Luiz Eduardo Soares defende uma nova estrutura para Segurança Pública
Nos últimos anos, a melhoria na segurança pública brasileira tem sido um dos principais desafios de todas as esferas governamentais. Somente em 2014, 58.559 brasileiros foram mortos de forma violenta, um aumento de 4,8% em relação a 2013, segundo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O aumento da criminalidade, sensação de insegurança, superpopulação carcerária,ineficiência das investigações e a morosidade da justiça colocam em xeque a atual estrutura, exigindo mudanças, inclusive na área policial.
Pesquisa realizada em 2009 pelo doutor em Ciência Política e Ex-secretário Nacional de Segurança, Luiz Eduardo Soares, mostra que 70% dos profissionais de segurança pública no Brasil (quase 800 mil, incluindo todos os segmentos policiais e agentes penitenciários) são contrários ao atual modelo de polícia brasileira.
Luiz Eduardo Soares é professor da UERJ e coordenador do curso à distância de gestão e políticas em segurança pública, pela Universidade Estácio de Sá, também responsável pela nova plataforma “mudamos.org”, que abre espaço para esse debate, A participação da sociedade civil e profissionais da área permitirá um documento que será levado a deputados e senadores.
Defensor da Proposta de Emenda Constitucional- PEC 51, que reestrutura o modelo atual de polícia, Luiz Eduardo Soares acredita que no Brasil foram pouquíssimos e insuficientes os avanços neste setor.“Neste período ficou evidente que o país não pode mais conviver com a arquitetura institucional e o modelo policial determinado pelo artigo 144 da Constituição. Por isso, ajudei a elaborar e defendo a PEC 51, apresentada pelo senador Lindbergh Farias, em 2013”, comenta. “O que, hoje, no Brasil, podemos dizer que funciona e conquistou respeito, confiança, apreço na área de segurança?”, questiona.
Em sua opinião, apesar da Polícia Federal ser um exemplo, e a única de ciclo completo, ainda passa por tensões e desfuncionalidades, pois não adotou ainda a carreira única. “Espero que esses entraves ao aprimoramento institucional venham a ser corrigidos e superados”.
Entrevista completa com Luiz Eduardo Soares
PORTAL/SP: Há quantos anos o senhor tem se dedicado a propor e tentar transformações na estrutura da segurança pública brasileira?
Luiz Eduardo Soares: São tantos anos que nem sei dizer quando começou meu envolvimento com o tema e com a militância por melhoras nessa área. Acho que foi em 1988, ainda que antes eu já tivesse um interesse mais acadêmico e teórico. Entretanto, foi em 1993, ano funesto na história do Rio de Janeiro, em particular em nossa área (houve as chacinas da Candelária e pouco depois, de Vigário Geral), que divulguei publicamente minhas visões e sugestões de forma mais prática. Publiquei meu primeiro livro exclusivamente sobre o tema em 1996. Em 1999, aceitei o desafio de ser subsecretário de segurança do estado do Rio e depois coordenador de segurança, justiça e cidadania. Foram 500 dias no front da segurança pública que me renderam o auto-exílio, a partir de fins de março de 2000, e um livro bastante conhecido, no qual relato o dia a dia dessa experiência, o cotidiano dos bastidores: “Meu Casaco de General”, publicado pela Companhia das Letras em dezembro de 2000. No livro conto, por exemplo, como criamos as Delegacias Legais, as Áreas Integradas de Segurança, os Mutirões pela Paz (antecessor das UPPs), a Ouvidoria, o Instituto de Segurança Pública, que produz e divulga dados, os Centros de Referência contra a homofobia, o racismo, contra a violência contra as mulheres, em defesa do meio ambiente, das crianças e adolescentes e dos idosos. Em março de 2001 voltei ao Brasil, mas não ao Rio. Fui para Porto Alegre, onde trabalhei com o então prefeito Tarso Genro. O propósito era provar a efetividade de políticas preventivas. Tivemos sucesso: zeramos os homicídios no bairro então mais pobre e violento da cidade, a Restinga. Voltei ao Rio em 2002 como candidato a vice- governador pelo PT, trazendo propostas para a segurança e as polícias, além de políticas preventivas. Não fui eleito, mas Lula me nomeou Secretário Nacional de Segurança. Cumpri a missão enquanto deixaram. Negociei com os 27 governadores um pacto pela reforma das polícias e pela mudança mais ampla de toda a arquitetura institucional da segurança pública. O documento seria endossado pelo presidente e encaminhado ao Congresso, visando a alteração do artigo 144 da Constituição. Infelizmente, fui expelido do governo federal e o acordo foi engavetado. De dezembro de 2006 e