Meu encontro com Prestes
publicado em 26 de outubro de 2015, no site Justificando
À memória de Joel Teodósio
Antes de unir-se aos aliados na segunda guerra mundial, o então ditador, Getúlio Vargas, hesitando entre os dois lados do conflito, deportou a esposa judia alemã de Prestes, Olga Benário, grávida, para a Alemanha. Os nazistas a mataram na câmara de gás do campo de concentração de Ravensbruck. A filha, Anita, sobreviveu e seguiu os passos do pai. No curto período democrático em que o partido foi legalizado, entre 1945 e 1947, elegeu-se o senador mais votado do país, vencendo o pleito no Rio de Janeiro, então distrito federal –naquela época era possível candidatar-se por diferentes estados, simultaneamente. De volta à clandestinidade, dirigiu o partido com autoridade indisputada ao longo de décadas. Prestes e o PCB foram mais do que figurantes à margem da grande política, apesar da perseguição de que foram vítimas. Participaram de todos os momentos decisivos da vida nacional desde a década de 1920. Isso ocorreu por duas razões: em primeiro lugar, a repressão, embora constante, nem sempre foi rigorosa, chegando a ser leniente, quando convinha ao poder constituído. Em segundo lugar, Prestes e o partido foram hábeis e competentes o suficiente para compreender o que estava em jogo em cada conjuntura e intervir em favor de causas positivas e realistas, que transcendiam a agenda sectária e ideológica típica de outros partidos, em outros países, cujo destino foi a irrelevância e o isolamento. As causas eram tão amplas quanto o desenvolvimento econômico, a redução da dependência externa, a ampliação dos direitos sociais e políticos dos trabalhadores do campo e das cidades.
Durante a ditadura instalada em 1964, o partidão, como era chamado o PCB – por ser o maior e mais antigo, uma espécie de matriz das esquerdas brasileiras -, perdeu inúmeros quadros importantes porque adotou posição contrária à luta armada. A linha proposta pelo partido visava a formação de alianças com todas as forças que se dispusessem a defender a redemocratização, a qual culminaria na anistia e na convocação de uma assembleia nacional constituinte. Essa via foi vitoriosa, ainda que o processo de transição tenha sido lento, gradual e cheio de contradições. Os militantes que romperam com o PCB buscaram abrigo em outras agremiações ou fundaram seus próprios partidos clandestinos. A resistência armada, em todas as suas formas, acabou esmagada. Apesar de opor-se ao uso da violência na luta contra a ditadura, até porque a maior parte da sociedade não se envolvia, o PCB também foi alvo da repressão. Muitos de seus membros foram torturados e assassinados. Para sobreviver, Prestes teve de exilar-se em 1971.
Subimos ao andar indicado. Não me lembro quem abriu a porta. Devia ter registrado tudo enquanto a memória estava fresca. No entanto, o fundamental permanece cristalino. O cavaleiro da esperança era mais baixo do que supunha e me pareceu saudável, forte, perfeitamente lúcido e animado para uma pessoa de 81 anos, que tinha passado por tantos sofrimentos e tensões extremas. Eu não tinha uma pauta. Tinha trocado com Joel algumas impressões poucos dias antes do encontro e concluímos que o melhor seria estimular o velho a falar e, sobretudo, não interrompê-lo. Claro que o ponto de partida teria de ser a situação do partido. Como ele avaliava as divisões internas, que prognóstico fazia. E o que pensava sobre a conjuntura brasileira. Tínhamos consciência da importância daquele momento para nós. Estávamos dispostos a aproveitá-lo com humildade. Numa conversa com alguém que fala do ponto de vista da história vivida, não cabem questionamentos, por mais que fossem legítimos. Seria uma estupidez ouvirmos as próprias vozes e os próprios argumentos. Não o convenceríamos de nada e, para debater entre nós, dispunhamos do futuro. Um futuro interminável. Éramos jovens. Eu tinha 25 anos; Joel, 36.
