O sopro do abismo e o assobio do teatro
Publicado 10/08/2023
Em homenagem à memória do querido e saudoso Aderbal Freire-Filho, que nos deixou em 9 de agosto, volto a publicar a resenha que escrevi, em novembro de 2006, sobre um de seus mais lindos espetáculos. Meu sentimento é de gratidão por tudo que nos deu.
Você já foi à Bulgária?
Aderbal Freire-Filho dirigiu um espetáculo primoroso e inesquecível, com atores notáveis e excelentes soluções na cenografia, nos figurinos, na sonoplastia e na iluminação: O Púcaro Búlgaro, que ainda pode ser visto no Teatro Poeira, em Botafogo, no Rio de Janeiro – pelo menos por mais algumas pouquíssimas semanas. A montagem põe em cena o romance homônimo de Campos de Carvalho, literalmente, digo, teatralmente, digo… Bem, é melhor explicar. Será possível? Acho que não. Melhor você conferir pessoalmente. Enquanto isso, algumas palavras à guisa de convite.
Quase abri o texto com a exclamação: “uma obra-prima”; e poderia tê-lo feito sem nenhum exagero, mas temi afastar os que temem a arte cabeça, cult, hermética e chatíssima. Não sendo nada disso, achei que não cabia arriscar. Aliás, confesso que me diverti, me deliciei, me lambuzei de tanto prazer e saí louco para voltar.
Ponhamos, entretanto, freio à expansão exaltada dos sentimentos. A fruição estética – como a loucura – requer método. Eis, então, o registro da ocorrência: trata-se de uma reincidência do projeto “romance-em-cena”, que o diretor concebeu e inaugurou, em 1990, com A mulher carioca aos 22 anos, de João de Minas. A segunda experiência deu-se em 2003, com O que diz Molero, de Dinis Machado.
A regra de ouro do procedimento que Aderbal ousou inventar e – mais! – praticar, parece simples: monta-se o romance “sem adaptação”. Diz-se-o todo, sem cortes. Ou melhor, faz-se-o todo. Mas aí está o enigma, o desafio: como se pode “fazer” um romance? Como convertê-lo em dramaturgia sem cirurgia, levando-o ao palco, aos outros, soprando-lhe vida tal qual é? (e o modificando, paradoxalmente, por respeitar sua integridade em dimensões que, por definição, lhe são estranhas, isto é, não são redutíveis à literatura?). Como seria possível pôr um romance de pé: a marchar, falar, dançar, colorir-se, iluminar-se, dando-lhe corpo e voz (a rigor, corpos e vozes), fazendo-o existir fora de si, além de seu domínio?
Deduz-se, portanto, que sob a aparência de uma redução de ambições e responsabilidades (“sem adaptação”) esconde-se uma ampliação de propósitos, que passam a envolver um esforço adaptativo extremo, no qual a própria possibilidade de adaptação é conduzida ao paroxismo e ao seu limite.
Quem não se lembra do conto “Pierre Ménard, autor do Quixote”, uma das joias de Borges? “Não queria compor outro Quixote – o que é fácil – mas o Quixote. Inútil acrescentar que nunca visionou qualquer transcrição mecânica do original; não se propunha a copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes”.
Já se vê que reescrever Quixote é missão essencialmente quixotesca e se cumpriria apenas se Ménard se deslocasse ao lugar do outro, Cervantes, recobrindo-o, superpondo-se a ele, convertendo a autoria em uma experiência permutável, subvertendo a própria noção de sujeito – singular e individual. Quais as modalidades possíveis da criação e da recriação? Qual a distância entre copiar ou transcrever e traduzir e interpretar, ou adaptar e recriar?
Adaptação é um jogo dramatúrgico, intervenção estética que ousa pôr em cotejo e comunicação, iluminando reciprocamente e aproximando, universos de significação, objetos incomensuráveis, culturas, mundos subjetivos singulares, indivíduos. Adaptação remete a interpretação e a tradução, que evocam categorias clássicas, como símbolo, representação e verossimilhança, cuja esfera de significação, por sua vez, recobre a enunciação de problemas permanentes para a arte e a ciência, a filosofia e a vida cotidiana – entre eles, aquele que poderia ser descrito como o estatuto do que seja real e do que seja verdadeiro.
