Na política brasileira, liberais são anti-liberais
Entre as desditas brasileiras estão seus liberais. No Brasil, desgraçadamente, os liberais apoiaram a escravidão e a ditadura. Jamais compreenderam e abraçaram a matriz axiológica que formou a filosofia política com a qual, supostamente, identificam-se. Por isso, agem e pensam como falcões conservadores e autoritários. Em sua maioria, são contrários à legalização das drogas, abrem mão do respeito rigoroso aos direitos humanos, defendem a redução da idade de imputabilidade penal, aceitam atropelos das garantias individuais, subestimam a linguagem dos direitos, ridicularizam a linguagem politicamente correta, subestimam o racismo, a homofobia, a misoginia, as desigualdades de oportunidades com que a sociedade acolhe as crianças, condenando-as a repetir a sina subalterna dos pais. Não compreendem essas bandeiras progressistas cuja origem é liberal e burguesa, e remontam a 1789. De fato, os liberais brasileiros retiveram de sua tradição apenas o credo econômico, e mesmo assim o traíam quando lhes interessava a intervenção estatal, em seu benefício. Propagavam a livre iniciativa mas repudiavam o risco. No passado foi assim, e continua sendo. Ou seja, não há, salvo raras exceções, liberais no Brasil.
Qual é o partido liberal brasileiro, no sentido forte e pleno da palavra, capaz de postular equidade, compaixão e a agenda libertária, além das bandeiras estritamente econômicas? A fundação recente do Partido Novo pode constituir um ponto de inflexão histórico. Faço votos de que seja o caso, porque, mesmo não me identificando com seu ideário, caso venha a erguer a verdadeira agenda liberal em sua plenitude, e não apenas na esfera econômica, terá muito a contribuir para a consolidação da democracia no Brasil. Espero que seus militantes não sejam, como em gerações anteriores, yuppies ignorantes da história do pensamento político, neo-conservadores inconscientes de si.
Qual a implicação da ausência dos liberais em nosso país? A agenda libertária tem sido defendida, em boa parte, por partidos e segmentos neo-marxistas ou marxistas. Muito curioso. Marx escreveu contra os direitos humanos, que considerava mera expressão da ideologia burguesa. A tradição política marxista jamais identificou-se com as pautas libertárias e dos direitos humanos, na teoria, muito menos na prática. Há, portanto, aí, um lance de, digamos, oportunidade. Compreensível. Menos mal. Isso ajuda, é positivo, ainda que sempre haja o risco de que arrastem essas bandeiras para o gueto político. Entretanto, cabe a indagação: que futuro tem o compromisso desses atores com essa pauta? Qual a consistência histórica desse engajamento? Que implicações haverá para os movimentos libertários e dos direitos humanos?
Assim, entende-se a encrenca nacional. Os liberais são anti-liberais. Os marxistas os substituem e levantam suas bandeiras, provisoriamente. Os ativistas libertários estão, em certa medida, perdidos, sem bússola, transitando por mapas imaginários que não correspondem às cartografias político-ideológicas reais. Quem ganha com a confusão? Os conservadores de todas as estirpes.
Alguém poderia arguir que os direitos humanos têm várias gerações, as quais têm incorporado novas faixas de direitos, a começar pelos sociais, chegando aos relativos à sustentabilidade ambiental. O marxismo foi campeão das lutas por direitos sociais e econômicos. Entretanto, a pauta originária, que está na matriz e é fundamental, aquela que emerge como agenda política com a revolução burguesa na França, em 1789, foi, vale reiterar, duramente criticada por Marx e seus principais seguidores. A obra canônica a respeito é “A questão judaica”. Quem preferir ler os ataques aos direitos humanos escritos por marxistas contemporâneos, os achará, por exemplo, em Slavoj Zizeck. Entre os não marxistas, destacam-se as críticas de Deleuze. Há entrevistas disponíveis de Deleuze sobre o tema no youtube. A defesa do terror pode ser encontrada em Trotsky, entre outros; a defesa do stalinismo e derivações, em Sartre e Simone de Beuvoir, por exemplo. O repúdio do humanismo (e do neokantismo indissociável dos direitos humanos) está em toda parte, desde Foucault.
Os militantes dos direitos humanos precisamos conversar mais e em mais profundidade. Nossos encontros não podem continuar a ser apenas a proclamação auto-indulgente do que já sabemos.
Luiz Eduardo Soares é antropólogo, escritor, dramaturgo e professor de filosofia política da UERJ. Foi secretário nacional de segurança pública e coordena curso sobre segurança pública na Universidade Estácio de Sá. Seu livro mais recente é “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte” (Companhia das Letras, 2015). Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil