Entrevista de Luiz Eduardo Soares sobre a escalada da violência em São Paulo, concedida a Luisa Bustamante, publicada no jornal O Dia
Versão integral da entrevista de Luiz Eduardo Soares sobre a escalada da violência em São Paulo, concedida a Luisa Bustamante, publicada no jornal O Dia, em 17 de novembro de 2012.
1- Os casos de violência em São Paulo ganharam repercussão na mídia durante as últimas semanas. A violência na Região Metropolitana da cidade está mesmo crescendo?
Resposta: É o que dizem os dados. É o que dizem os paulistas, nas conversas do dia a dia, sobretudo aqueles que moram nas áreas mais pobres, onde se concentra a onda de violência.
2- A violência no Rio ainda é maior do que em São Paulo? E por aqui ela é mais preocupante?
Resposta: Violência é sempre preocupante, em especial o seu tipo mais grave, o homicídio doloso, que é o nome técnico do assassinato cometido intencionalmente. No estado do Rio, o número de homicídios é bem maior, proporcionalmente, isto é, se levarmos em conta o número de habitantes. A diferença favorável ao Rio é o fato de que, por aqui, os números vêm caindo, enquanto, no estado de São Paulo, estão aumentando, aceleradamente. Até mesmo a quantidade dos “autos de resistência”, que se referem às mortes provocadas por ações policiais e que escondem, com frequência, execuções extra-judiciais, apesar de ainda elevadíssima, está caindo, no Rio, e crescendo, vertiginosamente, em São Paulo.
3- A impressão que eu tenho – me corrija se eu estiver errada – é de que a polícia em São Paulo têm uma certa postura de extermínio. Parece que a ideia predominante por lá é que bandido tem que ser morto. O que levaria policiais a dispararem contra eventuais bandidos sem que seja estritamente necessário – em caso de risco de vida do policial ou de outrem. Essa postura é real? Como você enxerga isso?
Resposta: Este é o ponto chave. A explosão de violência em São Paulo tem aí sua origem. Se isso não for reconhecido, nada se fará para corrigir os erros trágicos geradores desse tsunami de crimes bárbaros. Em primeiro lugar, é preciso deixar claro o que a Constituição determina, coincidindo com as Declarações Internacionais dos Direitos Humanos: policiais estão autorizados a usar a força de modo comedido, de acordo com o risco envolvido para si mesmo e para potenciais vítimas inocentes. Portanto, é legal e legítimo mobilizar recursos de coerção e empregar a força, mas de forma proporcional à gravidade de cada situação enfrentada. Por isso, os policiais são treinados para obedecer ao que se chama “gradiente do uso da força”. Matar só é admissível quando não houver alternativas e o suspeito representar ameaça fatal imediata. Quando se chega a esse extremo, registra-se a ocorrência como “auto de resistência”, por referência ao fato de que a vítima da ação policial teria reagido, colocando a vida dos policiais ou de inocentes em perigo máximo. Ocorre que, muitas vezes, os policiais não cumprem a lei e matam o suspeito, como se pudessem julgar a pessoa, condená-la à morte e executá-la, desrespeitando a Constituição, a Justiça e o Estado de direito. Em vez de garantir direitos e fazer respeitar a lei, que é sua função, a polícia agiria como extensão da criminalidade, à margem da legalidade, alimentando o ciclo da violência.
As polícias fluminenses estão entre as mais violentas do mundo. Entre 2003 e 2011, elas mataram 9.231 civis. Estamos falando de duas instituições policiais atuando junto a uma população de 15 milhões de habitantes. A média supera mil por ano. Para que se tenha uma ideia de quão absurdos são esses números, os Estados Unidos tem cerca de 300 milhões de habitantes e aproximadamente 21 mil polícias (porque elas são pequenas e distritais, em sua maioria), mas elas matam, em média, 350 pessoas por ano. E esse número já é muito alto. A boa notícia, é que os autos-de-resistência vêm decrescendo, nos últimos dois anos, apesar de continuarem existindo.
