Luiz Eduardo Soares, o ficcionista oculto pelo cientista político
Luiz Eduardo Soares é escritor, dramaturgo, antropólogo, cientista político e pós-doutor em Filosofia Política. É professor visitante da UFRJ, professor aposentado da UERJ e ex-professor do IUPERJ e da UNICAMP. Foi visiting scholar nas Universidades Harvard, Columbia, Virginia e Pittsburgh. Publicou 18 livros, entre os quais “Meu Casaco de General: 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro” e “Rio de Janeiro: histórias de vida e morte (ambos pela Companhia de Letras)”, ambos finalistas do Prêmio Jabuti. Escreveu o romance “O Experimento de Avelar”, publicado pela editora Relume Dumará, em 1997. Embora inspirado em fatos reais, foram escritos em registro ficcional “Elite da Tropa” (com André Batista e Rodrigo Pimentel), publicado em 2006 pela Objetiva, “Elite da Tropa II” (com os mesmos coautores e Claudio Ferraz), publicado pela Nova Fronteira, em 2010, “Espírito Santo” (com Rodney Miranda e Carlos Eduardo Ribeiro Lemos), editado pela Objetiva, em 2008, além de “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte”, publicado em 2015 pela Cia das Letras e pela Penguin, em Londres, “Vidas Presentes”, em 2017, “Educação para Mudar o Mundo” (no prelo) e “Tudo ou Nada”, pela Nova Fronteira, em 2012, cuja versão para teatro também escreveu (permanece inédita). Escreveu as peças “Entrevista com o vândalo”, montada em 2014 sob direção de Marcus Vinicius Faustini, e “O confronto” (em parceria com Domingos de Oliveira e Marcia Zanelato), montada em 2010 sob direção de Domingos de Oliveira. Seus livros mais recentes são “Desmilitarizar; segurança pública e direitos humanos” (Boitempo, 2019), “O Brasil e seu Duplo” (Todavia, 2019) e “Dentro da noite feroz; o fascismo no Brasil”(Boitempo, 2020). Foi Secretário Nacional de Segurança Pública, Sub-Secretário de Segurança Pública e Coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, além de Secretário Municipal de Prevenção da Violência em Porto Alegre e Nova Iguaçu.
Nosso CAFÉ PÓS-MODERNO recebe Luiz Eduardo Soares que irá responder 13 perguntas e deixar um fragmento.
1- Quando você começou a escrever?
Resposta: Entrando na adolescência, queria ser poeta e rabiscava aquelas rimas horríveis, que estavam mais para expressividade pseudoterapêutica de quem se achava fora de lugar e buscava exercitar a musculatura do espírito, sem achar eco entre amigos e muito menos na família. Os amigos só pensavam em futebol, e um lado meu também, esses músculos se desenvolviam bem. Os outros lados permaneciam sem interlocução. O que me restava era ler e ouvir música: Jazz, Tom, João Gilberto e Caetano, meu altar eterno. Adorava Drummond e Kafka, que descobrira por acaso na livraria Entrelivros do Largo do Machado, bisbilhotando as promoções que coubessem no troco do trolley que eu guardava, muito antes de serem referidos na escola. Meus pais batalhavam pela sobrevivência. Até os 10 anos, a barra era pesada. Não havia dinheiro para nada. Minha mãe às vezes deixava de comer para dar comida a mim e meu irmão, dois anos e meio mais novo, e a meu pai. Ela só começaria a dar aulas de piano depois – e acabaria ganhando mais que meu pai. Nas melhores fases, tínhamos direito a um refrigerante no almoço de domingo uma vez por mês. No aniversário, ganhava uma bola de plástico e era a glória. Em geral, o presente era o mesmo nos natais e aniversários, porque ela furava logo. Depois comecei a pedir livros. Em casa, não havia livros, só dicionários. Meu pai era um pequeno funcionário público, que trabalhava nos correios e era discriminado pelos cunhados, que “subiram na vida”. Mais velho, ele estudou direito, manteve o mesmo emprego, mas passou a usar nas festas um anelão de doutor. Não funcionou, mas talvez ele se sentisse escudado. Na maior parte de sua carreira, recebeu o salário mínimo, ou um e meio, o que acabou provocando uma crise comigo meio traumática, porque o ouvi lamentando com minha mãe o pouco que trazia para casa no dia do pagamento e tentei demonstrar minha solidariedade, me intrometendo e concordando com ele, era mesmo “tão pouco”, eu disse.
