Entrevista de Luiz Eduardo Soares a Cristian Klein, do Valor
Entrevista de Luiz Eduardo Soares a Cristian Klein, do Valor:
1 – Qual é o risco de que as PMs estaduais sejam utilizadas politicamente pelo presidente Jair Bolsonaro?
Resposta: Ninguém tem como saber qual é exatamente o potencial de mobilização de Bolsonaro. Nem ele. A resposta depende de outras perguntas: (a) Para que serviria a mobilização? (b) Em que ela consistiria, ou seja, que ações seriam solicitadas? (c) Em que contexto? (d) Qual a posição do governador e dos comandos superiores? Essas questões são decisivas porque determinam os riscos físicos e profissinais, isto é, os possíveis custos envolvidos em punições posteriores. Por exemplo: é muito diferente tumultuar uma sessão eleitoral, alegando o recebimento de denúncias sobre fraudes, e fazê-lo com anuência dos superiores, que por sua vez contassem com a cobertura do governador, de promotores e juízes locais, de uma ação armada contra as ordens do próprio governador, etc…
2 – Há indícios de que a politização das corporações aumentou desde a chegada de Bolsonaro ao poder?
Resposta: Sem dúvida. As polícias eram, majoritariamente, bolsonaristas antes de Bolsonaro, porque tanto a cultura das corporações policiais quanto o presidente se filiam à mesma linhagem ideológica, que remete aos porões da ditadura. Com a chegada de seu “messias” ao poder, um amplo contingente de policiais -oficiais e praças-, em todo o país, se sentiu autorizado a tirar do armário o ódio racista e a defender execuções extra-judiciais, sem qualquer pudor -o que vale também para setores do Ministério Público e do Judiciário.
3 – Podemos dizer que há uma tendência de apoio em bloco ou existem fissuras, divisões internas, de acordo com a patente, diferença salarial, região/ Estado, ou outra?
Resposta: Como estamos falando de centenas de milhares de pessoas, claro que existem divisões, mas não creio que haja muita variação entre regiões e patentes, no que diz respeito a identificação ideológica. Já no que concerne à disposição para agir, as diferenças são significativas. Quão mais elevada a patente, maiores as responsabilidades e mais se tem a perder.
4 – O que os governadores (ou o Congresso e a legislação) podem fazer (ou, por outra, deixaram de fazer) para impedir a politização das polícias?
Resposta: No processo constituinte, a correlação de forças permitiu que os militares delimitassem uma reserva estratégica e declarassem: “aqui não se toca”. Brinquem com sua democracia para lá; aqui, não. A transição não pôde se estender às Forças Armadas e às instituições da segurança pública. Criou-se, assim, um enclave institucional, refratário ao Estado democrático de direito e à autoridade política, civil e republicana. Por isso, as polícias não mudaram, o modelo policial forjado pela ditadura foi mantido no artigo 144 da Constituição. Herdamos estruturas obsoletas, práticas racistas e o entendimento perverso sobre qual seria a missão policial: em vez de garantir direitos, as corporações acreditam que seu objetivo seja eliminar o mal da sociedade. A autonomização ilegal e avessa à autoridade política é a principal e mais perigosa caracterísitca das polícias brasileiras, civis e militares. O resultado está aí. O MP não cumpriu seu dever constitucional de controlá-las. A Justiça foi cúmplice. Os políticos se renderam às chantagens e à própria impotência. Agora, o tema que tem sido a obsessão de alguns pesquisadores, há décadas, começa a preocupar. O que fazer? Furar a bolha, demolir os muros que cercam o enclave, submeter as polícias, rigorosamente, à Constituição: isso se faz no dia a dia, bloqueando as violações cotidianas, as abordagens humilhantes e abolindo as execuções extra-judiciais. Paralelamente, é preciso valorizar, profissionalmente, os cidadãos policiais.
5 – Como vê o comportamento do Exército diante do risco de as PMs se engajarem em defesa do governo, por exemplo em atos como os convocados para 7 de setembro?
Resposta: Não vejo. O Exército nunca usou suas prerrogativas legais para impedir que crimes perpetrados por policiais militares se naturalizassem como se fossem política pública. Que esperança esse histórico pode nos oferecer?
6 – Há receios de que manifestantes em Brasília promovam baderna, com invasão do STF e do Congresso. Isso pode ser feito com a anuência das PMs?
Resposta: Em tese, claro que sim, mas, em Brasília, só será feito se contar com o apoio velado do Planalto.
7 – Que semelhança teria com a invasão do Capitólio feita pelos trumpistas no início do ano. Que diferenças há (quanto a estratégia, obstáculos) entre a ameaça golpista de Bolsonaro e a de D. Trump nos EUA?
Resposta: As Forças Armadas dos EUA só desrespeitam as instituições democráticas no exterior.
8 – A direita costuma propalar que suas manifestações são pacíficas. Esse mito está a ponto de ser rompido? O clima de desordem favorece Bolsonaro?
Resposta: A desordem é a utopia de Bolsonaro.
Cristian Klein Valor: Um complemento em relação à pergunta 5, para ser mais específico:
5.1- As PMs podem funcionar como um fator de desestabilização ajudando atrair segmentos das Forças Armadas? Pq as PMs em si não teriam força para dar um golpe, assim como as Forças Armadas têm. Mas podem ser o embrião de algo maior? Ou eventualmente poderiam ser sufocadas pelo Exército? Por outro lado, como isso se daria caso Bolsonaro impedisse as Forças Armadas de agirem para restabelecer a ordem?
Resposta: Entre os cenários pessimistas, o menos improvável seria o seguinte: policiais promovem tumultos em manifestações ou no dia da eleição, em sessões eleitorais. Bolsonaro se aproveita da confusão para concentrar poderes, dizendo que está defendendo a democracia de comunistas arruaceiros ou de fraudadores de eleições. Nos dois casos, não é preciso que as Forças Armadas façam nada. Pelo contrário, basta que elas não façam nada.