Porões, polícias e política
Entrevista a Flavia Tavares, postada na Newsletter do Canal Meio.
Edição de Sábado: Porões, polícias e política
Por Flávia Tavares
Quatro semanas atrás, a Edição de Sábado trazia o depoimento de Diego Aguiar, morador da favela de Jacarezinho, que havia testemunhado o assassinato, por um policial militar, de Jonatan Ribeiro de Almeida. Ele lamentava que a tragédia tivesse acontecido às vésperas do aniversário de um ano da operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, com 28 mortos, ali mesmo em sua comunidade. Pois a semana que passou tornou inescapável que o Meio voltasse ao tema. Na terça-feira, nova operação, dessa vez na Vila Cruzeiro, deixou 23 vítimas. No dia seguinte, as imagens de Genivaldo de Jesus dos Santos, 38 anos, contido no camburão onde seria asfixiado com gás lacrimogêneo, em Sergipe, redefiniram a noção de barbárie policial.
De horror.
O Brasil convive com a brutalidade das polícias com uma complacência assombrosa. Soluços de avanços nunca foram capazes de interromper o ciclo hediondo, que é complementado pelo extermínio anual de 50 mil brasileiros por homicídio, em sua esmagadora maioria jovens negros e pardos. Mas seguimos apáticos. E há tempos. Decifrar a anatomia desse estado letárgico não é tarefa banal. “No processo de transição após a ditadura”, explica Luiz Eduardo Soares, “os egressos do regime militar tiveram influência suficiente para limitar alguns avanços. É como se nos dissessem: ‘Brinquem de democracia, mas aqui ninguém toca’.” O ‘aqui’ é a estrutura das Forças Armadas e a política de segurança pública. A Constituição prevê direitos, dita ritos, que as polícias simplesmente ignoram e o poder civil nunca foi capaz de impor.
Na hora de encarar este tema, poucos intelectuais condensam em suas formações tanto quanto Soares. Literatura, antropologia, ciência política e filosofia política. Não só. Levou suas ideias à prática ao ser coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio, entre 1999 e 2000; secretário nacional de Segurança Pública, em 2003; e secretário municipal de valorização da vida e prevenção da violência de Nova Iguaçu entre 2007 e 2009. Entre seus vinte livros está o mais recente, Dentro da Noite Feroz (Boitempo), em que faz uma análise sobre o bolsonarismo e suas correlações com o fascismo e o integralismo.
Por ‘este tema’, bom lembrar, está não apenas a barbárie policial. Está, também, o grupo político que hoje ocupa a presidência da República. A base da sociedade que o apoia. Um emaranhado tal de causas e consequências que, sem alguma densidade, não é possível mapear. “A visão predominante nas polícias é a de que elas são um inseticida social”, diz Soares, recorrendo à definição de um antigo comandante da própria PM do Rio para dissecar o que está por trás da violência policial no país. Mas ele vai além e desenha como a antipolítica e a aspiração do que alguns imaginam ser meritocracia contribuem para que a sociedade siga impassível diante do caos, e como a noção de “cidadão de bem” alimenta essa cultura de morte.
Acompanhe os principais trechos da entrevista.
Acabamos de assistir a uma operação policial no Rio e a um assassinato em Sergipe e, novamente, estamos passivos enquanto sociedade. Além da violência policial, os jovens negros são as principais vítimas de homicídio no país a taxas próximas de 50 mil por ano. Por que a morte de negros e pardos de periferia não nos comove?
A resposta já está embutida na pergunta. São negros de periferia. Quando temos um caso atingindo alguém na classe média, num bairro afluente, isso se converte em manchetes seguidas, justificadamente. Só que isso deveria ser universalizado, a empatia deveria ser democraticamente distribuída. Isso é sintoma de um país profundamente racista e marcado por desigualdades estruturais que estão naturalizadas. Além disso, há a permanência no tempo que acaba ensejando uma naturalização e vice-versa, a naturalização acaba viabilizando a reprodução ilimitada dessas mesmas dinâmicas. Em 2013, houve uma exceção, o caso Amarildo. Aquelas manifestações não nasceram contra a violência policial originalmente, mas a repressão policial, inicialmente em São Paulo, acabou estimulando respostas naquele ciclo de protestos.
