Estamos errando o foco sobre segurança pública?
Um serviço especializado de segurança pública pode resultar em um sistema que coloque o serviço das polícias e das políticas públicas a serviço da população?
No mês passado, o antropólogo, cientista político e escritor Luiz Eduardo Soares esteve em Porto Alegre para participar de audiência pública sobre segurança pública organizada pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, com o tema “Arquitetura institucional da Segurança Pública e modelo de polícia no Brasil”, e também conversou com a jornalista Anelise Dias, para a revista o Viés. Soares, que é um dos principais propositores de mudanças estruturais nas instituições de segurança pública e no modelo de polícia hoje vigente, falou sobre como um serviço especializado de segurança pública pode resultar em um sistema que coloque o serviço das polícias e das políticas públicas a serviço da população e da informação, ao contrário do que se vê majoritariamente hoje em dia, com polícias ligadas exclusivamente à repressão e a trabalhos burocráticos.
Luiz Eduardo Soares é hoje professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e já foi coordenador de segurança, justiça e cidadania do Estado do Rio de Janeiro (1999-2000) e Secretário Nacional de Segurança Pública (2003). É também co-autor da obra “Elite da Tropa”, em que é inspirado o filme Tropa de Elite, além de ser autor de pelo menos duas dezenas de livros publicados. Abaixo você lê a entrevista na íntegra, que está dividida em três grandes eixos. Uma boa leitura.
revista o Viés: O Tribunal de Contas do Estado (TCE) proporcionou uma audiência pública num momento em que o Rio Grande do Sul vive uma crise de gestão que se reflete em várias áreas. Em entrevista, o Secretário de Segurança Pública do Rio Grande do Sul incitou a população a agir como polícia e garantiu que o estado respaldaria essas ações, diante da greve das polícias causada pelo parcelamento do salário do funcionalismo público. Declarações como essa passam a ideia de certo ‘desgoverno’ e parece aumentar a sensação de insegurança entre a comunidade. Quais foram os principais pontos abordados na conversa?
Luiz Eduardo Soares (LS): É o ponto que diz respeito especificamente ao papel dos Tribunais de Contas dos Estados. Eles têm entre suas atribuições principais o acompanhamento, claro, das contas públicas e a avaliação sobre a propriedade dos investimentos, do custeio, dos gastos, enfim. E, portanto, pode se antecipar e eventualmente ousar dar um passo além da mera avaliação das contas para um exercício de pró-atividade, buscando orientar ou trabalhar em parceria com o Executivo para que os investimentos, os gastos, o custeio, sejam mais inteligentes, mais efetivos, produzam mais resultados.
Isso exige muito mais do que simples vontade. Exige a constituição de uma equipe ou de convênios com instituições, institutos de pesquisa, universidades, o que seja, para que sejam analisadas as causas pelas quais os resultados que têm sido obtidos têm sido esses e não outros, e quais as alternativas. E essas alternativas não devem ter como único parâmetro o gasto público, evidentemente, mas a sua a compatibilidade com determinações constitucionais, a adequação a expectativas quanto a valores, respeito aos direitos humanos, abordagem de comunidades, de modo a valorizar essas instituições, as instituições de segurança pública e seus profissionais diante das comunidades e da sociedade em geral, e vice-versa. É preciso que as comunidades, em particular, sejam também valorizadas pelos profissionais de segurança pública, alterando a confiança da sociedade nas instituições e, portanto, o modo pelo qual a própria segurança pública é apreciada, avaliada pela sociedade e pelas comunidades.
Portanto, se trata de uma redefinição das políticas de segurança pública à luz de princípios gerais, marcos constitucionais e resultados que se podem obter em termos bastantes substantivos. Isto requer diagnóstico e avaliação. Avaliação do que tem sido feito e diagnóstico do contexto mais amplo. Estudo de boas práticas, de experiências internacionais, exame de alternativas e a proposição de caminhos opcionais, que pudessem ser seguidos. E isso não se pode impor, evidentemente. Tem que ser objeto de um grande debate com a sociedade e de uma ampla negociação com os executivos estaduais, particularmente o do Rio Grande do Sul, já que aqui se daria partida a esse novo experimento.