julho de 2009, fui secretário municipal em Nova Iguaçu e criamos o GGI-Municipal (por analogia aos Gabinetes de Gestão Integrada da Segurança Pública que criei nos estados, quando fui Secretário Nacional). Logramos reduzir em 10% os homicídios dolosos e a violência policial. Aliás, em 1999, sem aumentar outros indicadores, reduzimos em 35% a violência policial letal no estado do Rio. Depois de 2009, tenho tentado outros caminhos para contribuir para as urgentes e sempre postergadas reformas institucionais, seja escrevendo, seja dialogando com policiais, com o MP, com forças políticas, movimentos sociais e formadores de opinião. Finalmente, em 2013, o senador Lindbergh Farias apresentou a PEC-51, que ajudei a elaborar. Desde então, tenho me dedicado a divulgá-la e defendê-la, o que agora está sendo realizado por meio da plataforma <mudamos.org>. Todos estão convidados a participar.
PORTAL SP- Quais os principais avanços alcançados ao longo desse período?
Luiz Eduardo Soares: Os avanços foram pouquíssimos e absolutamente insuficientes, até porque, o que avançou, o fez na contramão da moldura constitucional, pois esta não valoriza integração, cooperação, interconexão, transparência, “accountability”, etc… Nesses anos, ficou patente que progressos incrementais não produzirão o necessário salto de qualidade. Nesse período, ficou evidente que o país não pode mais conviver com a arquitetura institucional e o modelo policial determinados pelo artigo 144 da Constituição. Por isso, ajudei a elaborar e defendo a PEC-51, apresentada pelo sendador Lindbergh Farias, em 2013. O que, hoje, no Brasil, pode-se dizer que funciona e conquistou respeito, confiança, apreço, na área da segurança? A polícia federal, que tem se tornado exemplo. Entretanto, mesmo sendo nossa única polícia de ciclo completo, ela ainda está atravessada por tensões e desfuncionalidades porque não adotou ainda a carreira única, isto é, o ingresso único na carreira. Espero que esses entraves ao aprimoramento institucional venham a ser corrigidos e superados.
PORTALSP- Quais os maiores obstáculos para que as mudanças estruturais da segurança pública aconteçam?
Luiz Eduardo Soares: Vejamos primeiro o que pesa a favor: (A)segundo pesquisa que realizei com Marcos Rolim e Silvia Ramos, em 2009, e que foi replicada posteriormente, com praticamente os mesmos resultados, por Renato Lima, mais de 70% dos profissionais da segurança pública no Brasil (eles e elas são quase 800 mil, incluindo todas os policiais, guardas municipais e agentes penitenciários) são contrários ao atual modelo policial. (B) A realidade da insegurança pública brasileira é dramática, insustentável: 56 mil homicídios dolosos por ano, apenas 8% dos quais são investigados, e a maior taxa de crescimento da população penitenciária do mundo –em 2014, havia 640 mil presos: 40% em prisão, provisória, 12% cumprindo pena por homicídio dolosos, mais de dois terços cumprindo sentença por crimes contra o patrimônio e, cada vez mais, por envolvimento em delitos ligados ao comércio de substâncias ilícitas, as “drogas”. Como se vê, somos campeões da impunidade relativamente aos crimes contra a vida, os mais graves, e campeões de encarceramento sobretudo das transgressões vinculadas à nossa irracional e hipócrita lei de drogas. Não é de se espantar, portanto, que o bias racista e classista prevaleça: a maioria dos presos é jovem, pobre, de baixa escolaridade e negra. Fácil compreender: a polícia que está nas ruas dia e noite e é mais numerosa, a PM, é proibida de investigar, isto é, só pode prender em flagrante (salvo no cumprimento de mandado, a partir de iniciaitva da polícia civil). Em outras palavras, como a grande parte das prisões dá-se em flagrante, pelos motivos assinalados, os crimes que estão no foco de ação da instituição que realiza essas prisões são aqueles passíveis de prisão em flagrante. Há um crivo seletivo que seleciona a ação policial e, por consequência, seleciona os perpetradores. Não é a hierarquia de prioridades estabelecida pelo bom senso, pela Constituição, pelo apreço fundamental à vida, ou pelo diagnóstico criminológico, que escolhe alvos e focos. É o crivo derivado do flagrante como condição para a ação repressiva. Uma polícia está nas ruas e é proibida de investigar. Repita esta frase para a população e ouça a reação. Quem não identificaria aí o nervo de nosso problema? Pois esta proibição decorre do modelo policial, caracterizado pela divisão do ciclo de trabalho policial: as tarefas ostensivo- preventivaspara um lado; as tarefas investigativas, para outro.
