Pensando alto sobre Justiça
Entrevista – 07/12/2011
Pensando alto sobre Justiça
Entrevista concedida a Thiago Ansel, do Site Observatório de Favelas (observatoriodefavelas.org.br)
Autor de livros como Meu Casaco de General e co-autor de Elite da Tropa 1 e 2 e Cabeça de Porco, o antropólogo e ex-secretário de segurança do Rio trata agora dos efeitos negativos das noções dominantes de justiça para a sociedade. Soares teve especial cuidado em não cair na linguagem hermética dos especialistas, lançando mão de diversos exemplos práticos. Sua nítida intenção foi modificar o senso comum e o cacoete emocional — como chama — segundo os quais atos de violência podem e devem receber como resposta mais violência.
Soares, apesar de propor um diálogo generoso e franco com todos os públicos, evita receituários sobre qual seria o papel dos intelectuais na atualidade. O antropólogo sugere que as conseqüências e produtos do pensar não podem ser calculados com base em noções fixas (e clássicas) de engajamento. Ele afirma ainda permanecer insatisfeito e pronto a experimentar novas formas de pensar e se comunicar para aprimorar sua contribuição para um mundo mais justo.
Notícias & Análises: Justiça é um livro obstinado em explicar como as formas mais comuns de se lidar com violência, crime e castigo, na verdade, acabam por desencadear conseqüências extremamente nocivas para sociedade. Na discussão, além de argumentar, você contrapõe uma série de teses já postas. A impressão que se tem é que existe uma angústia grande por trás do livro. Existe? Se sim, de onde ela surge? Se não, o que o motivou a escrever Justiça?
Luiz Eduardo Soares: Não sei se a palavra certa seria angústia. Talvez seja. De todo modo, o sentimento corresponde a um espectro que vai da indignação de quem observa tantas injustiças, tantos absurdos e tanta resignação, tanto imobilismo, tanto preconceito, até a prostração de quem vê a velhice chegando e está esgotado, e percebe que o tempo e a energia necessários para prosseguir são maiores do que as próprias forças. Mas como enquanto há vida eu creio que haja esperança, vou continuar escrevendo, falando e andando por aí, tentando ajudar a mudar as condições iníquas da justiça criminal e da segurança pública, entre outras. O livro foi escrito em linguagem simples, acessível a todos, porque os temas são de todos, são de grande interesse público e não podem permanecer enclausurados no vocabulário técnico dos especialistas. Por outro lado, minha intenção era escrever de maneira bem simples e compreensível até mesmo para adolescentes, mas sem perder a complexidade da matéria e sem deixar de trazer questões e argumentos que os especialistas também considerassem importantes. Assim, o livro seria destinado a todos e teria de ser discutido no bar, na escola e na pós-graduação. Será que consegui realizar tamanha façanha? Não sei. Pelo menos, tentei. Por isso, esse foi o livro mais difícil de escrever. Fiquei cinco anos trabalhando nele. Os leitores é que dirão se tive êxito ou não.
N&A: Você diz com diferentes argumentos que “prisão não faz bem a ninguém”. Essa não seria uma afirmação radical para uma obra que abertamente visa dialogar com e modificar o senso comum? Ou seja, que estratégias você adotou para que o público mais conservador não acabasse achando que você estava “delirando” quando falava de propostas mais progressistas?
