Guerra obscurantista contra Caetano Veloso deve envergonhar o país
Publicado no site Justificando em , 28 de outubro de 2017
Os cavaleiros da cruzada em curso na internet não têm limites. Sua guerra covarde e obscurantista contra Caetano Veloso deve envergonhar o país. É inaceitável naturalizar o que está acontecendo. Caetano somos todos os que amamos a liberdade. O que mais vamos esperar para agir? Convido os leitores a refletir sobre o que está em jogo.
O Tropicalismo faz 50 anos e seus efeitos não cessaram. A despeito da sombra que caiu sobre o país, o Brasil é hoje, em parte graças à força tectônica daquela ousadia radical, menos provinciano e racista do que era há meio século, menos preconceituoso e mais livre para amar canções, pessoas e poemas. A sociedade brasileira está hoje mais madura, crítica e aberta para amar-se a si mesma, sem auto-indulgência, na diversidade que a constitui, apesar da avalanche regressiva, da conjuntura conflagrada e do ódio que envenena as relações.
Ao longo dessas décadas, Caetano e Gil alcançaram um patamar raríssimo de consagração e reconhecimento, da altura de seus méritos e talentos. Já foram ídolos pop. Hoje, sem perder o carisma, são protagonistas centrais das culturas brasileiras. Esse lugar independe de opiniões eventuais e do gosto idiossincrático, é parte da história. Quando contemplamos nosso pedaço de continente devastado pela crise, não cedemos às tentações do ceticismo e do isolamento imobilista porque, à nossa volta, não há só ruínas. Há trajetórias e realizações que nos comovem e encantam. São motivo de orgulho e confiança no gênio humano, essa potência criadora que aqui fala português.
Pode soar estranho tratar Caetano e Gil como figuras canônicas, eles que comeram, nas margens, o pão que o diabo amassou, caminhando contra o vento, na contramão, escolhendo as veredas mais difíceis e arriscadas, quando acomodar-se teria sido o óbvio. Mas é aí que se situa um de nossos maiores desafios. As grandes obras e personagens, nossas referências culturais, não habitam altares, palco dos rapapés típicos da sociedade estamental, hierárquica e autoritária. As referências compatíveis com um cânone inspirador não são cátedras que enaltecem e domesticam, exaltam ao preço da vitalidade transgressora. As referências canônicas fiéis ao espírito libertário do tropicalismo são os herois-poetas refratários à reverência. São as suas obras, que incendiaram e continuam a incendiar a imaginação de gerações, obras e trajetórias que devolveram grandeza ao sonho feliz de cidade, e país -menos desigual e imensamente criativo.
Se cabe o depoimento, tomo a liberdade de declarar que não consigo conceber o que eu seria, o que seriam meus amigos, que cabeça nós teríamos, não houvesse o cânon torto, gauche, laico e luminoso, que, em plena tormenta, no breu do planalto central do país, aponta nosso nariz pro futuro.
É natural que sociedades se deixem inflamar pela fissura de violar o sagrado e derrubar os ídolos. As revoluções queimam seus líderes. Os filhos processam a angústia da influência destituindo seus pais e mestres do lugar de autoridade e dos títulos de majestade, quando não ultrajando, ritualmente, sua memória. Mas essa intensa mobilização de paixões só tem sentido saudável e construtivo quando se passa no plano simbólico da criação estética, turbinando a invenção, canibalizando poeticamente as referências para desvendar ou aduzir novas significações e experiências ao repertório comum. Em uma palavra: a única crítica não retórica e fértil é fazer diferente e melhor.
Não é o que está em curso no Brasil. Não se trata de crítica ou reinvenção. O que corre nas redes sociais é sangue. Um dos maiores brasileiros (alguém, em sã consciência, duvidaria disso?), Caetano sofre linchamento diário: insultos, insultos pessoais, insultos brutais e ameaçadores. Por que? Ele defendeu a liberdade das artes? Não creio. O verdadeiro motivo é o seguinte: ele cumpre papel chave nas culturas brasileiras. O ódio que faz verter sangue é, sobretudo, repulsa visceral às culturas.
Há nisso uma questão decisiva para todos nós: o casamento perverso do moralismo com a política deprecia a moral e degrada a política. O ataque insano à referência cultural canônica não se reduz ao campo estritamente pessoal –o que já bastaria para exigir nosso repúdio. O alvo é a história cultural do Brasil, como hoje a narramos (narrativa que é chave, porque produz auto-imagens, viabilizando auto-reflexão). O alvo é nossa memória comum, ancorada nas referências estéticas que a constróem e sintetizam. O alvo dos ataques inomináveis é a auto-reflexão, aquilo que dá sentido à palavra consciência. É a arte, essa combinação explosiva de amor e rebeldia. Não por acaso, o núcleo das agressões é o amor e a rebeldia, o amor de Caetano e Paula Lavigne, aquém e além de manuais e gramáticas, cuja longa história testemunha e consagra sua própria legitimidade. Os ataques são misóginos porque negam a Paula o lugar de sujeito. E são bestiais, porque não miram o erro, mas a virtude. É hora de nos mobilizarmos, todos os que amamos a liberdade.
Luiz Eduardo Soares é antropólogo, escritor, dramaturgo e professor de filosofia política da UERJ. Foi secretário nacional de segurança pública. Seu livro mais recente é “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte” (Companhia das Letras, 2015).