A esquerda, em tese mais sintonizada com essas demandas, esteve no poder e não conseguiu interromper o ciclo. Por quê?
Essa pergunta se tornou pra mim um grande enigma. Por que a a sociedade brasileira não enfrenta essa questão, do extermínio de jovens negros, já que outras instâncias estavam sendo enfrentadas? Até meados da segunda década, o Brasil estava ao menos buscando encarar alguns desafios históricos, como a fome, a miséria, a desigualdade. Aconteceu a efervescência dos movimentos feministas, os movimentos negros se fortaleciam com a chegada de negros à universidade por meio das políticas afirmativas. As políticas de Gilberto Gil no Ministério da Cultura provocaram também uma expansão de consciência crítica nas periferias, que se transformaram em centros produtores, com tantas iniciativas de hip hop, grafite, rap, o passinho e o movimento funk. Esse fortalecimento da autoestima dos moradores das regiões periféricas e vulneráveis levou a um questionamento intelectual sobre a própria ideia de carência como marca decisiva da favelas. Nesse contexto, como naturalizamos essa tragédia dos 50 mil homicídios por ano? E como é possível que as esquerdas tenham também participado dessa natureza a despeito de seus esforços críticos? Os grupos de esquerda e os partidos durante muitos anos foram veementes nas críticas e denúncias. Pensadores e pesquisadores que se filiavam sobretudo a essa linhagem, como eu mesmo, sempre tentamos sugerir alternativas. Mesmo profissionais das polícias apresentaram sugestões. Mas nunca chegamos organicamente, como uma entidade, como instituições, a propor alternativas realistas, factíveis, informadas para o problema.
O senhor chegou a alguma resposta?
Nós tivemos, na transição pós-ditadura, uma negociação ampla. Foi um momento de imensa esperança, de aposta na redemocratização. No processo de transição, os egressos do regime militar, embora não dispusessem da força necessária para impor agendas, exerciam influência suficiente para limitar alguns avanços. Aquele momento ainda muito marcado pela presença dos protagonistas da ditadura acabou deixando sua marca na Constituição de 1988. Em especial, nos artigos 142 e 144, que aludem às Forças Armadas e à segurança pública. É como se representantes da ditadura nos dissessem: “Brinquem de democracia, mas aqui ninguém toca.” Eles lograram circunscrever um espaço e blindá-lo completamente, tornando-o impermeável a mudanças. Dificilmente teríamos a reemergência agora do fascismo, o mais despudorado, se tivéssemos tido justiça de transição. Não necessariamente punindo torturadores e assassinos. Mas necessariamente explicitando os fatos e celebrando uma espécie de pacto em torno do que seria a verdade histórica. Os militares conseguiram efetivamente congelar essas áreas institucionais. No caso da segurança pública, isso se deu preservando estruturas organizacionais forjadas ao longo da ditadura, sobretudo a partir de 1967, 1968. A ditadura não inventou a violência policial, o viés racista na ação policial. Isso faz parte da história do Brasil. Mas é inegável que no período ditatorial todo o pior da nossa herança escravista se acentuou e se qualificou, inclusive com cursos de tortura. Isso acabou sedimentando e sancionando uma cultura que fazia parte da história das instituições policiais brasileiras, já marcada pelo racismo.
Como essa preservação de estruturas acontece?
A preservação das estruturas organizacionais não são apenas organogramas. Com elas, vieram homens e mulheres, sobretudo homens, sentimentos, emoções, valores, crenças, formas próprias de construção de identidade, antagonismos, definição de lealdades, suas visões de mundo profundamente marcadas por essa tradição, por essa formação. E veio uma definição para eles muito persuasiva de seu dever. Sua missão não estaria, portanto, determinada pela Constituição de 1988, mas por essa cultura corporativa herdada. O que eles pensam, em geral? Veja, nós estamos falando de centenas de milhares de pessoas, é preciso ter cuidado pra evitar generalizações. Mas o que foi predominante? Indiscutivelmente foi a visão sintetizada por um coronel no Rio de Janeiro há uns dez anos. Ele dizia que a polícia, particularmente a militar, é um inseticida social. Eles dizem: “nossa missão é defender os homens de bem.” Isso passa ao largo da questão da legalidade. O que são homens de bem? É uma construção cultural e ideológica, associada a todo um regime de emoções, de afetos e valores. E aí nós temos um combo que incorpora preconceitos, concepções e práticas.