Além disso, registre-se que, no desenho do artigo 144, a União responsabiliza-se muito pouco pela segurança, salvo por suas duas polícias federais e em situações extremas, o município é negligenciado, e todo o peso recai sobre os ombros dos executivos estaduais. Este ordenamento institucional contraria o caminho que vem sendo seguido pelo Brasil desde 1988, e que aponta para a valorização dos municípios e do compartilhamento de responsabilidades, na educação, na saúde, na ação social.
Ora, se o resultado é péssimo, se ninguém está satisfeito, se os profissionais recusam e a sociedade critica, por que ainda se mantém o artigo 144, que representa, de fato, um legado da ditadura inscrito em nossa Constituição democrática? Aqui retomo o fio da meada e enfrento, diretamente, a pergunta. Eis a resposta: há, no Brasil, hoje, a resistência de minorias corporativistas, no interior das instituições policiais, que são muito ativas, politicamente, e se articulam com forças conservadoras no Congresso nacional –forças que estão em todos os partidos, mesmo em alguns de esquerda. Há uma vasta ignorância sobre a matéria na mídia e na opinião pública, assim como nas entidades da sociedade civil e nos movimentos sociais. E há uma dificuldade enorme de nossa parte –refiro-me aos defensores das mudanças—em agir com a mesma competência daqueles que reagem às transformações, os quais podem, portanto, ser chamados “reacionários”, no sentido preciso e descritivo da palavra. Estes últimos contam, além de sua competência política e capacidade de organização, com duas vantagens, que tornam a luta desigual: ocupam posições de mando nas instituições e têm, a seu favor, o extraordinário peso da inércia histórica, das rotinas, das dinâmicas reprodutivas. Incluo na inércia não só as rotinas como as crenças e percepções inscritas na consciência dos indivíduos, que se habituam e naturalizam o que conhecem, o que experimentam, por mais negativo que seja.
Há também duas armadilhas que dificultam o esforço mudancista: a confusão entre direitos humanos e efetividade policial e o limite imposto pela militarização ao avanço para o ciclo completo, no caso de nossas polícias ostensivas, isto é, as PMs. Explico: os que defendemos a PEC-51 sabemos que, se houver transformações na direção que propomos, as polícias serão muito mais efetivas no enfrentamento do crime e da corrupção interna. Sabemos também que estarão muito mais preparadas para respeitar os direitos humanos, uma vez que serão melhor formadas, se organizarão de um modo mais suscetível a valorizar e respeitar seus profissionais, e a submeterem-se a controle externo. Estarão mais próximas da possibilidade de oferecer serviços de qualidade, e de entender sua função como prestação de serviço de utilidade pública, a segurança, que implica a garantia de direitos –e nada tem a ver com guerra. Se as praças são submetidas a regimentos disciplinares inconstitucionais e sentem que seus direitos são constantemente violados, como poderiam respeitar direitos alheios? Se há um abismo entre delegados e agentes, como se fossem duas castas, como esperar que haja coesão interna?
Muito bem, as mudanças, acredito, trariam mais efetividade contra o crime e mais respeito aos direitos humanos. Contudo, na divulgação das propostas e nos dicursos mudancistas, a ênfase tende a recair, unilateralmente, na questão dos direitos humanos, deixando de lado o tema que poderia tornar a ideia de mudança mais popular, mais atraente à sociedade, a qual, por ignorância e adesão a valores ainda afetos à barbárie, não raro associa direitos humanos a cumplicidade com o crime ou a ineficiência no enfrentamento do crime. Uma lástima, esta associação, pois a experiência mundial já demonstrou que não há segurança pública sem respeito aos direitos humanos, nem este sem aquela.