Na fonte desse rosário de questões chave, encontram-se, portanto, os temas por excelência da literatura e do teatro: a palavra; a linguagem; a (in)comunicabilidade; o caráter inexoravelmente dramatúrgico da vida humana enquanto experiência de sentido, na medida em que sentido só há para o outro, com o outro, como outro; o paradoxo da unidade do sujeito que é outro para si mesmo e a estranheza da alteridade, que assinala nossa finitude.
Na fonte, está lá, assoviando à beira do abismo, o teatro de Aderbal, com sua aparente trivialidade.
Aderbal, com bom humor e uma postura franciscana, quase irônica diante da própria obra, mas plenamente consciente da magnitude do chamado a que submete sua vontade (vocação, parece a palavra mais apropriada), escreveu, no programa da peça: “O romance-em-cena é o jogo da ilusão no teatro levado ao paroxismo, verdade e mentira escancaradas simultaneamente, o eu e o outro declarados, o discurso em terceira pessoa e a ação em primeira pessoa. É ainda a comunhão carnal mais acabada do épico e do dramático, o tempo inteiro narrativo e o tempo inteiro dramático. Uma versão radical do sonho de alguns teóricos do século XX de convidar para a mesma mesa Aristóteles e Brecht. Para alcançar essa loucura impossível é preciso tomar umas providências triviais”.
As providências incluem dizer cada palavra. Tudo, no romance, é literatura. Mesmo o que, aparentemente, é apenas ferramenta de apoio. Os sinais, as indicações que orientam a leitura constituem parte da obra escrita. Quando o autor põe um travessão ou quando explica – “fulano disse” –, está intervindo tanto quanto ao narrar um movimento ou um sentimento de um personagem. Esses indicadores não são meros sinais de trânsito para dirigir o olhar. Servem para diferenciar o discurso confessional ou testemunhal, em primeira pessoa – que convoca os leitores para a intimidade de um espaço subjetivo –, do discurso em terceira pessoa, que descreve algo ou alguém – com objetividade? à distância? –, ou introduz a fala de alguém, cuja subjetividade não se desvelará por comunhão com os leitores, mas pela mediação de um relato externo. Há, aí, perspectivas distintas, que provocam a sensibilidade e solicitam a adesão dos leitores de modos diferentes, com finalidades e conseqüências diversas.
Quando os sinais para a leitura – enganosamente pendurados no romance como peças irrelevantes de um mobiliário supérfluo – são incorporados à trama dramatúrgica, as passagens, as metamorfoses se tornam visíveis e se integram ao universo dos acontecimentos significativos. Ou seja, ganham tanta vida quanto os gestos, os movimentos físicos, o conteúdo das falas, etc. E o repertório se enriquece com um novo vocabulário dramático.
Elias Canetti, em 1929, em Viena depois de uma temporada em Berlim, percebeu que:
“…o mundo não podia mais ser representado como nos romances antigos, do ponto de vista de um escritor, por assim dizer: o mundo estava fragmentado, e só a coragem de mostrá-lo em sua fragmentação tornaria ainda possível uma verdadeira representação dele”. Mas isso “…não significa, todavia, que seria necessário lançar-se a escrever um livro caótico, no qual nada mais pudesse ser entendido; pelo contrário, era preciso inventar, de maneira consequente e com o máximo rigor, indivíduos extremos, tais como aqueles de que já era mesmo constituído o mundo, e colocar tais indivíduos – levados às últimas consequências lado a lado, em toda a sua diversidade” (1990, p. 247).
Segundo Canetti, essa invenção seria possível graças à metamorfose, movimento próprio aos poetas, aos criadores:
“Há em sua natureza um processo misterioso e ainda muito pouco investigado, que constitui a única e verdadeira via de acesso ao outro ser humano. Tentou-se de diversas formas dar um nome a esse processo; fala-se ora em intuição, ora em empatia; de minha parte prefiro a palavra mais exigente: ‘metamorfose’. Contudo, qualquer que seja o nome que se lhe empreste, dificilmente alguém ousará duvidar de que se trata de algo real e muito precioso. Vejo, assim, no seu exercício constante, em sua necessidade premente de vivenciar seres humanos de toda espécie, mas especialmente aqueles que são menos considerados, na prática desse exercício, irrequieta, não atrofiada ou tolhida por sistema algum, o verdadeiro ofício do poeta” (idem, p. 282).
Um mundo refratário à unidade sintética de um conceito, uma voz, um juízo, uma razão soberana, uma história, uma ideologia; realidade que se prenunciava em Berlim, nas primeiras décadas do século XX, e que é a nossa, ainda, e mais radicalmente. Mundo que requer, para representar-se, a multiplicidade de perspectivas e a polifonia de sensibilidades. Mundo de diferenças, irredutível a personagens-síntese mutuamente permutáveis (intercambiáveis porque não passariam de expressões variadas do mesmo). Mundo, portanto, que exige mais de seus poetas – e mais poetas. E no qual a metamorfose talvez se converta na virtude por excelência.
Poetas, escritores, mas sobretudo o teatro, sobretudo os atores vivenciam a metamorfose – até mesmo por ofício, esses últimos.
Romance-em-cena talvez seja, antes de tudo, a dramaturgia da metamorfose, porque destaca as passagens entre as vozes – a primeira e a terceira pessoas – e as mudanças de personagens entre os atores.
Durante décadas, o teatro politicamente correto era aquele que promovia o desmascaramento da representação, para que o efeito de verossimilhança não duplicasse outras ilusões. Era preciso, ensinou-nos Brecht – na contramão de Aristóteles, que destacava o vigor da catarse e, portanto, da identidade proporcionada pela mímese –, desmascarar a representação e revelar os mecanismos de produção do efeito mimético: sob o cenário, os bastidores; a face sob a máscara. Impunha-se trazer à luz e derramar sobre a consciência das plateias a natureza artificial e construída do espetáculo. Esse método ostensivamente antinaturalista precipitaria o espírito crítico que, logo, logo, descobriria as contradições do capital e a luta de classes sob o fetiche da mercadoria.
O teatro de Aderbal Freire-Filho vai além e muito mais fundo. Não desmascara (Canetti foi um crítico duro e arguto do que chamava “a paranoia do desmascaramento”, contraface, aliás, da onisciência de quem desmascara, porque fazê-lo implica conhecer a verdadeira realidade). Não traz à cena o bastidor. Não mostra a face sob a máscara. Focaliza, sim, a travessia dos atores pelos personagens, aguçando nossa sensibilidade para a aventura extrema das mutações (descentramento, compaixão, relativização autocrítica e empatia) que conduzem um sujeito ao lugar de outro (não é esse o movimento elementar do sentimento moral?) – este lugar existe, tem um corpo, é uma singularidade irredutível, implica emoções, uma vivência, visões de mundo, dicções, estilos, uma sensibilidade, memória e expectativas. Nesse trânsito, o outro, mesmo extremo – ridículo, curiosíssimo, perverso, doido de pedra, genial, virtuose –, é único e, ao mesmo tempo, permeável, poroso, tangível, próximo, irmão – porque frequentável por um poeta, um ator, minha imaginação, minha disposição empática, por mim – por que não?
***
O romance de Campos de Carvalho é um achado, não só por ser uma obra magnífica, mas também porque tematiza um dilema arquetípico: a epopeia da viagem – a vida como viagem, como epopeia. A referência mitológica é a Odisseia, poema atribuído a Homero, onde se narram infortúnios e virtudes de Ulisses, que sofre mas vence tormentas e monstros para retornar à sua casa e reencontrar Penélope, tecendo, à sua espera. A unidade fraturada é reconstituída, depois das aventuras mundo afora, nas quais as faces extremas do desconhecido se manifestam.
A Odisseia do Púcaro literário e teatral é outra. A pergunta que consome as energias de nossos personagens é outra: existe mesmo, afinal, a Bulgária? Não havendo Bulgária, haveria búlgaros? Em havendo, onde fica e o que é, o que seria? Será aqui, estará abaixo de nós, dentro de nós, a Bulgária? O mundo da Odisseia reduz-se à casa do personagem-narrador; à arena de Aderbal. Transfere-se para a geografia doméstica do mundo burguês a epopeia cosmológica de Homero, matriz da dialética civilizacional e das cosmogonias religiosas. No drama burguês, a História clássica que integrava o divino e o humano – a beleza, a verdade e a virtude –, resume-se à história ou relativiza-se na multiplicidade das histórias, restritas ao espaço (demasiadamente) humano, social e cultural, onde não mais impera a unidade.
Nosso anti-herói não sai de casa. A longa jornada é um projeto adiado. A viagem é imaginária (uma simulação teatral de uma espécie paradoxal de road-movie introspectivo e solipsista). É o tempo que passa – ante espaço e corpos quase em repouso; tempo contado, no diário que se escreve e lê, em cena, à maneira trôpega de uma respiração irregular, ao sabor de pulsações nas quais se chocam o ritmo sincopado de João Gilberto (aqui e agora; o Brasil em raízes; o contexto reconhecido e explicitado) e os estampidos frenéticos de pêndulos-gongos assimétricos (a temporalidade atemporal do demiurgo dramaturgo).
