Luiz Eduardo Soares: o que vem depois da queda da tarifa?
O movimento dependerá da capacidade de não confundir rejeição ao atual sistema político-partidário com recusa da democracia. É urgente incluir na agenda a refundação do modelo policial.
Há uma semana escrevi sobre o movimento pelo “passe livre” (www.luizeduardosoares.com), chamando a atenção para o fato de que o novo surpreende e assusta, porque rompe a estabilidade das expectativas, coloca em xeque nossos esquemas cognitivos, revela a precariedade da ordem social e evoca o espectro de nossa finitude. Somos levados a reconhecer que não apenas a vida humana é frágil como aquilo que chamamos “realidade” é débil e movediço. Por isso, o desconhecido tende a suscitar em nós reações defensivas e explicações que funcionam como a confirmação do que já se sabe — ou se supõe saber. Se o propósito é conhecer, devemos buscar, com humildade, a compreensão autorreflexiva e a desnaturalização das descrições correntes. Até porque todo esforço de entendimento é também ação política.
Na sequência, expus o que sabia e, mais importante, formulei perguntas sobre o que não sabia. Descrevi as cadeias metonímicas que conectam questões conjunturais a dilemas estruturais — as desigualdades como pano de fundo —, e analisei o diálogo tácito do movimento com o imaginário global e o vocabulário das ocupações, formando uma espécie de hipertexto virtual, tecido por citações recíprocas. Finalmente, concluí com otimismo: “A força da multidão foi reencontrada por jovens e cidadãos que passam perto e se deixam atrair pelo magnetismo de um pertencimento precário, provisório, sem rosto, mas com alma. Que alma tem o movimento? Sim, intuo, suponho, sinto que ele tem alma, isto é, uma unidade toda sua — não verbalizada — e uma personalidade. Intuo que esta alma não seja aquela que se derivaria — como o negativo ou o avesso — de uma comparação com o que sabemos: não sendo, o movimento, organizado ao modo antigo, deduzir-se-ia que seria inorgânico; não tendo uma plataforma clara e uma visão compartilhada que incorporasse as mediações, deduzir-se-ia que seria irracional, despolitizado, quando não selvagem. (…) Há no movimento magnetismo, há conexão metonímica com questões centrais para o Brasil e o mundo, há um diálogo tácito, consciente e inconsciente, com a humanidade em escala planetária, com nossa memória social e com a tradição de nossa cultura política. (…) De nossa parte, os anciãos e os governantes, autorreferidos e inseguros, ameaçados em nossos esquemas cognitivos e práticos, caberia escutar, acompanhar, respeitar, repelir a violência policial (e qualquer outra), admitir nossa ignorância, e considerar a hipótese de que algo novo esteja surgindo e essa novidade talvez seja virtuosa e republicana, quem sabe a reinvenção da política democrática. Talvez a melhor forma de escutar seja unir-se ao coro, na rua. Para (re)aprender a falar”.
Fiz o que sugeri: uni-me ao coro na rua. Haveria muito a dizer, mas não quero ocupar o espaço com o depoimento do velho peregrino, percorrendo a Rio Branco acossado por memórias de outras jornadas. Prometo poupá-los do tom confessional. Entretanto, antes de mudar o canal, mantenho a primeira pessoa para compartilhar o que vi, assombrado e comovido. Assisti a uma cena inverossímil: lado a lado, 100 mil pessoas em festa celebravam o estar ali e evocavam o que ainda não é, enquanto, silenciosa e inadvertidamente, sepultavam o que havia sido, seguindo o doloroso cortejo no funeral do PT.
A imagem dupla — épica, no lado A, trágica, no verso — me ocorreu pela via dos cinco sentidos e da emoção, mas firmou-se, analiticamente. Era isso mesmo. O argumento é simples: a maioria dos presentes era estudante. A UNE esteve lá, bem no centro da praça, no meio da festa, sob a forma de uma ausência fulgurante e um silêncio estridente, preenchidos pelo protagonismo emergente dos jovens indignados. O novo personagem coletivo nasceu sobre os despojos da entidade, descaracterizada pela cooptação dos governos petistas e pelo aparelhismo do PCdoB. E onde estavam tantos outros personagens coletivos de nossa dramaturgia política popular e democrática? Muitos deles trocaram a autonomia pelas benesses do poder, sem perceber que a cooptação esteriliza. O preço dos privilégios é a impotência.