Em primeiro lugar, as contas relativas a essa área não são examinadas quanto a sua efetividade, são examinadas quanto a sua formalidade. E a formalidade é puramente burocrática. Nós podemos gastar bem, do sentido da honestidade, da probidade, mas gerando resultados pífios, quando haveria alternativas de curso de ação mais efetivas, etc. Então é muito pouco simplesmente avaliar a propriedade formal dos gastos. No entanto, como eu disse, as alternativas exigem mais ousadia intelectual, criatividade, sanção de riscos, etc. Não sendo essa uma área da ciência pura, da racionalidade estrita, e sendo complexíssima do ponto de vista dos exames, das análises, só se poderia fazer com muito diálogo e com muita disposição para a revisão dos seus próprios pressupostos, etc. Isso exige uma grande concertação.
Seria interessante que o Ministério Público também fosse convocado para participar, na medida em que cumpre um papel constitucional ou deveria cumprir na prática um papel profissional do controle da atividade policial. Então, nós teríamos um novo desenho desta institucionalidade que gere a segurança pública por assim dizer. E os executivos teriam também que se mostrar mais flexíveis, mais abertos. Então, essa é a ideia mais importante e para que isso se converta em exemplo prático e pra que se justifique esse tipo de abordagem seria necessária a análise do contexto nacional da segurança pública, do contexto institucional, etc.
Tua leitura sobre o que está acontecendo no Rio Grande do Sul é um pouco distante, já que tua experiência está situada no caso do Rio de Janeiro. Tu poderias falar um pouco sobre compreendes esse contexto local em relação ao contexto nacional?
LS: Eu faria algumas perguntas para as quais antevejo respostas, mas formulo conteúdos que não posso ter certeza, já que não acompanho diretamente a experiência gaúcha. Tomo como referência propostas do vereador Alberto Koppitike, que não são propriamente novas, mas que são muito interessantes, e que têm sido objeto de debate no Brasil há muitos anos. Tem a ver também com a minha experiência no Rio de Janeiro, no final dos anos 1990, e com o Plano Nacional de Segurança Pública, durante o primeiro governo Lula. Primeira pergunta: existe no Rio Grande do Sul ou existem áreas integradas de segurança pública? Ou seja, os territórios sobre responsabilidade da Brigada Militar e da Polícia Civil se sobrepõem de forma articulada? E correspondem a múltiplos setores censitários? Eu acredito que não.
Nós temos de evitar generalizações para compreender a especificidade de cada situação local em cada momento específico. Sem esse tipo de conhecimento, sem o diagnóstico mais fino, é impossível avaliar e formular propostas de políticas públicas ou de ações mais específicas. Sem que haja trabalho analítico de avaliação que corresponde a múltiplos censitários, não temos como comparar resultados. Para comparar resultados, temos que levar em conta não só a dimensão física do território, mas sim levar em consideração a população que vive ou circula nele, a partir de definições bastante precisas. Refiro-me a residentes e população flutuante. A população residente é fácil identificar, a flutuante depende de trabalhos um pouco mais complexos e aproximados.
E por que isso é essencial? Porque se temos um determinado número de, por exemplo, homicídios dolosos numa população reduzida, isso tem um significado muito elevado. Pode ter um significado extremamente elevado. Enquanto, numa população extensa, muito ampla, esse mesmo número se dilui. Pode significar avanços da segurança pública, redução de problemas, estabilidade, condições razoáveis, aceitáveis, isso é trivial. Só que nós não podemos chegar a qualquer conclusão se não dispomos da informação a respeito de território e população.