As navegações postergadas empurram para fora do centro (da cena) a descoberta do território procurado (a Bulgária) e da verdade investigada (existe? Há búlgaros?). E o vazio vem ocupar o centro, reenviando o olhar da plateia, como espelho, de volta para si mesmo, para si mesma – o que funciona à perfeição no palco arena, circundado pelos espectadores.
Ulisses não retorna a Ítaca porque não saiu de sua ilha. Mesmo imóvel, seu mundo caiu de joelhos ante a interrogação que o atormenta. Trouxe de uma visita a museus nova-iorquinos a dúvida fundamental, que reúne Shakespeare e Descartes sob o sol da província: se um púcaro búlgaro está exposto na coleção do Museu da metrópole, haveria Bulgária? Isso valeria como prova inconteste? A capital do império vale como a matriz que chancela a verdade última da geografia mundial? O Museu de Nova York é depositário da história global e fonte indubitável da verdade sobre a distribuição dos territórios do planeta entre nomes, identidades, poderes e culturas?
O sol da pátria tupiniquim derrete certezas e autoridades, corrói a matéria intangível do poder, embrulha a linguagem científica na inteligência indomável da sofisticadíssima retórica selvagem. Tanto que até mesmo a ousada psicanálise vienense é surpreendida e submerge, no fluxo torrencial da associação livre que ela própria autorizara. Curiosamente, o paciente – que é nosso personagem-narrador desloca a técnica analítica e dá um nó no terapeuta, porque, em seu discurso engraçadíssimo, o sujeito são as palavras, palavras que puxam palavras e comandam a fala, promovendo a autonomia da linguagem e a neutralização da autoria (autoridade), que perde unidade e profundidade psicológica. Quem governa é a rima, não a verdade da alma. Quem manda é a superfície sonora, não o inconsciente. Quem dirige é a música da palavra, não a lógica oculta do sujeito. Dada? Surrealismo? Tropicalismo? O personagem daria uma gargalhada e mandaria as classificações aos museus e às favas.
Depois da viagem aos Estados Unidos – e assim começa a peça –, divorciou-se e recolheu-se à solidão da Gávea. Um ermitão pequeno-burguês que lê classificados, escreve um diário e cobiça a empregada.
A utopia desloca-se. Bulgária é o não lugar, terra da fantasia, alvo da esperança, que dita o destino da trupe arregimentada pelo narrador para encontrá-la, numa expedição arriscadíssima. Os mapas dos destinos épicos traduzem-se nas cartas de outros jogos. As grandes conquistas evocadas na dicção quinhentista do professor –
extraordinário personagem que compartilha sua solidão com o narrador –, glórias imperiais que deram origem ao mundo moderno, são refratadas por lunetas lunáticas da Gávea: aqui, nos trópicos, na periferia do capitalismo, a aura aristocrática de belas artes e ciências desanda, na feijoada cáustica de nossa banheira. Aqui, as grandes navegações, conquistas e utopias circundam a sala e, no máximo, se espicham até o quarto da empregada. O outro monstruoso das teogonias gregas, o deus homérico vira lata na esquina, vira fulano, beltrano, vizinho, vizinha, o corpo cobiçado à distância, ao alcance da luneta. A observação astronômica converte-se em voyeurismo pedófilo. A maior escapada é um tour a Copacabana.
Não se vai muito longe, girando em torno do umbigo, em circunvoluções narcísicas. Cruzam-se algumas rotas desgarradas de solitários anônimos – e é só. Mas isso tudo, que soa tão cruel – e é –, pode ser divertidíssimo e extraordinariamente estimulante, sobretudo quando rir de nós mesmos aponta para o mundo – o mundo fora do cativeiro narcisista da imaginação solitária – e nos convoca a sair da sala e entrar em cena.
Ficha Técnica do espetáculo:
Texto: Campos de Carvalho
Direção: Aderbal Freire-Filho
Elenco: Raquel Iantas, Augusto Madeira, Cândido Damm, Gillray Coutinho e Isio Ghelman
Figurinos: Biza Vianna
Iluminação: Maneco Quinderé
Música: Tato Taborda
Adereços: José Maçaira e Luiz Amadi
Referências bibliográficas:
Borges, Jorge Luis. Ficções. Porto Alegre: Globo, 1970.
Canetti, Elias. A Consciência das palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.