A segunda armadilha é o fato de que não seria aceitável que as PMs passassem a exercer o ciclo completo, ou seja, passassem a investigar, mantendo-se militares, regidas por Justiça militar, submetidas a seus regimentos disciplinares. Em outras palavras, a sociedade, seus segmentos mais lúcidos, não aceitaria conceder a uma instituição militar uma função que faz parte da corrente da Justiça criminal, de natureza eminentemente civil. Nesse sentido, não faz nenhum sentido lutar pelo ciclo completo de todas as polícias a menos que as militares se desmilitarizassem. O problema é que, se a imensa maioria mesmo dos oficiais das PMs já compreendeu e defende abertamente o ciclo completo, ainda está longe de ter entendido a inviabilidade de seu pleito, enquanto não incluirem em seu projeto de mudança a desmilitarização. Os adversários das mudanças sabem disso muito bem e jogam a isca para os policiais militares morderem: abrem espaço para que lutem pelo ciclo completo, porque sabem que isso não poderá ocorrer, a menos que sobrevenha a desmilitarização. E os adversários crêem que os militares jamais admitirão a desmilitarização. Os reacionários têm se mostrado mais argutos do que os mudancistas parciais, aqueles que querem só parte das mudanças, issto é, desejam apenas o ciclo completo. Falta aos mudancistas parciais a percepção de que a desmilitarização não é uma bandeira ideológica ou radical, mas a pré-condição para a realização do ciclo completo –assim como de outros avanços. Por isso, a PEC- 51 é a consequência lógica. Não à tôna a PEC-51 propõe a carreira única: esta é uma condição natural para a reestruturação. Não teria cabimento desmilitarizar e conceder o ciclo completo a todas as instituições policiais sem tornar seu interior compatível com a racionalidade que in infundiria no sistema, em seu conjunto.
Haveria dois modos de promover a desmilitarização: a unificação das polícias estaduais, que, unidas, formariam uma polícia integrada de natureza civil; e a criação de várias polícias, todas elas civis e de ciclo completo. Neste caso, elas seriam criadas (ou as atuais reformadas visando a adaptação a longo prazo ao novo modelo) segundo circunscrições territoriais ou por tipos criminais.
Enfim, há um longo caminho pela frente. Não sei quando daremos o passo rumo ao ciclo completo, à desmilitarização e à carreira única no interior de cada instituição policial, mas tenho a convicção de que essas transformações virão, mais cedo ou mais tarde, como um imperativo da razão e do cumprimento da função histórica dos agentes da segurança pública no estado democrático de direito. Até porque só assim a Constituição saltará da forma, da letra da lei, para a substância, para as práticas diárias, em benefício dos policiais e da sociedade. Talvez isso somente se dê quando a própria sociedade superar o racismo e as desigualdades abissais, e deixar de autorizar a brutalidade feroz, a barbárie, seja aquela cometida por atores sociais criminosos, seja aquela perpetrada pelo próprio Estado, nas cotidianas execuções extra-judiciais.
PORTALSP- Por que grande parte do programa do PT para a segurança pública não tem sido implantado, mesmo depois de mais de 12 anos de governo?