Levei uma das piores surras, daquelas em que se a gente chorasse, apanhava mais, e não havia mãe que segurasse as pancadas. Morávamos no bairro de São Francisco, em Niterói. À época, chamava-se Saco de São Francisco. Eram só dois prédios e tínhamos toda a praia para nós. Um ou dois anos depois, tentei intervir de novo, dizendo o oposto do que dissera da primeira vez para tentar agradá-lo. Já que apanhara por dizer que ele ganhava muito pouco, numa cena análoga, marido e mulher contando dinheiro e lamentando, intervi: “puxa, você ganha muito!” A surra foi ainda pior. Desde então, desisti de tentar entender o significado de muito ou pouco, naquele contexto. Entretanto, não desisti de buscar entender aquela injustiça de que meu pai era vítima e que chegava a mim por meio de sua raiva. Entender e buscar uma solução. Um dia, jogando futebol com bola de meia com ele e meu irmão, no corredor do apartamento, eu tinha meus 8 anos, mais ou menos, perguntei: “Por que o governo não compra todas as firmas que empregam as pessoas e paga o mesmo salário pra todo mundo?” Ele respondeu, blasé: “Isso existe, chama-se socialismo”. Ficou por isso mesmo, mas não esqueci. Quando já tinha meus doze ou treze anos e morava no Rio, viajei para Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, onde costumava passar férias na casa de minha madrinha e avó paterna, a pessoa de quem eu mais gostava – ela morava com o irmão de meu pai, padre. Na escadaria da igreja, por alguma razão, bati um papo com um menino um pouco mais velho. Falávamos de política e eu lhe disse que era socialista – jamais esquecera daquela resposta de meu pai. Disse com a mesma sem-cerimônia que identificara na explicação de meu pai. Ele me corrigiu: “Isso de que você fala chama-se comunismo, não socialismo. E toda pessoa digna é comunista”.Claro que me apressei a compartilhar a novidade, quando voltei ao Rio. No primeiro almoço familiar, no qual estava também a avó materna, e supondo que meu pai se lembrasse tão nitidamente quanto eu daquela conversa no corredor do apartamento em Niterói, como se retomasse aquele diálogo tão vívido em minha memória (até hoje), eu disse: ”Não sou mais socialista, sou comunista”. Meu pai ficou furioso e minha avó desatou a chorar, horrorizada, como se o diabo em pessoa tivesse baixado no neto, ali mesmo, ao vivo e a cores. Expulso da mesa, como Adão do paraíso, fui para o castigo, aonde minha mãe, mais tarde, furtivamente, contrabandeou comida. O curioso, ou irônico, era que eu não compreendi por que apanhei, nem naquela vez, nem nas duas anteriores que citei. Outras vezes, compreendia, eu havia desobedecido, ou algo assim. Mas por que dizer-se comunista seria tão abominável, crime inafiançável, hediondo?, se era apenas um desdobramento que me parecia natural, uma espécie de precisão conceitual, da adesão anterior ao socialismo, que parecia ter sido perfeitamente aceitável para meu pai.
Recolhido ao quarto do castigo, lembrei que, de fato, havia algo especialmente problemático com o comunismo. A cena, eu a tenho presente até hoje. Embora pobres, tivemos o privilégio, eu e meu irmão, de contar, na infância e na adolescência, com o apoio do avô materno aos estudos. Meus pais podiam mal ter o que comer, mas nós estudaríamos nas melhores escolas e faríamos cursos de línguas, etc. Ele tinha recursos, era um português do tipo self-made-man, que fugira da primeira guerra e viera clandestino no navio para dormir na rua e trabalhar por um prato de comida, na adolescência. A história dele, que morreu com 102 anos, daria um livro. Quando nasci, ele já morava em Nova Friburgo e se tornara um comerciante modesto mas, para nossos padrões, riquíssimo. Graças a ele, eu estudava na Cultura Inglesa, em Icaraí, Niterói, depois, já no Rio, cursaria a Alliance Française e o Istituto Italiano di Cultura. Para nos ajudar, meu avô dera seu DKW usado a meu pai. Certa vez, antes de 1964 – sei disso porque ainda morávamos em Niterói –, me deixando na Cultura, papai, como não conseguira estacionar exatamente em frente à casa, saiu do carro para me levar pela mão. Já nos afastávamos do carro quando ele se deu conta de que esquecera algo. Voltou, abriu a porta do DKW e virou para baixo a capa vermelha do livro, no banco traseiro, que estampava uma foice e um martelo. Foi a única vez em que ele lia um livro, que eu tivesse visto, ou mexia em um livro, que não fossem dicionários ou enciclopédias. O livro chamava-se “Em cima da hora”, de algum autor estrangeiro, mas traduzido ou apresentado por Carlos Lacerda, o herói da família. Era um livro anticomunista, mas a capa poderia sugerir o contrário. Daí a preocupação dele, a qual talvez não dissesse respeito apenas ao temor de ser tomado pelo que não era, mas já revelasse um medo fundamentado no risco que estava no ar, mesmo antes do golpe. Afinal, o partido comunista continuava na clandestinidade, embora não fosse perseguido e atuasse na arena pública, elegendo candidatos em outras legendas. Acho que a incomunicabilidade familiar, sobretudo associada à política, num ambiente de escassez de grana, livros e recursos expressivos, me estimulou a encontrar refúgio e espaço para autoconstrução na literatura. Comecei a rascunhar algumas coisas nos abrigos antiaéreos pra onde fugia nos bombardeios de mal entendidos.