Como então avaliar? É necessário trabalhar com micro dados, circunscrever problemas, territórios, atentos para as especificidades dos locais. E nada disso pode ser feito se não houver áreas integradas de segurança que se elaborem com base nos dados censitários. E a referência é essa e não outra, porque o IBGE trabalha dessa forma, com essas unidades mínimas de significação, que são os setores censitários. Isso é pré-condição para organizar o conhecimento e organizar a ação e, portanto, a gestão e a definição de política. E há uma dimensão prática: nós sabemos que esse modelo policial é irracional, produz todo o tipo de disfuncionalidade. O artigo 144 da Constituição Federal é o nosso grande problema, é o objeto principal da crítica, do nosso questionamento. Ele deve ser alterado. É condição para que haja um avanço. Mas considerando que trabalhamos no dia-a-dia nos marcos legais vigentes, estamos partindo do pressuposto que temos esse modelo policial, então temos de reduzir os danos provenientes do seu desenho irracional.
Redefinição de Políticas Públicas
Só há a possibilidade da cooperação com base em conhecimento e em programação articulada: diagnóstico, planejamento, execução do planejado, avaliação do monitoramento coletivo, para que nós identifiquemos os erros, os transformemos, sejamos capazes de corrigi-los e retomemos o processo. Para que se faça isso de modo conjugado, é necessário que essas polícias disponham de metas comuns e instrumentos de análises comuns, e o pressuposto disso tudo, que não é suficiente, mas necessário, é a área integrada de segurança pública.
A definição de prioridades é também muito importante. Claro que a prioridade é a defesa da vida, é a proteção da vida, o crime mais grave é o crime contra a vida, o homicídio doloso em sua expressão maior. Portanto, programas que visem a antecipação, a prevenção, e, depois, a investigação rigorosa desse conjunto de atividades é indispensável para alcançar resultados mais adequados. Qual é a taxa de esclarecimento de homicídios dolosos no Rio Grande do Sul, em cada município, e se dividirmos os municípios em microrregiões, em cada microrregião, etc.? No Brasil a taxa média é 8% de esclarecimento dos homicídios dolosos. O que é um escândalo. Não sei qual será a taxa do Rio Grande do Sul, espero que seja superior à média nacional, mas certamente é insuficiente. Supondo que nós precisemos aprimorar o trabalho também nesta matéria, o que seria necessário fazer?
Os homicídios dolosos não ocorrem apenas aleatoriamente. É uma faixa que, sobretudo, trata de certo tipo de homicídio, por exemplo, ligado à violência doméstica, ligado a certos tipos de interações sociais, etc. Mas a maioria dos homicídios tende a ocorrer numa certa área da cidade, em certos dias e em certos horários. Em geral, de sexta para sábado, de sábado para domingo. Nas noites. E em regiões específicas. Há uma enorme concentração. Levando em conta dados geoprocessados, ao invés de irmos buscar o cadáver, trabalhando a partir da tragédia já ocorrida, poderíamos evitar outros problemas. Isso se faz com polícia, mas muito mais do que com polícia, com ações de vários setores dos municípios e com a participação da sociedade.
Se tivermos uma área problemática, fisicamente degradada, abandonada pelo poder público e pela comunidade, podemos recuperar essas áreas valorizando-as através de iniciativas entre sociedade e setores governamentais. Podemos investir em cultura, nas festas populares, no esporte, na ocupação urbana, na valorização do espaço. Pensar outro tipo de iluminação, de cenografia, para outra dramaturgia ser ali experimentada. E isso produz resultados notáveis. Não é nada do outro mundo. Não exige grande genialidade, não exige recursos especiais, mas um pouco de coordenação, de inteligência e mobilização da sociedade na integração de esforços.
Isso tudo associado a um trabalho de aprimoramento da investigação. O que acontece normalmente com a Polícia Civil? Ela tem um número imenso de inquéritos a explorar, desenvolver. De inquéritos sobre os crimes mais diversos, eles seguem sobre investigação, até que o Ministério Público acolha o indiciamento ou o resultado do inquérito, apresentando denúncia ao judiciário, ou considere insuficiente a instrução e sugira o arquivamento. Se nós temos um grupo imenso de casos pendentes e sabemos que muitos deles exigirão esforços vãos e não vão gerar resultados, estaremos trabalhando sem prioridades. Podemos dividir os casos a partir de certos critérios de prioridade, de relevância e podemos também dividir os agentes policiais, os operadores, os profissionais, a partir de um recorte temporal, a partir do tempo zero para tratar a fundo e a sério todos os casos.