Luiz Eduardo Soares: Porque deixou de sê-lo. O programa, de cuja elaboração, ao longo de 2001, fui um dos coordenadores e comecei a implantar em 2003, como secretário nacional de segurança pública, foi abandonado quando saí do governo e substituído por operações da polícia federal. Por mais importantes que fossem (e elas eram excessivamente midiáticas, a ponto de serem acompanhadas por repórter convidado), claro que não poderiam substituir um programa nacional, envolvendo desde reformas institucionais a políticas preventivas conjugadas. Em 2007, desde a posse de Tarso Genro no ministério da Justiça, parte do programa original seria retomado, no âmbito do Pronasci. Contudo, permaneceu abandonada a parte decisiva do programa original, com o qual o presidente Lula se elegeu pela primeira vez, em outubro de 2002. Refiro-me ao projeto de reformas a ser negociado entre as forças políticas e com a sociedade e as instituições da segurança, e enviado ao Congresso, por meio de uma sugestão de PEC relativa ao artigo 144 da Constituição. A pergunta a fazer é: por que o programa, apresentado ao país em 2002, durante a campanha presidencial, viria a ser engavetado? Enquanto secretário nacional, entre janeiro e maio de 2003, negociei com os 27 governadores e obtive seu apoio à nossa proposta de criação do SUSP (Sistema único de segurança pública) e de apresentação ao Congresso de proposta de emenda constitucional. Cumpri meu dever, que era colocar em prática o programa, para o qual, insisto, contribuíram profissionais da área e ativista de todo o país, ao longo de 2001. Consegui persuadir todos os governadores em menos de cinco meses, visitando-os diversas vezes, conversando com os secretários, autoridades policiais, etc. Todos endossaram nossa proposta. O passo seguinte, segundo a previsão programática, caberia ao presidente, que convidaria os governadores para celebrarem, no Palácio do Planalto, na presença dos presidentes das Casas Legislativas, de representantes do Judiciário e do MP, e de lideranças da sociedade civil, o que chamávamos “Pacto pela Paz”. A ideia era promover a grande concertação nacional pela reforma estrutural da segurança pública, libertando o país do legado da ditadura, incrustrado no artigo 144 da Constituição. Esse movimento corresponderia à extensão da transição democrática, finalmente, ao campo da segurança. Tudo isso poderia ser frustrado pelo Congresso, porque lhe cabe a última palavra, é claro. Mas tínhamos esperança de que, o governo em seu primeiro ano, muito forte, o apoio de todos os governadores, toda essa pressão democrática conduzisse a, pelo menos, alguns avanços. O presidente marcou uma primeira data, logo depois adiada. Marcou uma segunda e a suspendeu. Nossa tensão subiu. Temores e paranoias nos inquietaram. Finalmente, fui ejetado por um dossiê apócrifo, me denunciando por nepotismo, que veio de dentro do próprio ministério da Justiça, com aval político da Casa civil. Duas semanas depois de minha saída, o Conselho de ética do governo reconheceu minha inocência. Deixei o PT naquela oportunidade, quando entendi como funcionava o partido e o governo. Percebi que não seria apenas o programa de segurança que seria sacrificado e que não havia o menor respeito pelos indivíduos, se eles se tornassem um obstáculo para que os fins fossem alcançados. E os fins pareciam ser apenas a manutenção do poder –e sabe-se lá o que mais. Por que o governo federal desistiu das reformas e do Pacto pela Paz, apesar de meu trabalho ter tido sucesso na criação das condições para a concertação? Porque a celebração do Pacto envolveria o presidente diretamente na segurança pública, incluiria a política de segurança na agenda presidencial e tornaria Lula vulnerável a críticas e cobranças por parte da sociedade, por mais que ele explicasse que o processo seria de longo prazo e por mais que buscasse provar que não se transformara no grande responsável pela matéria. Dona Maria, na avenida Paulista, no dia seguinte à celebração do Pacto pela Paz no Planalto, diria: “Presidente, vi o senhor ontem no jornal nacional dizendo uma porção de coisas bonitas sobre a segurança, mas meu filho foi assaltado, hoje, bem aqui na avenida Paulista. O que o senhor vai fazer sobre isso?” Era mais conveniente para o governo federal deixar o desgaste político produzido pela insegurança bem longe. Era melhor para o presidente deixar a bomba no colo dos governadores. O triste nisso tudo é constatar que, na campanha, nós dizíamos que os presidentes sempre lavaram as mãos, e que Lula seria o primeiro a chamar a si a responsabilidade, porque só ele, em nome do interesse público, teria a coragem política necessária para pagar o preço do desgaste. Estávamos convictos disso e, involuntariamente, vendemos ilusão para a sociedade. Fomos cúmplices da mentira.
PORTALSP – Como vê a gestão do atual Ministro da Justiça José Eduardo Martins Cardoso?
Luiz Eduardo Soares: Tenho o ministro na conta de um cidadão honesto, honrado, de boa vontade, dotado de uma visão crítica razoável do que acontece, mas desprovido de condições políticas para assumir a liderança que lhe caberia para negociar as mudanças urgentes na área de segurança. O responsável pelo Depen é excelente profissional com as melhores ideias e intenções, mas não tem os recursos e a autoridade para promover as mudanças que gostaria. A presidente não confere ao ministro e a seus auxiliares os recursos e a autoridade necessários. Além disso, o desastre econômico provocado pelo desgoverno Dilma, desde o primeiro mandato, inviabilizou politicamente o governo e condenou à impotência qualquer iniciaitva reformadora.