L.E.S: Pois é. Ótima pergunta. Pergunta que eu também me fiz o tempo todo. O que digo é bastante realista e pragmaticamente razoável: (1) Privação de liberdade, isto é, prisão não faz bem a ninguém e não melhora ninguém. Portanto, paremos com a conversa fiada da tal “ressocialização”, “reeducação” ou “recuperação”. A prisão é uma violência que funciona como retribuição ou vingança por alguma outra violência cometida. Trata-se de uma instituição que um dia, no futuro, será vista (espero) com o mesmo horror com que hoje contemplamos as punições que eram aplicadas aos condenados até o século XVIII, na Europa: torturas, suplícios, espetáculos públicos de humilhação e destruição física. O fato de que as prisões sejam menos más do que aqueles rituais medonhos do passado não as tornam obras civilizadas, correspondentes ao fim da história, relativamente às quais nada haveria a fazer, nada haveria a mudar. (2) Entretanto, apesar de ser uma instituição bárbara, a prisão ainda é necessária e o será enquanto não inventarmos uma solução melhor para afastar do convívio social aquelas pessoas que praticaram atos violentos e que ameaçam os direitos e a integridade dos outros. (3) Portanto, teremos de conviver com a prisão durante algum tempo, ainda, o que nos leva à conclusão de que temos de agir para reduzir os danos que ele produz (como propõe Miriam Guindani, em suas análises sobre a situação prisional), melhorando as condições de vida que ela oferece aos presos. (4) Além disso, alcançamos também a conclusão de que ela só deveria ser utilizada em último caso, quando não fosse viável qualquer outra solução. Ou seja, ela não deveria ser usada para os condenados por crimes que não envolveram violência.
N&A: Em diversos momentos do livro você reitera a idéia de que “Uma história muda de sentido, dependendo do ponto a partir do qual se comece a contá-la”. Parece que sua proposta é começar a narrar começando de outros pontos de partida, para convencer o leitor de que a concepção hegemônica de justiça é, na verdade, prejudicial à sociedade. De outro lado, pouca atenção é dada aos interessados, por exemplo, em difundir a idéia de que justiça significa concentrar a responsabilidade apenas no indivíduo. Isto é, se existe gente desinformada sobre onde as histórias começam, também há interessados em contá-las pela metade. Você deu pouca atenção a estes últimos em Justiça? Por quê?
L.E.S: Você diz que eu dei pouca atenção aos interessados em difundir a ideia de que justiça significa concentrar a responsabilidade apenas no indivíduo. Não é assim que vejo o livro. Ele é da primeira à última página uma conversa com todos os leitores, inclusive com quem acredita que a justiça deva se concentrar exclusivamente na responsabilidade individual. Mas é claro que o pressuposto é que os leitores e as leitoras se disponham a ouvir outras vozes, ler outros pontos de vista, e não se neguem a rever, criticamente, suas próprias concepções, desnaturalizando-as, desde que os argumentos apresentados sejam consistentes. Esse é o jogo aberto e respeitoso que um livro franco e honesto deve jogar com os leitores.
N&A: Você diz que “O cárcere é, acima de tudo, uma prisão sintática, que acorrenta um sujeito a um verbo”. Quais as conseqüências disso tanto para o indivíduo, quanto para a sociedade?
L.E.S: Um cidadão que comete um ato considerado criminoso pela sociedade da qual participa foi criminoso naquele momento, enquanto autor daquela ação, e deve responder por isso, assumindo responsabilidades e reparando, na medida do possível, o dano provocado. Mas isso não significa que o cidadão em questão “seja” criminoso –isto é, seja essencialmente isso e nada mais do que isso, ou que a qualidade abjeta daquele ato criminoso contagie inteiramente o ser desse homem, transmita-se a ele como sua qualidade única e permanente, aquela que traduz o que ele verdadeiramente é.
Uma coisa, portanto, é ter perpetrado o ato e responsabilizar-se diante da sociedade e da vítima pelos danos causados, que podem ser permanentes e irreversíveis. Outra coisa é essa pessoa que agiu de modo criminoso carregar para sempre um estigma — ser O criminoso — e ver fechadas e negadas todas as possibilidades alternativas e novas de ser que traz consigo. Pois a prisão, pelo que significa e pela realidade material que constitui, encerra o autor do ato criminoso nesse ato, suprimindo o tempo (ele não fez, ele é), e anula todas as demais dimensões que um ser humano necessariamente porta consigo, enquanto potência de vida, criação, transformação.
O livro analisa como isso se dá, quais os seus pressupostos e quais as suas consequências para os presos e a sociedade. Uma conclusão impõe-se: esse tipo de aprisionamento do ser em um ato, que vem junto com a prisão de uma pessoa em uma instituição total, não contribui para mudança alguma, mas, ao contrário, pressiona no sentido da repetição.