E para que nós disponhamos de um grupo suficiente de profissionais, vamos atribuir o passado a certo grupo de profissionais, liberando aqueles que buscariam os casos novos. É necessário isentá-los de qualquer responsabilidade em relação aos casos antigos, senão o passado se debruça e cai sobre o presente, esmagando qualquer possibilidade de avanço futuro. E você sempre tem sobre os seus ombros centenas, senão milhares, de casos. É preciso que haja a articulação da perícia e da Brigada Militar, eventualmente com o MP e a Justiça. Isso certamente produz resultados se, por exemplo, dependermos de perícia. Podemos ter unidades móveis de perícia, com atenção necessária. Depende da avaliação, se há grande conservação territorial, é perfeitamente possível que essas equipes dedicadas às unidades móveis estejam já previamente orientadas para se situarem em regiões que serão provavelmente objeto da maior preocupação.
Veja quanta coisa é possível fazer, desde a área integrada de segurança até o tratamento preventivo e investigativo de homicídios dolosos. É preciso que a sociedade participe dessas reflexões, compreenda a complexidade do problema de segurança, entendendo o papel que as polícias, Justiça, MP e defensoria pública podem cumprir, mas entendendo também o seu próprio papel. De que maneira a sociedade pode colaborar?
Aí há uma série de reflexões, de teorias, de experiências que podem ser úteis, mas a participação da sociedade através de fóruns é muito importante, porque, ao contrário, a sociedade apenas cobra e cobra mais polícia, como se isso bastasse, sem compreender o que está em jogo. Quem nós temos prendido? Quais são as pessoas que têm sido presas? De uma maneira geral, as que menos deveriam estar em privação de liberdade é que lá estão, porque não há exatamente a prioridade.
O Brasil tem a quarta população penitenciária do mundo, sendo uma das que mais cresce no mundo, e os que estão sendo encarcerados, em geral, estão ou por crimes contra o patrimônio – não contra a vida -, ou por tráfico de drogas. Esses, em geral, não têm participação em grupos criminosos, em crime organizado, uso de armas e violência. Pelo contrário, os que têm sido presos, em geral, são varejistas, são a ponta do processo, não têm maior responsabilidade, não têm vinculação com o crime organizado, não estavam armados quando presos, não praticaram atos violentos. Mas pela insanidade da nossa lei de drogas, eles acabam encarcerados. Mas por que acontece tudo isso? Há alguma vontade maligna de gestores incompetentes e perversos? Não. Pelo sistema de segurança pública, que chamo de arquitetura nacional de segurança pública, que distribui responsabilidade dentre os entes federados e que inclui certo modelo policial. Qual é o impacto do modelo policial sobre esse desastre? Nós estamos prendendo quem menos necessitaria desse tipo de abordagem, estamos negligenciando os crimes mais graves.
A Polícia Militar, a Brigada, não podem investigar por determinação constitucional. Se ela não pode investigar, mas sofre pressão para produzir resultados, o que faz como instituição? Com mais dinamismo, procura fazer o que pode fazer, o que a constituição manda fazer. E isso significa o quê? Significa apreensão de drogas e armas e, sobretudo, prisões. Mas quais prisões se não pode investigar? As prisões em flagrante. Quais são os crimes passíveis de apreensão deste tipo, de identificação em flagrante? Alguns. Nem sempre os mais importantes. E certamente há algumas leis que são mais utilizadas, mais aplicadas, servem mais a Polícia Militar porque facultam o acesso e a abordagem em flagrante, em particular, a lei de drogas. Então o resultado será esse: a instituição tem que operar, se ela só pode fazer determinada ação, ela vai produzir o que pode, utilizando a lei disponível. E o flagrante vai ser sempre o recorte que vai filtrar a aplicação da lei.