PORTALSP- Acredita que a sociedade está preparada para mudanças profundas na estrutura das policiais? E os policiais, considera-os preparados?
Luiz Eduardo Soares: Há gente boa que me diz: qualquer mudança estrutural na segurança, em suas instituições, será muito perigosa, por mais que se a faça em prazo longo, passo a passo. Mudança pode produzir o caos. Costumo responder afirmando que caos é o que nós estamos vivendo, no Brasil. Infelizmente, a sociedade acaba convivendo com situações dramáticas que deveriam ser consideradas inaceitáveis. A sociedade sente-se impotente, convive com tragédias cotidianas, contempla perplexa a corrupção policial, reclama, grita, chega a queimar ônibus, mas depois volta para casa, reproduz suas rotinas e naturaliza a barbárie, até a irrupção da nova tragédia. A energia desprendida das manifestações populares relativas à insegurança tem sido canalizada por políticos demagogos para elevar as penas, e o círculo vicioso se renova. A mídia e a opinião pública costumam pedir mais do mesmo, supondo que desse modo (mais recursos, mais viaturas, mais contratações, mais armas, mais força) será atingido um resultado diferente. Esse quadro dificulta a mudança. A indignação foi capturada pelo atraso. Até mesmo os ganhos políticos tem sido acumulados pelos responsáveis pela preservação das condições que levam ao desastre. Os demagogos que clamam por penas mais severas e reivindicam liberdade para matar são titulares do medo e da morte, beneficiários e promotores da violência, abutres políticos.
Os policiais estão começando a despertar de seu profundo e prolongado sono dogmático, parafraseando o grande filósofo Kant, quando se referia à sua dívida à obra de Hume. Esse é um processo político complicado, porque há a barreira do regimento disciplinar, nas PMs, e a tradição ultra-corporativista dos policiais civis. A PF, mais uma vez, está saindo na frente e dando o exemplo. Pode vir a liderar as diferentes categorias. O pulo do gato está na assunção de uma agenda de mudanças da segurança em benefício da sociedade, da redução eficiente e legalista da criminalidade e da violência. As agendas exclusivamente corporativistas isolam os policiais em um gueto, distante do apoio popular. Entretanto, alerto: para que a polícia federal inspire e lidere o processo de mudanças, terá de negociar, internamente, uma trégua entre agentes e delegados. Mais do que trégua, um acordo de respeito mútuo e convivência democrática. Além disso, será necessário contar com a participação da sociedade.
PORTALSP- É possível crer em avanços significativos nas políticas de segurança pública sem a implantação do ciclo completo de trabalho policial e sem o estabelecimento de uma única porta de entrada para a carreira policial?
Luiz Eduardo Soares: Como disse anteriormente, avanços tópicos, parciais, nos marcos legais e institucionais vigentes, são sempre possíveis e devem ser buscados com toda energia, mas serão sempre insuficientes, até porque encontrarão barreiras intransponíveis que limitarão seus efeitos.
PORTALSP- Que mudanças estruturais são essenciais para a redução da violência na sociedade brasileira?