É importante esclarecer o seguinte: quando dona Maria, moradora de Ipanema, diz que a polícia deve ser dura com os bandidos, deve agir sem obedecer os limites impostos pela legislação, já que os criminosos também desprezam as leis, ela não faz a menor ideia de que está contribuindo para o crescimento da criminalidade e não para a vitória das forças da ordem. Isso mesmo: quem defende a liberdade para os policiais agirem sem escrúpulos legalistas, aplicando a violência para combater o crime, nas ruas, nas favelas, nas periferias, acaba estimulando a adoção de práticas que condenam as instituições policiais à degradação e ao enfraquecimento, o que interessa aos criminosos. Foi o que se passou no Rio. Vejam como acontece: o policial que tem carta branca para matar pode usar essa liberdade de duas maneiras. Pode matar o suspeito ou não fazê-lo. A decisão será sua. Ora, quem tem o destino do outro em suas mãos, pode negociar a vida alheia, transformando-a em uma moeda valiosa. “Quanto você me dá para que eu poupe sua vida ou a vida de seu parente, de seu parceiro ou de seu comparsa?” Essa a pergunta que se tornou corrente, quando, no Rio, em meados dos anos 90, várias unidades policiais, em nome da “guerra contra o crime”, deixaram de aceitar a rendição de suspeitos. Resultado: os bandidos passaram a investir em armamento pesado, adotaram a tática terrorista de matar policiais fora do serviço, a corrupção explodiu para níveis nunca antes experimentados e os acordos ou “arregos” entre bandidos e segmentos policiais se multiplicaram em alta velocidade, criando uma verdadeira comunidade de negócios em que os homens da lei igualaram-se aos fora da lei. A consequência é bem conhecida: mais crimes, menos polícia confiável e competente. No Rio, aprendemos que não há polícia eficiente se ela for autorizada pelos superiores políticos a desrespeitar a legalidade constitucional. Vejam só como dona Maria estava enganada. Ela pensava que essa conversa de direitos humanos só servia para proteger bandidos e aumentar a insegurança. Vivendo e aprendendo, dona Maria. O Rio começa a aprender sua dura lição. Mas São Paulo continua a ser mau aluno nas aulas que a história oferece. São Paulo erra e, quando a crise estoura, ao invés de fazer auto-crítica e tentar mudar, insiste com teimosia e arrogância em fazer mais do mesmo, como se o erro repetido com mais intensidade se convertesse em acerto. Parece irracional, estúpido, quase infantil, e é.
Em São Paulo, os casos de autos de resistência vieram se acumulando ao longo dos anos sem nenhuma providência por parte do governo e das autoridades da segurança. O governador não disse basta, nem o secretário. Tampouco a sociedade ou os formadores midiáticos de opinião. A Justiça não interveio, nem o Ministério Público. O governo federal calou-se e prosseguiu repassando recursos, que é uma forma de endosso. O silêncio conivente disseminou-se, com as raras e honrosas exceções dos movimentos sociais, sempre atentos e críticos. Ora, nada disso tem mistério, nem exige muitas luzes para compreender: se as execuções extra-judiciais continuam a acontecer, impunemente, elas tendem, com o passar do tempo, a se tornar mais frequentes, mais ostensivas, menos envergonhadas e clandestinas. Pelo contrário, elas passam a ser uma espécie de marca do Zorro, a assinatura cruel e criminosa de uma política de segurança pública desumana e irracional.
O resultado da “política do confronto”, da “política de guerra” é a perda do controle dos policiais, na ponta, e do processo de realimentação em espiral da violência, que segue a terrível lógica da vingança: olho por olho, dente por dente. Esse quadro tem mais dois componentes importantes: a relativa unificação do crime sob o comando do PCC e a inclusão das crises prisionais na equação.
Enquanto isso, os governos federal e estadual resolveram fazer as pazes, porque não estavam pegando nada bem as disputas políticas numa hora dessas. Reuniram-se com pompa e circunstância e o que fizeram? Anunciaram a criação de uma agência integrada que passaria a trabalhar articulando todas as instituições responsáveis pela Justiça criminal. Não acredito na sinceridade e, portanto, na seriedade da iniciativa. Por que? Porque criei esse mesmo organismo, no começo de 2003, quando fui secretário nacional de segurança pública. Criei, com o Dr. Paulo Lacerda, então diretor geral da polícia federal, e com o endosso do ministro da Justiça, o Gabinete de Gestão Integrada da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Quem representava São Paulo e assinou o compromisso, no Palácio Bandeirantes, naquela oportunidade? O governador Geraldo Alckmin. Por que o GGI virou poeira? Porque intervieram disputas políticas e resistências corporativas ao trabalho integrado. O que fizeram os governos federal e estadual para impedir a falência da iniciativa que eles sabiam ser da maior relevância? Nada. A (má) política venceu. Os corporativismos triunfaram. Tudo isso sob as bênçãos das autoridades. Que ainda são, no fundo, as mesmas. Como esperar alguma coisa diferente, agora, além de discursos veementes e promessas?
Enquanto o governador de São Paulo e o secretário não reconhecerem o erro e pararem de se pintar para a guerra, entoando cânticos belicosos, não se dará a volta por cima. Afinal, do lado dos bandidos não se pode esperar sensatez ou princípios, nem mesmo racionalidade cidadã. A virtude compete ao Estado e a seus tripulantes.
4- Isso provoca um certo sentimento de vingança nos criminosos? Como fica a população no meio dessa guerra?
Resposta: Exatamente, violência policial apenas alimenta o circuito interminável da violência e as retaliações se sucedem, atingindo inocentes.