Então, além dos crivos conhecidos, de classe, de cor, fruto das desigualdades brasileiras e do racismo estrutural da sociedade brasileira, nós temos também os filtros que provêm do recorte do código criminal, propiciado pelo modelo policial. É perfeitamente previsível que ocorra o que acontece e não vai deixar de acontecer o que acontece. Por melhores que sejam os gestores. Porque eles têm esses limites. Nós temos instituições, regras de funcionamento que independem da vontade dos gestores. E isso remete a necessidade de rediscutir a lei de drogas, rediscutir o modelo policial e a arquitetura nacional de segurança pública, por exemplo, valorizando os municípios, que na nossa constituição não têm nenhum função na área de segurança pública. Portanto, há bastante a fazer, mas, por outro lado, é preciso que a gente admita que há limites para a gestão pública, em função de restrições profissionais, que devem ser objeto também de debate da sociedade, para que um dia sejam alteradas.
A mídia e o debate sobre Segurança Pública
A Folha de São Paulo chamou atenção na discussão da redução da maioridade penal falando sobre a ausência de dados/estatísticas para qualificar o debate sobre a PEC 171/1993. A imprensa buscou coletar dados sobre crimes cometidos por menores de 18 anos e não conseguiu porque simplesmente não existiam ou, se existiam, haviam sido coletados por meio de metodologias diferentes e, assim, não poderiam ser comparados. Essa é uma dificuldade real que o jornalismo enfrenta diariamente. Não tendo dados, os jornalistas ficam condicionados às fontes policiais e isso afeta a qualidade da cobertura. De que forma, então, a comunicação pode qualificar este debate, levando em consideração todas estas questões?
LS: Usando simplesmente a minha observação, mais ou menos aleatória, a minha experiência, eu diria que o tratamento, em geral, salvo exceções, é da pior qualidade. É claro que esta é uma observação imprecisa, porque uma análise mais aguda sobre o que fala a mídia exigiria o acompanhamento da mídia, distinguindo tipos diversos, e isso exigiria uma grande pesquisa. Lembro de um exemplo, é claro que já está no passado, mas não tão distante, tem 25 anos. Em 1990, aproximadamente, foi a primeira vez que apresentei publicamente o resultado de uma pesquisa sobre violência no Rio de Janeiro, sobre homicídios, investigações, etc. Havia vários órgãos de imprensa representados e as perguntas eram tão chocantes pela falta de informação que as repostas eram quase impossíveis.
Vou dar um exemplo: eu dizia que o número de fatos criminais, de eventos criminais, não poderia ser avaliado em si mesmo, sem que se comparasse com uma medida qualquer, por exemplo, a população, como se faz em todo mundo. Por motivos óbvios, né? Você pode ter o crescimento do número absoluto e o decréscimo do número relativo. Se a população em 10 anos cresceu “x” e o número do evento criminal tal ou qual, subiu menos que “x”, nós temos um decréscimo, ainda que haja quantitativamente. Coisa trivial. E eles não entendiam. E diziam que aquilo era um absurdo, a negação da evidência, do óbvio, era um mascaramento. E nós estávamos (eu e minha equipe) completamente perplexos, porque poderíamos imaginar quaisquer dúvidas quanto aos nossos resultados, mas não esses.