Joel era o mais velho, o mais experiente, quem mais havia contribuído para tornar possível aquele momento e o único a falar russo. Era também a modéstia em pessoa, a simpatia encarnada. Por isso, despistava: “Arranho alguma coisinha”. Eu admirava aquela proeza. Qual a vantagem, naquele contexto, em falar a língua de Maiakowski? Nenhuma. Quase nenhuma. Uma pequeníssima vantagem. Quando nos sentamos ao redor da poltrona do velho comandante, Joel foi rápido no gatilho. Fez uma brincadeira na língua de Leonid Brezhnev. Disse alguma gracinha ou agradeceu ao camarada Prestes por nos receber. Quando saímos, Joel jurou que só agradeceu, mas o anfitrião riu e respondeu ainda sorrindo, o que me levava a crer que tivesse sido mais do que um simples agradecimento. Tanto faz. O fato é que foi uma jogada de mestre. Inaugurou a conversa com uma virada no humor do secretário geral. Depois daquela introdução, ele parecia mais desarmado.
A conversa durou uma hora e meia, aproximadamente. Ouvimos sua análise crítica sobre a decadência do partido e as oportunidades abertas pela transição política. Prestes suscitou em nós a certeza de que deixaria o partido em breve. Ele não aceitava que o PCB se afastasse da influência soviética. No mundo da guerra fria, dividido em duas metades, ou se está com Moscou, ou se está com Washington, ou se apoia o socialismo, ou se está a serviço do capitalismo, vendido ao imperialismo. Era o que ele pensava, contrariando minhas ideias e meus valores, que cuidei de guardar apenas para mim. Ali, fui ouvir. O distanciamento crítico, para Prestes, não permitia meias palavras: é traição. O que previmos confirmou-se: o eterno secretário geral abandonou o partidão naquele mesmo ano, 1980. Embora tudo fosse interessante, o mais significativo foi ter o privilégio de flagrar sua cabeça funcionando. A máquina de pensar do mais importante comunista brasileiro. Para mim foi chocante. Joel era craque, cascudo, a pele grossa curtida ao sol noturno da luta interna. Ele se identificava muito mais do que eu. Em certo sentido, eu já estava preparado, porque, embora admirasse as virtudes do velho, me via a anos luz de suas ideias. Eu pendia mais pra Woodstock do que pro Kremlin. Mais pra Caetano Veloso do que pra internacional. Mais pro tropicalismo do que pras convenções caretas do realismo socialista. Acima de tudo, eu abominava Stalin, o genocida, o assassino de seus camaradas, o farsante sanguinário, o mestre antissemita da tortura e do terror.
A máquina de pensar pensava assim, e o que passo a descrever aconteceu assim.
Não sei por que, subitamente nosso anfitrião pousou no vigésimo congresso do partido comunista da União Soviética, que ocorreu em fevereiro de 1956, três anos depois da morte de Stalin. No grande ritual que reunia, a portas fechadas, além dos líderes soviéticos, representantes de partidos comunistas de todo o mundo, sucedeu a segunda morte de Josef Stalin. Sem eufemismos, seus crimes foram chamados pelo nome, no discurso sigiloso -não divulgado senão para os participantes – que o então primeiro ministro, Nikita Khrushchev, proferiu em 23 de fevereiro. Prestes referiu-se ao episódio contando a seguinte história:
Foi uma das situações mais difíceis pelas quais o partido passou. Nós havíamos enviado o Arruda para acompanhar o Congresso em Moscou.
Referia-se a Diógenes Arruda Câmara, um dos principais dirigentes nacionais do PCB, militante comunista desde 1934, várias vezes preso e torturado, eleito deputado em 1945. Arruda chegou a ser o substituto de Prestes quando a clandestinidade impediu sua atuação rotineira, no final da década de 1940 e início dos anos 1950.