Luiz Eduardo Soares: Vou responder identificando os problemas e as mudanças sugeridas na PEC-51. Reitero a exposição de motivos que apresentei ao IBCCRIM, em 2013: As propostas chave da PEC-51 são as seguintes: (1) Desmilitarização: as PMs deixam de existir como tais, porque perdem o caráter militar, dado pelo vínculo orgânico com o Exército (enquanto força reserva) e pelo espelhamento organizacional. (2) Toda instituição policial passa a ordenar-se em carreira única. Hoje, na PM, há duas polícias: oficiais e praças. Na polícia civil, delegados e não- delegados. Como esperar respeito mútuo, compromisso com a equidade e coesão interna desse modo? (3) Toda polícia deve realizar o ciclo completo do trabalho policial (preventivo, ostensivo, investigativo). Sepulta-se, assim, a jabuticaba institucional: a divisão do ciclo do trabalho policial entre militares e civis.Por obstar a eficiência e minar a cooperação, sua permanência é contestada por 70% dos profissionais da segurança em todo o país, conforme pesquisa que realizei com Silvia Ramos e Marcos Rolim, em 2010, com apoio do Ministério da Justiça e do PNUD, na qual ouvimos 64.120 policiais e demais profissionais da segurança pública (cf. “O que pensam os profissionais da segurança no Brasil?” Relatório disponível no site do MJ). (4) A decisão sobre o formato das polícias operando nos estados (e nos municípios) cabe aos Estados. O Brasil é diverso e o federalismo deve ser observado. O Amazonas não requer o mesmo modelo policial adequado a São Paulo, por exemplo. Uma camisa-de-força nacional choca-se com as diferenças entre as regiões. (5) A escolha dos Estados restringe-se ao repertório estabelecido na Constituição – pela PEC–, o qual se define a partir de dois critérios e suas combinações: territorial e criminal, isto é, as polícias se organizarão segundo tipos criminais e/ou circunscrições espaciais. Por exemplo: um estado poderia criar polícias (sempre de ciclo completo) municipais nos maiores municípios, as quais focalizariam os crimes de pequeno potencial ofensivo (previstos na Lei 9.099); uma polícia estadual dedicada a prevenir e investigar a criminalidade correspondente aos demais tipos penais, salvo onde não houvesse polícia municipal; e uma polícia estadual destinada a trabalhar exclusivamente contra o crime organizado. Há muitas outras possibilidades autorizadas pela PEC, evidentemente, porque são vários os formatos que derivam da combinação dos critérios referidos. (6) A depender das decisões estaduais, os municípios poderão, portanto, assumir novas e amplas responsabilidades na segurança pública. A própria municipalização integral poder- se-ia dar, no estado que assim decidisse. O artigo 144 da Constituição, atualmente vigente, é omisso em relação ao Município, suscitando um desenho que contrasta com o que ocorre em todas as outras políticas sociais. Na educação, na saúde e na assistência social, o município tem se tornado agente de grande importância, articulado a sistemas integrados, os quais envolvem as distintas esferas, distribuindo responsabilidades de modo complementar. O artigo 144, hoje, autoriza a criação de guarda municipal, entendendo-a como corpo de vigias dos “próprios municipais”, não como ator da segurança pública. As guardas civis têm se multiplicado no país por iniciativa ad hoc de prefeitos, atendendo à demanda popular, mas sua constitucionalidade é discutível e, sobretudo, não seguem uma política nacional sistêmica e integrada, sob diretrizes claras. O resultado é que acabam se convertendo em pequenas PMs em desvio de função, repetindo vícios da matriz copiada. Perde-se, assim, uma oportunidade histórica de inventar instituições policiais de novo tipo, antecipando o futuro e o gestando, em vez de reproduzir equívocos do passado. (7) As responsabilidades da União são expandidas, em várias áreas, sobretudo na uniformização das categorias que organizam as informações e na educação, assumindo a atribuição de supervisionar e regulamentar a formação policial, respeitando diferenças institucionais, regionais e de especialidades, mas garantindo uma base comum e afinada com as finalidades afirmadas na Constituição. Hoje, a formação policial é uma verdadeira babel de conteúdos, métodos e graus de densidade. O policial contratado pela PM do Rio de Janeiro para atuar nas UPPs é treinado em um mês, como se a tarefa não fosse extraordinariamente complexa e não envolvesse elevada responsabilidade. A tortura e o assassinato de Amarildo, na UPP da Rocinha, não foram fruto da falta de preparo, mas do excesso de preparo para a brutalidade letal e o mais vil desrespeito aos direitos elementares e à dignidade humana. A tradição corporativa, autorizada por fatia da sociedade e pelas autoridades, impõe-se ante a ausência de uma educação minimamente comprometida com a legalidade e os valores republicanos. De que serve punir indivíduos se o padrão de funcionamento rotineiro é reproduzido desde a formação, ou no vácuo produzido por sua ausência? (8) A PEC propõe avanços também no controle externo e na participação da sociedade, o que é decisivo para alterar o padrão de relacionamento das instituições policiais com as populações mais vulneráveis, atualmente marcado pela hostilidade, a qual reproduz desigualdades. Assinale-se que a brutalidade policial letal atingiu, em nosso país, patamares inqualificáveis. Para dar um exemplo, no estado do Rio, entre 2003 e 2012, 9.231 pessoas foram mortas em ações policiais. (9) Os direitos trabalhistas dos profissionais da segurança serão plenamente respeitados durante as mudanças. A intenção é que todos os policiais sejam mais valorizados pelos governos, por suas instituições e pela sociedade. (10) A transição prevista será prudente, metódica, gradual e rigorosamente planejada, assim como transparente, envolvendo a participação da sociedade.