Que concepções são essas?
Estamos falando dos estigmas contra o povo negro, particularmente o jovem negro, e a ideia de que o outro, o suspeito é o inimigo. Isso está muito ligado também à cultura militar. O inimigo deve ser exterminado — extrajudicialmente, porque se trata de uma guerra em defesa do bem contra o mal. Estamos nos aproximando, então, de um código de valores que nada tem a ver com democracia, Estado de Direito, legalidade constitucional. Tivemos o verdadeiro genocídio de jovens negros e pobres nesse contexto. Eu uso essa expressão desde a passagem dos anos 1980 para os anos 1990, porque são dezenas de milhares de mortes que têm as mesmas características ao longo dos anos, um padrão que torna inclusive possível a previsão desses eventos. Independentemente de mudanças de regime e de governo. Temos partidos e discursos que fazem alguma diferença, é claro. Mas, na prática, na ponta há continuidade do ponto de vista das ações.
Essa situação se deteriorou nos últimos anos?
Veja, as justificativas para esse padrão são de que os suspeitos são criminosos e que mereceriam supostamente a morte. As vítimas inocentes são danos colaterais. Como aceitar como justificável que o preço de uma ação qualquer para prender alguém, para apreender droga, seja a morte de um homem, uma mulher, uma criança? Isso é o inaceitável que se tornou tolerável. Mas tivemos essa criação de um enclave institucional que preservou a cultura dos porões. E isso muito antes de Jair Bolsonaro. Ele apenas dá corpo e inscreve na política uma ideologia, uma cultura corporativa forjada lá atrás e inspirada no pior da nossa história. Não é algo trivial, nem fruto de uma demagogia oportunista, mas está profundamente enraizado. Bolsonaro era portador desses valores e houve esse cruzamento entre o pior da nossa história e o pior que a liderança política pode gestar. Esse encontro inscreve na institucionalidade política aquilo que era, digamos, o outro lado da lua, a sombra, porque não podia ser reconhecido. Por isso, falo em enclave institucional. O que caracteriza as polícias ao longo do período democrático tem sido o fato de elas serem refratárias não só à Constituição e aos direitos humanos, que estão reconhecidos pela própria Constituição, mas refratárias à autoridade civil, política e republicana. As polícias não aceitam o comando político.
Mas a chegada desse pensamento ao poder foi via voto, em eleições democráticas, com chances inclusive de se reeleger. O que isso revela da sociedade brasileira atual?
Há um ponto de consenso entre a maior parte dos jornalistas, cientistas políticos e analistas de que o bolsonarismo, aquela adesão ideológica aos aspectos mais obscurantistas e violentos do seu discurso, é limitado a um certo percentual. Especula-se que perto de 25 a 30% na perspectiva eleitoral. Mas isso não coincide com o apoio completo da sua agenda mais fundamentalista. De qualquer forma, é um núcleo influente e significativo. Se olharmos historicamente, vamos encontrar, desde a fundação do movimento integralista, lá nos anos 1930, o fascismo brasileiro, um apoio que teve seus momentos de alguma glória. Depois, durante a ditadura, Filinto Müller [chefe da polícia política de Getúlio Vargas] foi líder do governo do Senado. O integralismo renasce no Rio com manifestações públicas nos anos 2000, faz as campanhas da família Bolsonaro com suas bandeiras verdes e seus mantras. Mas o apoio às suas pautas esteve muito presente por meio de outras candidaturas também. E a Lava Jato reanimou parte desse discurso. Não estou dizendo que todos os defensores da Lava Jato se identifiquem com a tradição integralista, mas parte desse grupo. A UDN não incorporou todo o integralismo, mas absorveu parte do que está fortemente presente em Sergio Moro.
De que maneira, professor?