Nosso anfitrião prosseguiu:
Ele deveria voltar em seguida e apresentar um relatório ao nosso Comitê Central. Enquanto ocorria o Congresso, começaram a circular na imprensa as mais torpes acusações. A memória de Stalin estava sendo diariamente ultrajada do modo mais vil. Diziam-se as coisas mais absurdas. Nós já estávamos acostumados a toda sorte de calúnia contra os comunistas e a União Soviética. Nisso não havia novidade. O que preocupava era a insistência da imprensa burguesa em apontar como fonte o próprio partido soviético. Quando o Congresso terminou, os porta-vozes da burguesia e do imperialismo afirmavam que as incriminações teriam sido admitidas no próprio relatório do camarada Khrushchev. Nós negamos com toda a energia. Quanto mais eles atacavam, mais veemente era nossa defesa do legado de Stalin. As agressões não paravam, multiplicavam-se, disseminavam-se por todos os meios, e nossos argumentos escasseavam, assim como as informações. Como travar uma luta titânica quando um lado proclama dispor de dados colhidos na fonte e o outro não tem como desmentir, senão genericamente, por lhe faltar acesso a notícias reais que proviessem do interior do partido soviético? A situação ia se tornando cada vez mais delicada, a cada dia mais insustentável. Passaram-se dois ou três meses e a conjuntura apenas se agravava. Nós nos tornávamos mais frágeis. A militância indignava-se com os insultos da imprensa burguesa e dos políticos reacionários, mas também angustiava-se, tamanha era a insistência no caráter oficial das acusações contra Stalin. Foi uma prova de fogo para testar a confiança dos militantes em sua direção e para por à prova a credibilidade de nosso comitê central e de minha própria liderança. Enquanto a tempestade terrível se abatia sobre nós, Arruda passeava na China. É verdade que havia uma visita agendada, negociada entre o PCB e os companheiros chineses, mas nada justificava essa irresponsabilidade. Arruda agia como se as condições não tivessem mudado drasticamente. Nada de Arruda. Reuníamos o comitê central, seguidamente, para planejar as respostas, localizar o inconsequente e forçá-lo a voltar imediatamente. Ele nos deixou expostos por alguns meses. Quando finalmente chegou, reunimos o comitê central em ambiente de enorme ansiedade e nos preparamos para ouvi-lo. Sabem o que ele nos disse? Que era tudo verdade. Que os insultos a Stalin constavam do relatório de Khrushchev. Que as calúnias veiculadas pela imprensa burguesa eram agora a versão oficial soviética sobre os atos do camarada Stalin.
Prestes respirou, fez uma pausa e completou:
Naquele momento, compreendi que Arruda era agente da CIA. Um traidor da classe operária que visava a destruição de nosso partido. Isso ficaria comprovado anos depois, quando tornou-se cúmplice da criação de outro partido para tentar dividir o movimento comunista.
Referia-se ao PCdoB, fundado em 1962, que passou a reivindicar para si a história do PCB, o qual ter-se-ia afastado dos compromissos revolucionários originais, proclamados no ato de sua constituição, em 1922. O cisma refletia a crise no relacionamento entre a China de Mao e a União Soviética de Khrushchev. O PCdoB firmou-se alinhado a Beijing. Curiosamente, Arruda, acusado por Prestes de caluniar a memória de Stalin e de demorar-se em viagem ao exterior para debilitar o partido, lançando seus dirigentes na fogueira de contradições, ficou conhecido no PCB como o pequeno Stalin.
Não era preciso ouvir o depoimento de Prestes para saber que, ao vigésimo congresso do partido soviético, seguiu-se, no PCB, um período de confusão e angústia, cujos extremos foram o suicídio de alguns militantes e o rompimento com o partido, de muitos outros. Dirigentes foram destituídos, a começar pelo próprio Arruda, mas Prestes permaneceu no comando, intocável, ainda que a linha política viesse a sofrer adaptações, encaminhando-se para abordagens e ações mais reformistas e ciosas dos limites institucionais.
O discurso paranoico de Prestes não admitia contestações. Não tinha poros. Blindava-se, impermeável a dúvidas. Em seu mundo cercado pelo muro dos dogmas inabaláveis, refratários ao teste da realidade, infensos à experiência histórica, o cavaleiro da esperança fechou-se até o fim. Levou consigo o ódio ao antigo companheiro e a fé na teoria conspiratória. O irmão sempre foi o principal inimigo, na tradição autofágica das esquerdas.
O pernambucano Diógenes Arruda Câmara, teimoso, autoritário, sectário, porém íntegro e honrado, amado pelos companheiros, faleceu em 25 de novembro de 1979, aos 65 anos, poucos meses antes de nossa conversa com Prestes. Ele foi ao aeroporto de Congonhas, em São Paulo, recepcionar João Amazonas, principal dirigente de seu partido, o PCdoB, que retornava do exílio. Abraçou o velho camarada e seguiu para o ato público em sua homenagem, que ajudara a organizar. No carro, a caminho da festa, o coração rendeu-se. Arruda suportara torturas brutais em várias prisões, mas aquela emoção, prenunciando a derrocada da ditadura, foi a gota d’água[1].
Luiz Eduardo Soares é antropólogo, escritor, dramaturgo e professor de filosofia política da UERJ. Foi secretário nacional de segurança pública e coordena curso sobre segurança pública na Universidade Estácio de Sá. Seu livro mais recente é “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte” (Companhia das Letras, 2015).