Ao PT que venceu, o país deve muito. Os governos Lula, e mesmo Dilma, ficarão na História como marcos fundamentais na redução das desigualdades. Contudo, quais têm sido suas contribuições para o aprimoramento da democracia e para a mudança das relações entre Estado e sociedade, governos e movimentos sociais?
Pode-se ostentar a arrogância tecnocrática e abraçar Maluf, porque os fins sempre justificariam os meios? Os apologistas petistas do pragmatismo ilimitado não se deram conta de que os meios são os fins, quando a perspectiva adotada é a confiança da sociedade no Estado, em especial a credibilidade do instituto da representação. Hoje, tantos que acreditaram na dignidade da política vagam sem norte como zumbis da desilusão. E a juventude procura um caminho para chamar de seu. São dez anos de PT no poder: uma geração não o conheceu na oposição e não sabe o que é um grande partido de massas, não cooptado, comprometido com as causas populares e democráticas, entre elas e com destaque a reinvenção da representação política e a confiança na participação da sociedade como antídoto ao autoritarismo tecnocrático. Por mais que se façam críticas pertinentes à forma partido, é indiscutível sua importância na transmissão de experiências acumuladas e na formação da militância. Até a linguagem das massas nas ruas tem sua gramática. A espontaneidade é a energia, mas a organização a potencializa e canaliza.
No momento em que emerge o novo protagonismo, com compreensível mas perigosa repulsa por tudo o que de longe soe a partido, deparamo-nos com o vácuo oceânico produzido pelo esvaziamento do PT como agente político independente, esvaziamento por sua vez provocado pela sobreposição entre Estado, governo e partido.
O Movimento pelo Passe Livre declarou à nação que o rei está nu, proclamou em praça pública que a representação parlamentar ruiu, depois que, capturada pelo mercado de votos, resignou-se a reproduzir mandatos em série, com obscena mediocridade, sem qualquer compromisso com o interesse público, exibindo o mais escandaloso desprezo pela opinião pública. O colapso da representação vem ocorrendo sem que as lideranças deem mostras de compreender a magnitude do abismo que se abriu — e aprofunda-se, celeremente — entre a institucionalidade política e o sentimento da maioria. As denúncias de corrupção se sucedem, endossando a visão negativa que, injustamente, mas compreensivelmente, generaliza-se.
E o futuro? O movimento omnibus tem diante de si os mais variados cenários, e outros a inventar. Seu destino provavelmente dependerá de sua capacidade de diferenciar a crítica política da crítica à política, e de não confundir a rejeição ao atual sistema político-eleitoral, e partidário, com uma recusa da própria democracia, em qualquer formato. Essas distinções provocarão divisões internas profundas e inconciliáveis, que já estão aflorando. Toda essa magnífica energia fluirá para o ralo do ceticismo, abrindo mais um ciclo de apatia? A indignação encontrará traduções autoritárias e ultraconservadoras? Múltiplos afluentes seguirão cursos inauditos, nos surpreendendo com sua criatividade e mudando o país, no âmbito da democracia? As respostas não dependem só do movimento, mas também dos que não têm participado e das lideranças governamentais e parlamentares.
E as polícias? O debate sobre a desmilitarização está posto. É urgente incluir na agenda a refundação do modelo policial brasileiro, para estender à segurança pública a transição democrática. Polícia é tema decisivo. Se o relacionamento entre a sociedade e o Estado está no epicentro do movimento, as polícias também estão. Afinal, o policial uniformizado na esquina é a face mais tangível do Estado para a maior parte da população. Não haverá democracia enquanto o Brasil for campeão da brutalidade policial contra negros e pobres.
Luiz Eduardo Soares é antropólogo, escritor, professor da UERJ