Comecei a verificar que havia um despreparo tamanho, que a natureza da pesquisa realizada por nós sobre violência não era compreendida pela mídia. Eu comparava essa realidade chocante (e eu estava falando com quase todos os órgãos de imprensa do Rio de Janeiro) com o que acontecia na Economia, que é uma área valorizada pelos meios de imprensa, em que os profissionais eram qualificados, treinados, muito deles estudavam Economia ou eram economistas também, a tal ponto que não se concebia que um repórter perguntasse a um ministro da Fazenda o que é inflação, o que é o PIB. Isso não faria nenhum sentido. Isso seria a desmoralização completa do profissional e dos órgãos de mídia. E isso não acontecia na nossa área. Só para dar um exemplo: os profissionais que trabalhavam nesta área não sabiam, por exemplo, que no Rio de Janeiro, para a classificação de homicídios, dispúnhamos das categorias homicídio doloso e culposo, mortes suspeitas, encontro de cadáveres e ossadas, e afogamentos. E isso significava que haviam gavetas classificatórias para as quais poderiam ser deslocados os casos quando isto interessasse ao poder público, se lhe conviesse manipular informações. O repórter minimamente informado buscaria informações sobre todas essas categorias. E faria uma análise levando em conta este conjunto. Sem a busca pela informação as manipulações são muito mais fáceis.
Segurança Pública em dados e pesquisas
A própria ideia do funcionamento das instituições, os limites dos gestores, os limites da polícia, nada disso era levado em consideração pela polícia e pela mídia há algum tempo atrás. Isso é um ponto. Segundo ponto: não havia consternação pública quando se oferecia a informação de que a Polícia Civil não sabia qual era a taxa de esclarecimento relativa aos crimes mais graves – nem vamos falar da criminalidade em geral. Polícia Civil, final dos anos 1980, no Rio de Janeiro, não tinha noção de qual era a taxa. Pior: nunca se questionaram sobre isso e não se mostrava perplexidade diante da resposta. Falta de informação era vista como natural. Como se fosse possível gerir aquela instituição sem essas informações. E isso ainda na virada dos anos 1990.
A primeira pesquisa realizada no Brasil, que eu saiba, sobre taxas de esclarecimento de homicídio doloso, foi feita por mim e pela minha equipe, numa instituição no Rio de Janeiro chamada ISER – Instituto Superior de Estudos da Religião -, que apesar do nome mais restrito, acolheu e estimulou pesquisas em outras áreas, além da religião. Coordenei um grupo de pesquisa sobre violência e criminalidade ao longo dos anos 1980. No início dos anos 1990, realizamos o primeiro levantamento sobre investigação no município do Rio de Janeiro. Publicamos o resultado em 1994, com base nas ocorrências de 1992. Chegamos à conclusão de que apenas 7,8% dos casos de homicídio doloso haviam sido investigados. Não necessariamente solucionados, mas investigados. E os casos sob investigação haviam sido acolhidos pelo Ministério Público, considerados dotados de suficiente informação.
Vejam o que isso significa: nós estamos falando de 1992/1994, e aquela havia sido a primeira pesquisa. A Polícia brasileira nunca fizera, ela própria, uma pesquisa, e não dispunha de mecanismos, de meios de rotina, de pessoal para fazê-lo. Era preciso que alguém fizesse, que a universidade fizesse esse esforço e, portanto, eu apresentei os resultados, que eram aberrantes, dizendo que era tão surpreendente o resultado quanto o fato de que eles viessem a público pela primeira vez naquela oportunidade. E mais: que viessem por força da contribuição de uma universidade, de um instituto de pesquisa e não da própria Polícia. E mais: que um chefe de polícia pudesse continuar convivendo com suas funções e responsabilidades sem ter acesso cotidianamente, regularmente a essas avaliações, essas análises.
Isso teria que ser feito de tempos em tempos por uma instituição, isso tinha que ser o cotidiano. E o que está por trás disso? Certa cultura da gestão ou da não gestão, que naturaliza esse absurdo completo, essa aberração. E, por outro lado, a ausência de mecanismos geradores de dados e informações, de forma a organizá-los, segundo métodos definidos, com categorias adequadas, com formas de processamento eficientes, com pessoal treinado e com rotinas que permitissem a produção, a coleta, a organização, a difusão, a análise e a transmissão [desses dados] para os gestores, para as tomadas de decisão. Ou seja, há toda uma institucionalidade (pessoal, mecanismos, organização), que não existia. Isso não é uma instituição, é um pedaço do funcionalismo público, que trabalha burocraticamente das 9h às 17h (de 8h as 18h, o que seja) ou em plantões, recepcionando público, cumprindo algumas atividades, mas sem norte, sem orientação, sem prioridades, sem uma política específica e sem a articulação com as informações e conhecimento. Isso é inacreditável.