A postura da criminalização da política, essa acusação genérica, depreciativa em relação à prática política de modo geral, marcou toda a história do integralismo. O fascismo e o nazismo são o contrário da tradição liberal e chamavam os partidos de instrumentos da partição, da divisão de uma sociedade, de uma nacionalidade. Postulavam a unificação da sociedade sob a liderança carismática do chefe e a aniquilação dos partidos, com a criação de organizações intermediárias. O partido tinha de ser único. E a política era uma espécie de derivação da força e da ação militar, da organização militar. Esse repúdio aos partidos e à política não tem a ver necessariamente com episódios de imoralidade pública ou de corrupção. Tem a ver com uma rejeição muito mais profunda e com uma certa concepção do mundo. Isso não é novidade, atravessa a história e acaba sendo reanimado involuntariamente — e também voluntariamente — nesses processos em que os tribunais acabam sendo os grandes espaços da política, ou do sacrifício da política e dos seus operadores em nome da pureza, da honestidade.
Como a antipolítica retroalimenta uma sociedade violenta?
Ora, se não há política, quem é que rege, quem comanda? Tem que ser apenas o gestor de uma marca e a máquina estatal, o mais leve possível, porque ela supostamente drenaria as energias da sociedade. Ela funcionaria apenas como parasita a vampirizar as forças vivas da sociedade. Portanto, direitos e limites seriam apenas impedimentos para o livre curso da vitalidade, da criatividade, do empreendedorismo. Isso se casa perfeitamente com a ideologia meritocrática, segundo a qual as desigualdades seriam expressões naturais de méritos. Os perdedores e os vencedores, aqueles que dão certo e os que estão fadados a desaparecer. Esse é o momento em que também se aposta numa dissipação da tradição compassiva, que havia na nossa cultura, porque ela é múltipla e contraditória. Dava-se uma importância grande à compaixão e à empatia, o que impunha uma certa culpa ao convívio com a desigualdade, gerando sempre arremedos de esforços reformistas e reformadores. Quando a compaixão encontra uma estrutura de funcionamento da sociedade que requer uma outra formulação pra se viabilizar, no caso a meritocrática, ela cede lugar à indiferença. E esse é um trabalho cultural que vem sendo feito consciente e inconscientemente ao longo de muitos anos. Quantas obras se tornaram bestsellers com títulos tenebrosos e agressivos, do tipo Como ligar o foda-se?
Mas como fazemos a transição de meritocracia para violência?
A indiferença passa a ser o comportamento chique, adequado, inteligente, ligado à ironia, a um certo ceticismo das elites yuppies e se encontrando num espaço de realização com a agenda neoliberal. Porque aí nós não temos mais propriamente sociedade, como dizia Margaret Thatcher, nós temos indivíduos. E indivíduos em disputa. Com isso, você enfraquece regulações, limites, normas, direitos, em nome da fluidificação dessas energias. E o que já está sedimentado, que são essas desigualdades profundas, só vai se ampliar. Mas a indiferença não é suficiente para o novo bloco no poder. Então, nós passamos da indiferença para o ódio. Não estou dizendo que tenha sido um plano cultural, mas foi um processo associado a mudanças na economia e na sociedade. O reino do empreendedorismo, do individualismo meritocrático é também o reino da indiferença. Cada um que cuide de si, o fim do vitimismo. As desigualdades passam a ser saudadas como uma espécie de pedágio que se paga ao desenvolvimento limitado aos vencedores, aos que merecem sobreviver. Nesse universo, o Antropoceno não existe. A crise ambiental não tem sentido, não está precificada, porque não está dado no horizonte do presente. Esse contexto geral nos ajuda a entender como o repúdio à política abre terreno para a emergência daquele que se dissesse antipolítica e cidadão de bem, pai de família.
Vamos destrinchar um pouco o significado de “cidadão de bem”?