N&A: “O lícito e o ilícito se interpenetram e se conectam”. Essa é uma conclusão ou pressuposto que tem implicações sérias para qualquer reflexão sobre crime e castigo, culpas individuais e coletivas. Poderia explicar o que quer dizer com isso?
L.E.S: Dou muitos exemplos, em planos individuais e coletivos, micro e macro. Vou citar apenas quatro casos ilustrativos:
(1) uma nação que estabelece determinados parâmetros legais pode proibir e definir como crime a usurpação ou o roubo de terras e objetos alheios e, ao mesmo tempo e paradoxalmente, pode ter sido criada pela conquista violenta de territórios historicamente pertencentes a outros povos.
(2) Outro exemplo: até que ponto pode haver plena certeza de que o dinheiro pago ao advogado por um réu condenado por corrupção não se misturou, mesmo indiretamente, em algum momento, àquele obtido de forma ilegal?
(3) Digamos que uma comunidade tenha sido submetida durante décadas à tirania de um grupo criminoso armado, por ter sido abandonada
pelo Estado, cujo dever é garantir a todos o respeito a seus direitos, a começar pela segurança. Se o Estado, finalmente, agir para mudar essa realidade e passar a garantir os direitos antes violados (implantando uma UPP, por exemplo), essa comunidade deveria ser obrigada, de imediato, a pagar seus impostos e legalizar todas as suas atividades, sem que fosse calculada a dívida da qual é credora, diante do Estado, pelas décadas em que foi prejudicada? A comunidade deve pagar impostos, mas o Estado não deve pagar sua dívida? Não há sequer o reconhecimento dessa dívida? Ignorar essa dívida não empurraria o Estado para o lado da ilegalidade, em algum nível?
(4) O governo paga mal aos policiais, que são induzidos a complementar sua renda com um segundo emprego na segurança privada. Esse tipo de bico é ilegal, mas as autoridades fingem que não enxergam para evitar que os policiais reivindiquem aumento salarial, o que provocaria o colapso do orçamento público. Instaura-se, assim, o que eu chamo “gato orçamentário”: a atividade informal e ilegal do policial na segurança privada financia o orçamento da segurança pública. A programada omissão oficial cria uma proteção, uma espécie de véu que cobre todo um mundo de práticas ilegais. Algumas são benignas, bem intencionadas: são os policiais honrados, trabalhadores honestos, que se esforçam por oferecer condições mais dignas a suas famílias, ainda que cometendo uma ilegalidade.
Outras são práticas não apenas ilegais como também malignas: policiais que provocam insegurança para vender segurança, os que matam a soldo, como pistoleiros, e os milicianos. As milícias são filhas bastardas da omissão oficial ante a ilegalidade do segundo emprego na segurança privada. E tudo isso tem como causa inicial o gato orçamentário, esta conexão entre o legal e o ilegal no coração do Estado e do sistema de segurança pública.
N&A: Uma característica que chama a atenção em muitas das páginas de Justiça, é sua vontade de convencer os leitores a pôr em perspectiva suas próprias noções do que seria “o justo”. Em vários trechos, ao citar delitos leves e nem tão leves como exemplos, você busca claramente mostrar como a sociedade ganharia, se tirasse um pouco os olhos apenas da responsabilidade individual e assumisse também a sua parcela de responsabilidade pelas condutas criminosas. O que obscurece a visão a ponto de fazer com que parcela significativa da população reivindique leis e penas mais duras, por exemplo?
L.E.S: A vingança costuma ser o ponto de convergência padrão, quando um ato de violência provoca a emoção e o pensamento. A associação de ideias tende a seguir a lógica da retribuição: o mal se paga com o mal. Este é o hábito mental assimilado e reproduzido, automaticamente.
As emoções suscitadas por um ato chocante fluem rumo à devolução do ato agressivo a seu autor. Por isso, é muito natural reagir à violência com ideias e ações que reproduzem, em alguma medida, a selvageria do ato violento, sob a forma de resposta ou punição. A justiça criminal retributiva, no fundo, suspendendo-se toda a sofisticada racionalização, corresponde à institucionalização da vingança. Penas mais longas e severas, no limite a prisão perpétua, a pena de morte ou até mesmo linchamento aparecem no imaginário coletivo como respostas, repito, “naturais”, “imediatas”, “automáticas”, porque expressam um hábito mental, que é também um cacoete emocional e um engate psicológico.
