Entrevista sobre cotas nas universidades para o site Nota de Rodapé
Preto no branco
Sabe quando seus olhos ou ouvidos batem em algo que salta da página, ecoa na cabeça e fica atormentando o juízo? Aconteceu comigo há algumas semanas, quando li um comentário de duas linhas na geleia geral do Facebook. Transcrevo: “Por anos lecionei só na Pós. Este ano, voltei à graduação da UERJ. O resultado das cotas para negros é tão maravilhoso, que me emociono toda semana.” O autor do comentário era Luiz Eduardo Soares, antropólogo, escritor, dramaturgo e gestor público com importante atuação em todas essas áreas.
Nota de Rodapé – Por que você acha necessário que sejam estabelecidas cotas de acesso ao ensino superior público baseadas em critérios raciais?
Luiz Eduardo Soares – Pesquisa importante do IPEA, concluída no início da década passada, mostrou que um jovem branco de 18 anos tinha, em média, mais 2,3 anos de escolaridade do que um jovem negro, da mesma idade. Demonstrou ainda mais: o pai desse jovem branco, 30 anos antes, tinha mais 2,3 anos de escolaridade do que o pai do jovem negro. Além disso, comprovou que o avô desse jovem branco tinha, 60 anos antes, mais 2,4 anos de escolaridade do que o avô do jovem negro. O mais extraordinário não é o fato da trágica, brutal, vergonhosa desigualdade, mas a permanência no tempo. Uma permanência quase absolutamente invariável, contrastando com o verdadeiro tsunami de transformações que marcou a história brasileira no século XX. Enquanto o Brasil mudou intensa, veloz e profundamente, na política, na cultura, na economia, nas relações sociais, nas organizações familiares e até nos padrões de religiosidade, o racismo estrutural manteve-se congelado, intocado, inteiramente protegido por uma blindagem potente, intransponível, impermeável aos terremotos sociológicos, aos golpes, às transições políticas, às alterações constitucionais, às mobilizações cívicas, aos projetos educacionais, à expansão da mídia. Portanto, o século XX demonstrou à sociedade brasileira que, assim como na economia não basta fazer crescer o bolo para que todos se beneficiem, por uma espécie de efeito natural do desenvolvimento, também na urgente e prioritária questão do racismo não adianta esperar que a redução de desigualdades econômicas e a distribuição de renda dissolvam as barreiras erigidas pela cor da pele. O racismo é um preconceito que tem patas pesadas, bases sólidas, plantadas como pilares na raiz de nossa história colonial e escravagista, que oprimiu e devastou populações indígenas e comunidades negras. Está errado o diagnóstico que atribui o preconceito às diferenças de classe, afirmando que o negro é discriminado por ser pobre, não por ser negro. Errado. Análises sociológicas de Carlos Hasenbalg, Nelson Vale e Silva, Ricardo Henriques, entre outros, já demonstraram à exaustão que, embora a discriminação dos pobres seja real e dramática, não se confunde nem explica a discriminação contra os homens negros e as mulheres negras. Conclusão: ou o Brasil, como nação, intervém nesse quadro para mudá-lo, enfrentando o racismo – e para enfrentá-lo é preciso, primeiro, reconhecer sua existência –, ou as gerações se sucederão continuando a respirar o ar infecto dessa monstruosidade repugnante, a meu ver a maior de todas: o preconceito de raça, étnico ou de cor. Não esperemos que as migalhas – benefícios residuais – caiam da mesa em que a boa consciência nacional celebra suas virtudes, fartando-se no banquete de sua idolatria solipsista e narcísica, embriagando-se com a retórica inebriante da democracia racial ou com o mantra narcótico da mestiçagem. É preciso agir de imediato, recorrendo-se aos mecanismos disponíveis, ou seja, adotando-se políticas públicas pragmáticas de efeitos tópicos e imediatos. As cotas incluem-se nesse repertório de ações públicas que não constituem soluções, propriamente, mas mitigações e redução de danos. Nem por isso as cotas devem ser subestimadas em seu alcance, em suas consequências positivas. Mesmo não resolvendo os problemas, as cotas para ingresso nas universidades começam a virar o jogo por meio da incorporação de filhos da população negra às elites dirigentes, nas diversas áreas profissionais e políticas. A médio e longo prazos, far-se-ão ouvir vozes distintas, expressando perspectivas diferentes e verdadeiramente comprometidas com a luta antirracista. Estaremos, então, no umbral de grandes transformações democratizantes.
NR – Não seria mais justo deixar que o mérito/desempenho desse conta da questão do acesso?