Aliás, procurei descrever a experiência do golpe de 1964 do ponto de vista de uma criança no livro “Rio de Janeiro, histórias de vida e morte”. Na edição da companhia das letras, ficou sendo o último capítulo, na versão inglesa, da Penguin, o primeiro.
Particularmente, meu processo de criação varia, mas, de um modo geral, extraio palavra de palavra, enredo de grãos de enredo, de tal forma que, não raro, sinto a tensão, ao escrever, de quem está lendo, porque vou descobrindo personagens e situações na medida em que a escrita me relata o que acontece. Ocorre também em trabalhos acadêmicos: explico a mim mesmo o que não estava entendendo e nem sabia formular antes de escrever. Às vezes me impressiono ao ler e preciso reler para entender o que, compreendido o conteúdo, me persuade inteiramente, embora antes pensasse diferente ou ignorasse a conclusão e o caminho reflexivo. Isso é muito misterioso e me encanta, entusiasma e me impede de descansar. Afinal, se eu não escrever, não compreenderei, nem haverá a história, se eu não a contar. E há também conexões estranhas que cruzam tempo e espaço, como textos ficcionais inspirados em personagens reais, com sua autorização, que antecipam, sem que eles saibam ou eu entenda como seria possível, o que viverão a seguir. Os caminhos da escrita são surpreendentes e extrapolam o controle consciente, mas nisso não há novidade. Aliás, em nosso país, nada mais deveria chocar, uma vez que, aqui, o real é inverossímil e condena o autor realista a perder credibilidade. Por isso, não raro, evitamos o relato mais, digamos, fiel para não soarmos inteiramente falsos e artificiais.
3- Quais os “clássicos” da literatura você mais admira? Quais autoras e autores influenciaram tua escrita?
4- E na cena literária atual… Quem você já leu e gostou muito? Quem você indica, entre os contemporâneos, para as pessoas lerem?
Resposta: Basta pinçar da lista acima os contemporâneos: Mussa, Silviano, Vilma, Mutarelli, Helio, Chris Ware, Moore, Gonçalo, Galera, Bernardo, Reinaldo e ainda: Dulce Maria Cardoso, Edyr Augusto, Tatiana Salem-Levy, Afonso Borges, Alexandra Lucas Coelho, Milton Hatoun, Paulo Scott, J.P. Cuenca, Tatiana Salem-Levy, Paulo Lins, Michel Laub, Sergio Rodrigues, Carlito, Italo Moriconi, Paulo Henriques Britto, Adélia Prado, Edyr Augusto, André Sant’Aanna, Laerte Coutinho e Rafael Coutinho, Beatriz Bracher, Angélica Freitas, Ana Miranda, Conceição Evaristo, Patricia Melo, João Carrascoza, Ana Maria Gonçalves, Cristiane Costa, Dulce Cardoso e David Remnick. Agora, preciso ler seus textos, Marcio, quero conhecer seus trabalhos literários.
5- Neste momento, qual é o livro que você está lendo?