É claro que nós vamos ter o desastre completo na área policial. Independentemente da qualidade dos profissionais. A segurança ou a insegurança não dependem apenas das polícias, é claro. Há toda a dimensão social, cultural, econômica etc. E há toda uma área de políticas públicas preventivas que não são policiais. Mas essas áreas também não eram objeto de estudos, de investimentos, etc. É claro que havia colegas que estudavam há mais tempo que eu, evidentemente, a questão da violência na sociedade. Mas falo sobre a tradução do conhecimento em política pública, na sua articulação com as instituições policiais. Isso não havia, em função destas deficiências das instituições policiais e dos seus líderes, em função da cultura própria destas instituições, que não previa nada disto. A polícia considerava a aproximação dos universitários um acinte, uma ameaça, um risco. Se isso acontecia na Polícia Civil, você pode imaginar o que acontecia na Polícia Militar, porque a Polícia Militar não se esperava dela investigação, ela não poderia investigar e, portanto, o seu trabalho era aquele cotidiano, de rotina, de patrulhamento etc. Não se supunha que ela devesse estar submetida a avaliações quanto a sua efetividade. Ela também funcionava como uma burocracia, uma burocracia militarizada.
Outro exemplo para vermos como há certa correspondência entre a falta de informação dos que trabalham na mídia com a falta de informação das próprias polícias. Quando eu cheguei ao governo, em 1999, nós, os gestores da segurança pública, recebíamos informações sobre criminalidade em média três meses depois dos fatos ocorridos, com dados agregados em três grandes categorias: capital, baixada e interior. Nós estamos falando de três grandes unidades que não servem de absolutamente nada do ponto de vista da gestão ou para análise, absolutamente para nada. Só serve para uma notícia superficial de jornal dizendo “diminuiu”, “subiu”, “desceu”.
No caso do problema da violência doméstica, da violência contra a mulher, foi aprimorada a qualidade da informação, e fez os números crescerem. As pessoas passaram a denunciar, as mulheres passaram a denunciar muito mais e isso não significa o crescimento do problema, mas o conhecimento maior sobre o problema e a melhora da política pública. E assim também em outras áreas, como a denúncia de violência policial: se há uma ouvidoria crível, se há respeito e confiança na instituição, isso pode proporcionar mais informações. Portanto, esses grandes agregados apenas de informações não podem ser base para nenhum diagnóstico, muito menos para uma gestão. Três meses depois do acontecido recebíamos tabelas com três grandes agregações e os profissionais que se dedicavam a tal tarefa faziam isso a lápis, somando o que vinha do interior, da baixada e da capital num grande esforço. Eram verdadeiros heróis do serviço público e às vezes se enganavam, porque por mais que atentassem para as linhas, às vezes trocavam de linha, colocavam dado por dado. Era um trabalho manual, precaríssimo e sem nenhuma agilidade, sem nenhuma serventia.
A criação do Instituto de Segurança Pública, uma das iniciativas da minha gestão como subsecretário, e que existe até hoje, envolvia compromisso público de divulgação de todas as informações com regularidade no mínimo mensal. Previa estudos e pesquisas e colaboração com universidades, e a ideia do instituto era que ele tivesse alguma autonomia em relação às polícias. E o instituto não poderia ser o único canal para a gestão. A gestão teria que ter em tempo real, na mesa do operador, do gestor superior, as informações todas disponíveis, já classificadas. E para isso seria necessário a informatização do sistema. E você sabe que as ameaças de morte mais eloquentes, talvez mais graves que eu tenha recebido, de tantas e tantas, vieram desta área de atividade, de projetos como a Delegacia Legal, que eram projetos que não ofenderiam o interesse de ninguém, melhorariam as condições de trabalho dos policiais, o funcionamento do serviço público?