Trabalhar na contra-mão desse pensamento/emoção é difícil. Em compensação, não estou sozinho. Muitos têm buscado o caminho inusual, diferente, desafinado. E essa tribo contrária à vingança encontra apoio, motivação ética, orientação e inspiração em tradições culturais que são muito caras a nossa sociedade e que se inscrevem em diferentes tradições religiosas. Esse patrimônio cultural riquíssimo nos oferece possibilidades diversas e contraditórias, mas, entre elas, florescem ideias/emoções formidáveis e surpreendentes, subversivas e de dificílima aceitação e compreensão, como o perdão.
O padre colombiano Leonel Narvaez dizia: “contra a irracionalidade da violência, a irracionalidade do perdão”. Claro que não estou propondo o perdão como política pública ou como norma geral. A universalização do perdão lhe retira o sentido e o torna inviável. Entretanto, para pensar uma nova forma de organizar a justiça e de entendê-la, o perdão pode funcionar como um bom antídoto ao veneno da vingança. Em resumo, o que proponho é uma justiça mais voltada para o futuro do que para o passado — sem negá-lo –, capaz de praticar a corresponsabilização e menos preocupada em punir do que em mudar as condições que estimulam a existência ou a reprodução dos fenômenos ou atos que desejamos evitar.
N&A: Qual o papel do intelectual engajado, num mundo onde a cultura letrada perdeu tanto espaço para a audiovisual e, mais recentemente, para a cultura digital?
L.E.S: Não gosto de cartilhas, regras gerais e indicações autoritárias. Só alguém que se sinta onipotente, onisciente, ou que seja muito arrogante é que diria qual o papel do intelectual engajado. Para começar, não sei bem como definir o intelectual, muito menos o adjetivo engajado. Isso é muito discutível e ganha sentidos extremamente diferentes, em distintos contextos, para as trajetórias individuais que são sempre singulares.
Colocar todo um grupo numa gaveta, debaixo de um rótulo, anula o que há de vivo em cada um e nas diferenças. Por exemplo: uma poeta solitária e distante da palpitação do cotidiano político pode produzir uma obra que nos faça ver, entender, relacionarmo-nos com o mundo, com os outros, conosco mesmos de maneira surpreendente e revolucionária para os padrões internalizados. Isso pode provocar o desenvolvimento de uma acuidade crítica em seus leitores que os conduza à desnaturalização, ao questionamento das crenças redundantes, fáceis, pontuadas por slogans vazios. O resultado pode desempenhar um papel político de grande importância, a médio prazo, alterando relevantes códigos culturais.
Outro exemplo: o movimento hippie. Nos anos 1960 e 70, muitos militantes políticos desprezavam o movimento hippie como simples alienação pequeno-burguesa. Hoje, podemos dizer que, em certo sentido, muitos engajados foram muito mais alienados do que os hippies, cujas contribuições críticas se mostraram muito importantes para o processo político, entendido em sentido amplo.
O movimento das mulheres foi desprezado durante décadas, assim como o movimento negro, porque eram vistos como divisionistas do único movimento político consistente e consequente, que seria o movimento da classe operária pela revolução socialista. Hoje, contemplando os horrores do stalinismo e das outras faces violentas, homofóbias, misógenas e autoritárias do chamado socialismo real, concluímos que as mulheres e os negros eram mais conscientes e consequentes. E hoje também nos damos conta de que esses critérios (do engajamento e do que seria o caminho certo para os intelectuais) atrapalham mais do que ajudam. Tenho o meu caminho. E neste, as linguagens todas são bem vindas: letrada, conceitual, digital, audiovisual, oral, poética, teatral, dramatúrgica, estética, ficcional. Permaneço insatisfeito e experimentando, buscando novas formas de pensar e me comunicar para aprimorar minha modesta contribuição ao esforço coletivo –de tanta gente diferente– por um país e um planeta um pouco menos injusto, violento, anti-democrático, racista, preconceituoso e hipócrita.