Resposta: Terminei o “2066”, do Bolaño, finalmente, e o “Marrom e Amarelo”, do Paulo Scott, e, com atraso, só agora leio o “Submundo”, do Don Delillo. Retomei também “A Aparição do demônio na fábrica; origens sociais do eu dividido no subúrbio operário” (editora 34), do mestre José de Souza Martins. Só agora estou lendo dois livros antigos, “O Cultivo do ódio”, do Peter Gay (Cia das Letras), e “Belief & Meaning”, de Akeel Bilgrami, da editora Basil Blackwell, do qual havia lido apenas capítulos esparsos, no pós-doc. Li há pouco o importante novo livro de Bruno Paes Manso, “República das Milícias” (Todavia), para o qual escrevi brevíssima apresentação para a quarta capa. Para concluir meu livro mais recente, que acaba de sair, “Dentro da noite feroz” (Boitempo), reli, claro, o livro célebre de Ferreira Gullar “Dentro da noite veloz”. Como estou dando quatro oficinas na UFRJ, na pós de literatura, como professor visitante, tive de retomar leituras antigas e recentes sobre a gênese da individualidade. Você pode imaginar quão caudalosa tem de ser a preparação.
6- O que você já publicou até aqui?
Resposta: Marcio, vou citar apenas o que posso considerar trabalho literário: o romance “O Experimento de Avelar” (Relume Dumará), de 1997, e livros que, embora baseados em fatos reais, receberam tratamento literário: “Elite da Tropa I e II”, 2006 e 2010 (com coautores já referidos); “Espírito Santo”, 2008, (também com coautores já mencionados); “Tudo ou Nada”, 2012, “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte”, 2015, “Vidas Presentes”, em 2017, e “Educação para Mudar o Mundo” (no prelo). Esses últimos dois são livros não comerciais. Meu único conto publicado é “Fim de semana em São Conrado”, em Rio Noir, organizado por Tony Belotto (Casa da Palavra, 2014). Escrevi três pequenos romances que ainda estão inéditos, um deles com Rafael Coutinho, e uma graphic novel, “História de uma Amizade”, com Marcus Wagner, até hoje não publicada por problemas contratuais. Escrevi, além de versão inédita para teatro de “Tudo ou Nada”, as peças “Entrevista com o Vândalo”, montada em 2014 sob direção de Marcus Vinicius Faustini, e “O Confronto” (em parceria com Domingos de Oliveira e Marcia Zanelato), montada em 2010 sob direção de Domingos de Oliveira.
Não saberia dizer o que mais apareceu em blogs, sites, facebook, etc.
7- Se alguém deseja conhecer sua produção literária, você recomenda começar por onde?
Resposta: “O Experimento de Avelar” está esgotado há décadas. Posso sugirir “Tudo ou Nada”, “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte” e “Vidas Presentes”, com gravuras de Francisco Maringelli – disponível no site da ONG “Cidade Escola Aprendiz”: https://www.cidadeescolaaprendiz.org.br/wp-content/uploads/2017/06/Vidas-Presentes.pdf
E adoraria tomar a liberdade de incluir entre as sugestões meus dois livros mais recentes (não incluo ainda o “Educação para Mudar o Mundo”), que não são obras literárias, mas trazem temas pertinentes para quem se preocupa com arte e cultura: “O Brasil e seu Duplo” (Todavia, 209) e “Dentro da Noite Feroz; o fascismo no Brasil” (Boitempo, 2020).
8- Prosa ou poesia? Conto, novela ou romance? Quais são as suas preferências de leitura e de trabalho literário?
Resposta: A poesia de qualidade me parece superior, elaboração mais concisa e densa, mas não ouso me arriscar nessa seara. Leio contos, novelas e romances, indistintamente, e tenho escrito romances breves, que talvez merecessem a classificação de novelas.
9- Se ainda não dá para viver só de literatura, como você sobrevive?
Resposta: Fui professor universitário por 44 anos, me aposentei na UERJ e atualmente sou professor visitante da UFRJ, na pós-graduação de literatura. Não dá nem para pensar em viver da escrita. A vida toda vivi da docência e de pesquisas. Um ou outro livro me proporcionou algum ganho razoável, mas é raro.
10- Algumas escritoras e escritores fazem depoimentos de cunho político outras defendem a “arte pela arte”, uma autonomia entre fazer literatura e o contexto sociopolítico. Em sua opinião, qual a relação entre arte (ou obra literária) e a política?
