eduardo Soares a Arnaldo Bloch, parte da qual foi publicada no Globo de 26 de fevereiro de 2012
Matéria de Arnaldo Bloch e Chico Otávio sobre milícias.
1) Por que ficou ausente? Acabou o problema?
Resposta: Ficou ausente como ficara antes, como estivera por muitos anos ausente e como permanecera por longos períodos ignorado, mesmo depois de tornar-se foco da atenção midiática, quando os profissionais de O Dia quase foram mortos. Ficou ausente, sepultado no limbo da atenção pública com a zona oeste, que é, na verdade, uma espécie de zona de sombra da consciência carioca. Ficou fora de foco como sempre ficaram as questões profundas e estruturais das organizações policiais e de nossa arquitetura institucional da segurança pública. A problemática emerge apenas nas crises para logo hibernar. Discutir em profundidade tudo isso fora da crise, atitude que a evitaria, não se faz, no Brasil.
Dito isso, vamos à pergunta mais específica: o problema das milícias não acabou. Pelo contrário, continua firme e forte. E continuará, enquanto não mudarmos em profundidade nossas polícias e enquanto não eliminarmos a fonte mais vigorosa de sua reprodução: o gato orçamentário. Trata-se do seguinte: o Estado tem um pé na legalidade e outro, na ilegalidade. Ergue-se sobre essa dualidade esquizóide, contraditória. Explico: como o orçamento para a segurança pública é irreal e os salários pagos, insuficientes, é preciso não reprimir o bico do policial na segurança privada, apesar de sua ilegalidade, para evitar que a demanda salarial da categoria provoque o colapso do orçamento. Ou seja, a atividade informal e ilegal dos policiais é o que permite a vigência dos padrões salariais tão baixos, e é o que viabiliza a estabilidade das contas públicas. Em outras palavras: a segurança privada informal e ilegal “financia” o orçamento da segurança pública, torna-o possível. Acontece que quando não se reprime o bico, tolera-se a ilegalidade legítima, digamos assim, porque bem intencionada, e a ilegalidade ilegítima, orientada para instrumentalizar ações criminosas. A realidade degradada da segurança privada informal e ilegal abriga desde os que provocam insegurança para vender segurança, até grupos de extermínio e até mesmo, em desdobramentos metastáticos, as milícias. Elas são filhas bastardas do gato orçamentário e persistem porque funcionam em uma estrutura organizacional (policial) absolutamente incompatível com a racionalidade e a complexidade da vida democrática.
2) Ou elas são um problema menor, pois não incomodam diretamente as chamadas “elites”?
Resposta: Para as elites, mal existem, assim como a zona oeste. São personagens fantásticos de outro planeta.
3) Ou, como desenha Tropa II, estão envolvidas de corpo e alma com as autoridades do executivo?
Resposta: Todos sabemos que isso ocorria. Entretanto, depois de tudo o que aconteceu –a brutalidade perpetrada contra o pessoal do Dia, a CPI, o trabalho sério e bem sucedido de Cláudio Ferraz, na Draco, e o filme, Tropa de Elite 2 & o livro, Elite da Tropa 2–, os políticos foram forçados a afastarem-se. Claro que elos persistem e se aprofundarão nesse ano eleitoral. Contudo, de modo mais discreto e mediado.
4) Ou seriam um problema sem solução, uma geração podre da polícia que só cabe esperar que envelheça e morra, e seja substituída por uma nova geração, limpa e ética?
Resposta: O problema de corrupcão e brutalidade nas polícias não se esgota em desvios de conduta individuais, mesmo que em grande número. Podemos prender todos os corruptos. Se não alterarmos a estrutura organizacional (legada pela ditadura) que envolve todo um modo de funcionamento, os problemas recomeçarão. As polícias, tais como estão organizadas, são fábricas de desordem, descontrole, ingovernabilidade, refratárias a gestão, transparência, prestação de contas à sociedade. Escrevi livros sobre essa ingovernabilidade e seus condicionantes. É assunto para longas conversas.
5) Elas continuam a ser as inimigas públicas Número 1 da segurança no Estado?
Resposta: Sim, porque representam a indistinção entre polícia e criminalidade, lei e arbítrio.
6) Como atuaram durante as greves na Bahia e no Rio?
Resposta: Não tenho informações, mas não tenho dúvidas de que com os salários atuais e a proibição dos canais de participação e expressão, as milícias tornar-se-ão crescentemente atraentes para os segmentos da categoria policial menos sensíveis aos princípios éticos.
7) Que juízo você faz das UPPs no momento? Elas são apenas uma fachada de Zona Sul + Eixo Copa/Olimpíadas?
Resposta: As UPPs são um programa muito importante, que deve ser apoiado e, se estão por ora principalmente nas zonas dotadas de maior visibilidade, devemos reivindicar a extensão de sua implantação para as demais áreas, inclusive aquelas sob o domínio de milícias (só há uma UPP em área desse tipo: no Batan). O que são as UPPs? Assim como os mutirões pela paz e os GPAES, são a substituição das incursões bélicas às favelas (em que morriam suspeitos, inocentes da comunidade e policiais), as quais eram sucedidas pela retirada dos policiais e o pronto restabelecimento da dinâmica do tráfico (no contexto em que policiais negociavam com traficantes todos os dias, à luz do sol, sem pudor), pela provisão do serviço 24 horas de segurança pública, permanente, como ocorre nos bairros de classe média, nos quais a polícia não invade e depois se retira. É apenas isso e isso é muito, muitíssimo, revolucionário. Claro que essa presença policial tem de ser respeitosa da legalidade constitucional e dos direitos humanos. E claro que, uma vez garantida a segurança, o Estado não pode mais justificar sua omissão e postergar o cumprimento de seu dever nas demais áreas, como saúde, educação, etc…
Para que o novo/velho bom modelo das UPPs não se deteriore, como os dois programas anteriores, é preciso pleno apoio político e popular, o que tem acontecido, felizmente. Mas é também preciso que se converta em política pública, deixando de ser apenas um programa. Para esse upgrading, são necessárias duas qualidades: universalização e sustentabilidade. Ou seja, tem de chegar a todas as áreas necessitadas, ainda que gradualmente, e tem de manter-se no tempo, sem engasgos e descontinuidades. Para que as UPPs se universalizem e se tornem sustentáveis, isto é, para que se transformem em política pública, sua aplicação tem de se institucionalizar, ou seja, a responsabilidade por sua implantação tem de ser entregue às polícias, no caso, à PM. No entanto, todos sabemos que isso é inteiramente inviável, dado o nível de corruptibilidade, de degradação e dada a ingovernabilidade da PM. Entregar a UPP à PM seria condenar o ótimo programa ao fim. Para resolver esse dilema, é preciso fazer o que o governo do Estado até agora recusou-se a fazer: meter a mão no vespeiro policial não para prender indivíduos, mas para promover uma reorganização institucional, indo ao limite do constitucionalmente permitido e, na sequência, pressionando o Congresso por mudanças no artigo 144 da Constiuição para que a transformação seja possível.
8) É tangível, no futuro, uma UPP que moralize as milícias?
Resposta: Para que as UPPs tenham futuro, precisamos mudar as polícias, o que também acabaria com as milícias.