Qual a razão pela qual a informatização, a reorganização das delegacias, até seu aprimoramento arquitetônico, o fim das celas em delegacias etc., de que maneira isso poderia gerar tanto ódio, tanta revolta? E eu rapidamente compreendi. Claro, eu já pressupunha isso, mas foi incrível a rapidez com que isso se comprovou: a melhor condição, a mais desejada para os corruptos, é o caos, a inexistência de instituição na prática. Cada um levava sua informação para casa, negociava o BO, rasgava, refazia, e as delegacias funcionavam como ilhas isoladas. Eu chamava de baronatos feudais, nem sempre comandados por delegado. Muitas vezes eram inspetores que controlavam os próprios delegados, eles funcionavam como bandos, muitos deles criminosos. Não havia uma instituição, havia nichos institucionais disputando entre si. Quando um delegado saía da delegacia levava sua pasta de informações. Eles sabiam muito sobre criminalidade e a instituição não sabia nada. Há inexistência de instituição, de fato, e, por isso não é de surpreender que a sociedade saiba pouco, a imprensa saiba pouco, e que as policias saibam pouco enquanto instituições.
Isso não foi alvo de preocupação, porque não havia a cultura também da gestão pública, porque essa não era uma área entendida como serviço prestado à comunidade. Isso é típico de uma mentalidade ditatorial, autoritária, e, portanto, fácil de compreender. A pergunta que interessa é: o que disso tudo continua presente, mesmo que mitigado, mesmo que numa escala inferior, mesmo que combinado com a cultura mais moderna, mais democrática? Portanto, se queremos mudar a situação em qualquer Estado, por exemplo, o Rio Grande do Sul, o primeiro passo é, sem querer inventar a roda, levantar o que nós temos em termos de virtude e de deficiência. Não se trata de acusar e de perseguir ninguém. As deficiências, em geral, não têm a ver com incompetência dos profissionais, mas com as próprias estruturas institucionais e seu funcionamento.
No Brasil, via de regra, o que acontece é isto: uma naturalização das instituições como se elas fossem parte mesmo da paisagem, como se elas não tivessem sido criadas historicamente e não pudessem ser reinventadas, refundadas, transformadas.
Mais um ponto para finalizar: A mídia costuma ser pautada pela imediaticidade. Então, as questões tendem a ser simplistas. Ocorre uma tragédia em qualquer parte do país, por exemplo, e os jornalistas buscam lá nas suas agendas os tais especialistas. Telefonam para os especialistas. Quem puder atender na hora, responde, porque a matéria é sempre assim. E os especialistas dizem isto e aquilo e nós, os pesquisadores, que trabalhamos na área, somos aspas. Essas aspas às vezes esclarecem, ajudam a abrir uma brecha interpretativa, uma janela, mas, além disso, e mais do que isso, servem para legitimar a reportagem, mostrar que se ouve todo mundo e que há qualidade técnica levada em conta na escuta de tais especialistas. É uma metodologia de construção paupérrima, porque, se cada especialista fala dez minutos, por exemplo, o repórter ou a repórter escolherá uma frase descontextualizada, necessariamente, porque tem pouco espaço, e ouvirá outros e escolherá suas frases. Em geral, as frases mais contundentes, as que podem gerar polêmica, e não as mais profundas ou reveladoras, são majoritariamente usadas.
Na área da segurança pública não há nenhum espaço, salvos a raras exceções, para que matérias jornalísticas de fôlego e profundidade comecem a preparar a opinião pública para os verdadeiros impasses, para as verdadeiras questões. Isso existe, mas é muito raro, e, portanto, nós nunca conseguimos qualificar a opinião pública em relação aos debates da segurança.
Estamos errando o foco sobre segurança pública? Uma conversa com Luiz Eduardo Soares, pelo viés de Anelise Dias*
*Anelise é jornalista e mestranda em Comunicação na UFRGS.