Resposta: De meu ponto de vista, a conexão é profunda, orgânica e inexorável, mas não no sentido superficial ou panfletário, instrumentalista, por assim dizer. Quem tentar operar nesse nível, dificilmente logrará produzir uma obra que mereça este nome, que se inscreva na cultura e promova alterações na sensibilidade e na configuração estética dos valores, das crenças e dos afetos. A produção literária, como as demais formas artísticas, requerem muito trabalho, mas dependem da atuação de dimensões inconscientes e, ousaria sugerir, transconscientes (porque se comunicam com redes que ultrapassam os sujeitos), não só alheias como refratárias ao controle racional e ao cálculo consciente. O resto é entretenimento para o mercado, é mercadoria permutável ou mecanismo para engate de adesões banais – ou é expressividade juvenil (ou senil) de interesse eventualmente terapêutico –, entretenimento que acaba reproduzindo estruturas profundas da sociedade mesmo quando pretende revolucioná-las. Não se brinca com a linguagem. Ou melhor, só se brinca com a linguagem, o que é muito perigoso, fascinante e arriscado. Quem se habilita?
10- Algumas escritoras e escritores fazem depoimentos de cunho político outras defendem a “arte pela arte”, uma autonomia entre fazer literatura e o contexto sociopolítico. Em sua opinião, qual a relação entre arte (ou obra literária) e a política?
Resposta: De meu ponto de vista, a conexão é profunda, orgânica e inexorável, mas não no sentido superficial ou panfletário, instrumentalista, por assim dizer. Quem tentar operar nesse nível, dificilmente logrará produzir uma obra que mereça este nome, que se inscreva na cultura e promova alterações na sensibilidade e na configuração estética dos valores, das crenças e dos afetos. A produção literária, como as demais formas artísticas, requerem muito trabalho, mas dependem da atuação de dimensões inconscientes e, ousaria sugerir, transconscientes (porque se comunicam com redes que ultrapassam os sujeitos), não só alheias como refratárias ao controle racional e ao cálculo consciente. O resto é entretenimento para o mercado, é mercadoria permutável ou mecanismo para engate de adesões banais – ou é expressividade juvenil (ou senil) de interesse eventualmente terapêutico –, entretenimento que acaba reproduzindo estruturas profundas da sociedade mesmo quando pretende revolucioná-las. Não se brinca com a linguagem. Ou melhor, só se brinca com a linguagem, o que é muito perigoso, fascinante e arriscado. Quem se habilita?
12- Qual é a pergunta que você gostaria de responder e eu não fiz?
Resposta: Você, com sua inesgotável generosidade, perguntando e fazendo com que me sentisse importante, isto é, digno de ser lido, me incentivou a escrever mais sobre o significado da literatura em minha vida do que eu jamais fizera antes.
13- Qual é seu próximo projeto literário? Ainda este ano?
Resposta: Pretendo escrever um longo ensaio, talvez um livrinho, com base na pesquisa de que participo sobre a Maré.
Deixe uma poesia, frase ou fragmento de texto de sua autoria para quem leu esta entrevista fazer uma “degustação”…
Resposta: Postei no facebook um trechinho de meu pequeno romance inédito:
Querida bisneta (que um dia há de nascer), sinto que lhe devo uma explicação. Lego a você e sua prole, se houver, um país de canalhas. Seria fácil lhe pedir desculpas, dizer que me esforcei para evitar, mas a verdade é que fui, sim, responsável. Caí na esparrela de que não havia mais nada a fazer. Caí porque era conveniente. Para não pôr tudo a perder, pus tudo a perder. Não incendiei catedrais, não matei o tirano, não parei o trânsito de todas as cidades como um assassino decente teria feito, não providenciei o desespero dos genocidas, não despedacei o corpo do imperador, não invadi a casa-grande, não pendurei o senhor pelos pés, não injetei o sangue dos mutilados no coração dos traidores, não calcinei a terra dos violadores, não violei o túmulo dos cínicos, não persegui os torturadores até o inferno, não reparei que a gentileza era lúgubre e cúmplice, não vi o que se podia ver e era demasiado, não quis pra mim o horror que é sua herança, não tive coragem de não ser bom, não fiz o trabalho sujo que meu tempo exigia, não quis figurar na galeria dos bárbaros, não quis carregar nos ombros a pilha de cadáveres, não quis o punhal e a dor das mães, não quis o fardo de pulhas abatidos, não pronunciei a palavra maldita, não levei até o fim a exumação da história infectada do Brasil, não infectei com o veneno de minha revolta a alma santa dos delicados.
(Trecho do romance inédito: “Crânio de vidro do selvagem digital”)
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