PORTAL SP -O sistema prisional brasileiro tem solução?
Luiz Eduardo Soares: Nem o brasileiro, nem o de qualquer país, porque o presídio
é um vestígio da barbárie, com o qual o estado democrático de direito vem convivendo como se fosse natural. Não posso propor, hoje, o abolicionismo, porque seria leviano de minha parte, uma vez que não tenho proposta alternativa a apresentar. Entretanto, acredito que tenhamos de nos empenhar em imaginar e inventar soluções diferentes para responsabilizar uma pessoa por seus atos destrutivos contra terceiros, por atos ilegítimos que afetam outros atores sociais, atos que rompem o contrato social. Hoje, a meu ver, a única atitude responsável e consciente é reconhecer o caráter negativo, ainda que necessário, e provisório da instituição prisional. O compromisso da sociedade deveria ser o de esforçar-se para buscar alternativas. Enquanto somos obrigados –dados os limites de nossa criatividade coletiva– a conviver com a prisão, há muito a fazer. Reconhecer o caráter negativo e passageiro da prisão não deve nos condenar ao imobilismo ou à adoção do discurso: é tudo igual e nada há a fazer. Pelo contrário, é possível reduzir danos. Como? Respeitando a LEP e os direitos dos presos, reduzindo as penas de privação de liberdade aos casos que envolvam violência ou grave ameaça à sociedade, investindo em Justiça restaurativa, trabalhando na prevenção e mudando a política de drogas, no sentido da legalização.
PORTALSP- Em sua avaliação, a polícia federal é uma polícia de ciclo completo?
Luiz Eduardo Soares: Sim e serve de exemplo por suas virtudes, ainda que haja problemas.
PORTALSP- Como surgiu a ideia de criar um site para discutir Segurança Pública?
Luiz Eduardo Soares: Era um sonho que eu tinha. Sempre tive a convicção de que a 14
participação da cidadania, assim como o protagonismo político policial, nessa matéria, seriam condições sine qua non para a mudança. O Congresso Nacional não votará transformações porque é forte a pressão de interesses minoritários corporativistas ultra-reacionários, os quais fingem representar o conjunto das categorias policiais. A força do corporativismo egoísta e atrasado só existe porque a sociedade se omite, na medida em que não compreende o que está em jogo, uma vez que as questões técnicas não têm sido discutidas a sério e de forma acessível. Em outras palavras, se queremos mudar, temos de divulgar as questões técnicas em linguagem inteligível e estimular a participação de policiais e do conjunto da sociedade em debates respeitosos, cuja memória esteja sempre acessível. Consegui convencer algumas entidades a colaborar. Apresentei a PEC-51 como a referência para a organização do debate. O ITS, Instituto Tecnologia e Sociedade, liderado por Ronaldo Lemos, repleto de jovens super talentosos e comprometidos, entusiastas do serviço que a tecnologia e a internet podem prestar à democracia, abraçou a ideia e desenvolveu uma plataforma virtual para a concretização do sonho, a <mudamos.org>. Todos e todas são bem-vindos. Na verdade, não inventei esse caminho. Minha contribuição foi trazer o tema da segurança. O ITS já colocara em circulação discussões sobre o “Marco Civil da Internet” e a “Reforma Política”. Não é fácil atrair as pessoas para este debate organizado. Elas preferem o bate boca do facebook, sem memória, sem organização, sem regras para o diálogo. Tudo bem, o facebook cumpre um papel importante, mas nós estamos sentindo que, apesar de todos acharem ótimo a ideia da participação, poucos efetivamente se dispõem a participar. Contudo, apesar das dificuldades, a experiência tem se mostrado muito positiva e com potencial imenso. Você, leitor, leitora, contribua com nossa iniciativa e visite a plataforma. Deixe sua ideia. Participe.