O patriarcalismo vai ficando abalado e se reforça, se defende das ameaças dos movimentos feministas, LGBTQIA+, etc. Nesse contexto, emerge uma candidatura antipolítica e que dialoga com o mundo evangélico, com a religiosidade popular emergente. Um último nível nessa articulação, que depende das circunstâncias, tem a ver com o que eu chamo de demanda por ordem. Mas não é a demanda por ordem da segurança pública apenas, nem principalmente, embora isso seja também muito significativo. É uma demanda por ordem ontológica. É uma ordem muito mais profunda, que diz respeito à natureza do que somos. No mundo “desestabilizado” pelos movimentos LGBTQIA+ e feministas, sexo, gênero e corpo são dissociados, emitindo um nível de luta por emancipação que nunca se conheceu, o nível de reinvenção de si e o exercício de uma liberdade que é necessariamente solidária, com a possibilidade de que a sexualidade não derive de um destino anatômico. Essa dissociação sexo, corpo e gênero explode as classificações todas e é absolutamente assustadora para quem vive a sua própria realidade interior com insegurança e calça a sua formação subjetiva nos aparatos e nos arquétipos do patriarcalismo. Então, imagine o homem médio brasileiro. Ele é o protagonista desse drama patriarcal e se sente desestabilizado, subvertido, desesperado e inseguro. E essa figura pode ser uma mulher também, evidentemente. Imagine essa demanda social brutal por ordem ontológica, por alguém restaurador, por um herói épico que fosse capaz de sobrepor de novo o que seria a própria natureza do ser humano e o que seria a vontade divina, pelo menos desse Deus do Velho Testamento. Há quem acredite que essas sejam questões comportamentais. Ou seja, vamos tratar da infraestrutura, porque isso aí é comportamental, é derivado. Não. Isso é infraestrutural, é disso que se trata, a disputa é essa. Estamos falando de processos que são a arquitetura de civilizações. E Bolsonaro foi capaz de mobilizar todas essas camadas.
Não sozinho.
Lembro que li na Piauí, quando o general Villas Bôas ainda era comandante do Exército, uma pequena entrevista com ele em que, ao ser perguntado qual é o grande problema do país, ele não hesitou: “O politicamente correto”. Ele estava certo, no sentido de que o politicamente correto é uma gramática para um novo tempo do qual emergem essas outras questões no fundo mais remoto das nossas formações subjetivas e inter-subjetivas. Por isso, o que ele disse é uma ameaça não só à democracia. É uma agressão a toda a nossa constituição civilizatória e pré-civilizatória, tudo que nós construímos na direção de liberdade e não está restrito a uma instituição ou outra. A ministra Damares não lidava com cortinas de fumaça. Ela lidava com questões chave. Tanto quanto Guedes na economia.
Esse reacionarismo da sociedade é cíclico?
A sociedade brasileira não tinha alcançado esse nível de instabilidade ontológica no período pré-golpe. Nós tínhamos projetos de classe, socioeconômicos e políticos em choque. Havia lideranças feministas e negras importantes, sempre houve. Mas movimentos que se traduzissem também em construções culturais tão eloquentes e pervasivas, capazes de sensibilizar multidões, isso não havia.
A perpetuação da cultura dos porões se dá apenas nas polícias?
Não, o enclave institucional só foi possível e se manteve por conta da cumplicidade do Ministério Público, responsável pelo controle externo policial, mas que não cumpre sua missão constitucional. Há muita gente da melhor qualidade, com amor pela democracia e pela Justiça, que procura resistir, mas o que predominou até agora é a anuência com o processo da violência policial letal em proporções dantescas. E a Justiça abençoa. Houve uma modificação de atitude agora na ADPF 635 [que questionou ações policiais nas favelas na pandemia], que é absolutamente excepcional, mas não está indo para frente. É uma disputa grande e foi a primeira manifestação da Justiça contra essa estrutura de enclave. Os políticos adotam as mesmas posturas, à esquerda ou à direita, com algumas variações; a opinião pública costuma confundir vingança com Justiça e aposta sempre que falta mais aspereza, mais rigor, mais prisão. Os que tentaram mudar esse quadro nos governos estaduais, freando a polícia e buscando transformações, desistiram ou foram levados a fazê-lo porque os custos de mudança são muito elevados e as chantagens são muito fáceis. Não há nada mais fácil do que desestabilizar um governo estadual. Pode ser com uma operação tartaruga de parte da Polícia Militar, ou nas greves, que passam pela demanda salarial — os policiais em geral são muito maltratados e trabalham em condições indignas.
O que acontece nesse embate com autoridades estaduais?