LES – Onde está o mérito? Quem é mais capaz? Quem é mais dedicado? Quem reúne talento, dotes naturais, disciplina aprendida, disposição de trabalho, persistência, conhecimentos acumulados? Talvez os que puderam acumular mais conhecimentos até o vestibular não sejam os mesmos que disponham de mais talento, dotes, disciplina, disposição e persistência. Afinal, as condições com que contaram para a formação escolar foram muito diferentes: a qualidade das escolas foi diferente, a qualidade de vida em casa, no transporte, assim como terão sido distintas as chances de acesso aos livros e ao material didático pertinente. Uma nota 7 para quem cumpriu sua trajetória social e escolar driblando inúmeros percalços e obstáculos traduz um desempenho global inferior a uma nota 7,5 ou 8, conferida a quem percorreu seu itinerário escolar e social com todos os estímulos, apoios e facilidades? Quem alcançou melhor rendimento, considerando-se as condições com as quais cada um contou? Esta consideração não é indulgente ou paternalista, apenas expressa um pressuposto intrínseco ao argumento que valoriza o mérito: a equidade. Não há como entender o significado do mérito sem admitir a equidade como princípio matricial de juízo e fundamento do valor. A projeção do argumento relativo ao mérito recobre dois planos: o passado, traduzido no desempenho que as provas retratam, e o futuro, definido como provável desdobramento do passado. Se é assim, a indagação sobre o desempenho deve com mais razão levar em conta as condições com as quais contaram os candidatos em suas histórias de vida, uma vez que as expectativas a respeito de rendimento futuro não podem ser apenas derivadas do passado, como seu desdobramento natural e contínuo, porque, na universidade, a equidade será garantida – ou melhor, as iniquidades serão reduzidas, todos recebendo o mesmo ensino. O passado de dificuldades sofre uma refração e, projetando-se para o futuro, submete-se a uma inflexão de sinal positivo, inclinando para cima a curva de desempenho provável. Eis as notas 7 e 8 encontrando-se no horizonte prospectivo. E é exatamente isso que tem acontecido, segundo as pesquisas já realizadas e de acordo com minha própria observação cotidiana.
NR – De que maneira a sociedade brasileira como um todo pode se beneficiar desta política?
LES – Uma sociedade livre de racismo é uma coletividade muito melhor dos pontos de vista mais diversos. Ares mais dignos, menos hipócritas e desrespeitosos, farão bem a todos.
NR – Qual tem sido a sua experiência sobre o assunto, como professor?
LES – Tenho o privilégio de ser professor da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) há mais de duas décadas. Acompanhei de perto todo o processo de aprovação e implementação da política de cotas. Hoje, me emociono todos os dias de aula, quando encontro um número enorme de alunos da melhor qualidade que vieram das áreas mais pobres, das famílias mais pobres e que atravessaram as barreiras do racismo para chegar à universidade. Dedicam-se aos estudos com paixão, orgulham-se de participar da universidade e a valorizam. O clima na UERJ mudou para melhor. O padrão intelectual elevou-se. O resultado é visível e indiscutível. Emociona.
foto: divulgação |
LUIZ EDUARDO SOARES
Formou-se em Literatura, na PUC-RJ, e construiu sua carreira combinando produção literária e dramatúrgica com docência, obras acadêmicas e gestão pública. Escreveu, com Domingos de Oliveira e Márcia Zanelato, a peça “Confronto” e a adaptação para o teatro de seu livro “Tudo ou Nada”, que será encenada no começo de 2013, com direção de Marcus Faustini.
É mestre em Antropologia, doutor em ciência política com pós-doutorado em filosofia política. Foi secretário nacional de segurança pública (2003) e coordenador de segurança, justiça e cidadania do Estado do RJ (1999/março 2000). Colaborou com o governo municipal de Porto Alegre, de março a dezembro de 2001, como consultor responsável pela formulação de uma política municipal de segurança. De 2007 a 2009, foi secretário municipal de valorização da vida e prevenção da violência de Nova Iguaçu (RJ). Em 2000, foi pesquisador visitante do Vera Institute of Justice de Nova York e da Columbia University.
Tem vinte livros publicados, entre eles o romance Experimento de Avelar, premiado pela Associação de Críticos Brasileiros em 1996, e Meu Casaco de General, finalista do Prêmio Jabuti em 2000. Foi professor da UNICAMP e do IUPERJ, além de visiting scholar em Harvard, University of Virginia, University of Pittsburgh e Columbia University. É professor da UERJ e coordena o curso à distância de gestão e políticas em segurança pública, na Universidade Estácio de Sá. https://www.luizeduardosoares.com
Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto