O que pode a linguagem?
José Padilha e Luiz Eduardo Soares
Um capitão do Bope, Batalhão de Operações Policiais Especiais da PM do Rio de Janeiro, depois de torturar por horas um adolescente pobre e negro, numa favela carioca, ante a resistência de sua vítima em delatar o parceiro do tráfico, apanha uma vassoura e determina a seu subordinado: “Zero-Seis, arreia as calças dele”.
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“Foi então que me ocorreu estreiar os Golfinhos de Miami. Fomos até uma caixa d´água. Retiramos dois fios da rede de iluminação pública. Mandamos o Juninho entrar na caixa e mergulhamos as pontas dos fios, uma em cada lado. Que beleza! Você precisava ver aquilo. Ele saltava com leveza e graça. Só faltava trilha sonora e um jogo de luzes”.
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Qual o horror maior, o maior assombro? As cenas descritas de um ponto de vista distante e crítico, interpretando suas condições de possibilidade histórico-culturais, ou na voz e pela perspectiva de quem incorporou tais condições, inconsciente de sua eficácia subliminar e ubíqua, inteiramente distante de qualquer sensibilidade crítica?
Optamos pelo horror maior. Tortura prescinde de adjetivos e meta-linguagem. Tortura é sinônimo de barbárie; seria absurdo explicar as razões pelas quais ela é o inverso de toda razão. A primeira cena está no filme Tropa de Elite; a segunda no livro, Elite da Tropa, que nasceram e cresceram obras distintas e autônomas, mas atravessadas por fontes, referências, intenções e estrutura narrativa comuns. E uma indagação compartilhada: como a sociedade constitui policiais capazes de torturar e de atribuir à selvageria um sentido, convertendo-a em performance funcional e em instrumento de trabalho passível de cálculo e distribuição metódica?
Seria extremamente simplificador reduzir a magnitude desse problema e sua complexidade a explicações de natureza individual, moral ou psicológica. Ainda que essas dimensões sejam relevantes, patologias e idiossincrasias, “desequilíbrios” e “desvios de caráter” não dariam conta da escala do fenômeno, nem de sua incessante reprodução. Sob 4 329 mortes provocadas por ações policiais nos últimos quatro anos, no estado do Rio, muitas das quais ocultando execuções, está em curso a afirmação repetida de um padrão institucionalizado, de uma cultura corporativa, de uma política. A maioria desses atos é praticada por indivíduos tão normais quanto podem ser, em média, cidadãos de nosso país: pais de família, estudantes universitários, religiosos, dotados do juízo mediano que caracteriza o senso comum. Aqueles que perpetram essa barbárie justificam seus atos recorrendo ao estoque de valores disponível em nossa cultura, adaptando o inominável às expectativas éticas que organizam os discursos correntes. Essa estranha e oblíqua operação naturaliza o abominável. O corpo do outro, desprovido de subjetividade e valor intrínseco, reduz-se a meio e objeto sobre o qual o poder se exerce.
Mas essa experiência tem de ser aceitável para seu protagonista, não só para a sociedade. É indispensável adaptá-la a uma visão de mundo que a justifique. Livro e filme buscam desvelar essa operação adaptativa e essa visão de mundo, focalizando-as a partir de seu interior e de seus mecanismos cotidianos, conduzindo leitor e espectador ao fundo mais sombrio de suas possibilidades emocionais e simbólicas.
Um personagem verossímil e capaz de ser o anfitrião nesse universo de trevas, vinganças e estratégias, tem de crer nesse mundo que criou (ou ao qual aderiu) para apaziguar suas angústias, no esforço desesperado e impotente de compatibilizar valores e práticas inconciliáveis. Esforço vão, mas, por isso mesmo, sempre reiniciado, de racionalizar, processar, elaborar o excessivo, o resíduo que escapa, o vestígio que não se encaixa. Alguém poderia acreditar que o personagem que crê em sua ilusão perversa seria poderoso a ponto de seduzir sua platéia, a despeito da crueza de seus atos mais violentos?
Desconstruir essa visão de mundo e os mecanismos micro-políticos que a tornam social e subjetivamente sustentável exige mais do que palavras críticas e conscientes. Requer a dramatização de seus impasses pelo atrito entre, de um lado, a opacidade impermeável dos valores que justificam a barbárie em nome da civilização, e, de outro, as imagens descentradas, incompletas, sujas, resistentes à unidade clássica que tudo integra, pacifica e harmoniza.
[1] José Padilha é diretor do filme Tropa de Elite e co-roteirista com Bráulio Mantovani e Rodrigo Pimentel. Luiz Eduardo Soares é professor da ESPM e da UERJ, secretário municipal de Valorização da Vida e Prevenção da Violência, de Nova Iguaçu (RJ), e co-autor do livro Elite da Tropa (ed.Objetiva), com André Batista e Rodrigo Pimentel.