Os governadores, na grande maioria das vezes, recuam e acabam convidando a liderança para uma negociação. Essa liderança tem aí pavimentado um caminho para a próxima eleição, para se tornar um deputado. Quem é essa liderança? É a liderança sindical que trabalha com a categoria ao longo de muitos anos e acumula experiência nos conflitos, que tem como oferecer uma proposta para o país? Não! Essa liderança surge na praça porque líder é quem comove, quem grita com eloquência e tem capacidade de sensibilizar a audiência. São esses líderes carismáticos, que não têm necessariamente nenhuma ligação orgânica com a categoria, absolutamente corporativistas, ultraconservadoras que vão reiterar o padrão, e começaram a formar uma bancada no Congresso Nacional. Eles foram catapultados por rebeliões que chantagearam governadores — com bons motivos na base, eles estão lutando pela sobrevivência. Esse tem sido o destino e a representação da categorias, por conta da proibição de sindicalização, que me parece uma insensatez completa.
Que papel as milícias têm nesse contexto?
Se você quiser criar constrangimentos em autoridades da segurança pública, pergunte sobre segurança privada. Um número imenso, não sabemos exatamente quantos, de policiais na ativa está atuando na segurança privada informal e ilegal, inclusive coronéis e delegados. Às vezes, fazendo fortunas com isso. Por que isso é ilegal? Salvo exceções, porque é um conflito de interesses óbvio. Quão melhor for a segurança pública, pior irá a privada. Isso caracteriza um vínculo poderosíssimo, que está na raiz da milicianização no Rio. Os governos estaduais, não só do Rio, ficam muito satisfeitos com o bico policial, uma complementação salarial que não passa pelos cofres públicos. Os salários da massa policial são baixíssimos, então o bico policial é imprescindível para a reprodução das condições de possibilidade da própria governabilidade. E há portanto uma aliança entre o Estado e a ilegalidade. Nessa sombra, nessa área intangível, invisível, prosperam duas dinâmicas, para simplificar. Uma que, mesmo com todo o mal que provoca, ainda pode ser definida como benigna, que é caracterizada pelo esforço dos policiais, como seres humanos, de buscar dar melhores condições às suas famílias. A maligna é aquela dinâmica que vai redundar nas milícias, que começa criando insegurança pra vender segurança, até em bairros de classe média, e com projeções na política. No Rio, já temos mais de 50% do território da cidade dominados pelas milícias, inclusive cooptando duas facções do tráfico. É a própria polícia gerando essa forma mais radical de criminalidade e constrangendo os pares, os companheiros honestos que de fato não têm como reagir. Isso tem várias origens: os esquadrões da morte, a liberdade pra matar, a política de extermínio. Tudo isso acende a chama da autonomia, os nichos vão sendo gestados e se multiplicando.
Caso Bolsonaro perca a eleição, é possível aferir como as milícias e as polícias podem reagir?
Nesse caso, não cabe o sujeito coletivo. Temos divisões, embora seja predominante uma crença e um tipo de prática. Mas há distinções regionais e no interior instituições. Isso se dilui quando se trata do voto, um ato privado que não acarreta em nenhum custo. Mas um ato de rebeldia, contra a instituição e a legalidade, tem custos severíssimos que podem levar à perda da sua própria profissão, do seu emprego. E de uma maneira permanente. Uma sublevação dependeria de uma organização da qual Bolsonaro nunca se mostrou capaz, com garantias demonstrando autoridade suficiente para fazer com que o custo da desobediência a ele fosse equivalente, no mínimo, ao custo da sublevação. E também fazendo valer a confiança de que ele terá êxito no seu empreendimento. É muito difícil demonstra-lo e é muito difícil organizar grupos tão numerosos e diversificados. Mas há o poder das polícias de ‘estragar’.
Que poder é esse?
É muito mais fácil estragar, criar dificuldade do que agir na construção de um poder alternativo. Você pode agir simplesmente atrapalhando. Isso pode ser quase imperceptível e pode se dar por inação ou por ação. A vandalização de sessões eleitorais, por exemplo, pode encontrar uma reação tímida e tardia da polícia ou pode ser até produzida por policiais sob o discurso de que está havendo algo que precisa ser objeto de uma reação. Eles podem interromper um processo de votação porque algo acontece e prender um provocador que está ali a serviço justamente da desordem. Situações desse tipo, que não envolvem necessariamente um comportamento ilegal, e dependendo do número de ocorrências, podem ser suficientes para inviabilizar um processo eleitoral ou pra criar dúvidas. Há muitas gradações, formas de criar caos e balbúrdia que podem ser o suficiente pra suscitar o golpe. Não precisa de tanque na rua. Nossa situação é precária e frágil e exige de fato todas as vacinas e atenções.