Prefácio de Luiz Eduardo Soares ao romance de Julio Ludemir, Psico, publicado pela editora Faces
Prefácio a Psico
Gostaria que no futuro houvesse um consenso entre os historiadores e que fosse usual ler-se que a publicação do romance, Psico, de Júlio Ludemir, em 2012, representou um momento importante da cultura brasileira. É o que penso sobre este livro: trata-se de uma obra marcante e intimamente sintonizada com deslocamentos subterrâneos de placas sociológicas profundas, invisíveis mas estruturantes.
Se me refiro à expectativa dessa opinião futura não é apenas por orgulho, porque eu teria sido o primeiro a identificar o valor da obra –sequer haveria aí maiores virtudes, uma vez que tive o privilégio de ser um dos primeiros a lê-la. Menciono o cenário futuro porque o estabelecimento de uma avaliação sensível à extraordinária relevância de Psico será a demonstração de que uma nova visão do Brasil ter-se-á afirmado hegemônica e que Psico terá sido uma das etapas nesse processo de reformulação identitária nacional, o que, por sua vez, provavelmente significaria que a própria sociedade brasileira teria mudado para melhor. Teria se tornado mais democrática e justa, mais includente e compassiva, mais solidária e crítica, menos racista, violenta, hipócrita e desigual. Em outras palavras, os componentes virtuosos que já estão presentes, hoje, ter-se-iam ampliado, difundido, fortalecido, a ponto de converterem-se em qualidades predominantes, enquanto os ingredientes negativos e as condições perversas com os quais convivemos ter-se-iam enfraquecido.
Explico meu argumento.
Apesar de grandes transformações na direção da cidadania e da equidade, sobretudo com a vitória da resistência à ditadura –vitória consagrada na Constituição de 1988– e a relativa continuidade de políticas públicas consistentes e redistributivas, nos últimos 18 anos, a sociedade brasileira ainda vive, em vários aspectos, sob a égide de Casa Grande & Senzala e Raízes do Brasil. Não me reporto aos livros de Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Holanda, mas às características que eles interpretam e simbolizam. São elas que desejo destacar. Por um lado, a sociedade –a despeito de contradições, contra-tendências e resistências– ainda se deixa reger por uma cordialidade que mistura o público ao privado, submetendo a universalidade do primeiro aos caprichos idiossincráticos, aos interesses e às expansões voluntariosas do segundo. Por outro lado, prossegue respirando um racismo rançoso e (mal) disfarçado, envergonhado de si –mesmo porque embrulhado em doutrinas liberais que não o admitem.
A família e as relações pessoais estão no centro de ambas as síndromes. No primeiro caso, a cordialidade, porque a família e os elos de parentesco consistem no núcleo de lealdades cujo poder sobrepuja os vínculos que a cidadania pressupõe e que a responsabilidade cívica instaura com a coletividade, as instituições e as leis. Por aí chegamos ao patrimonialismo e à indisposição crônica e quase atávica do país com a transposição para a prática dos princípios liberais e individualistas, os quais, entretanto, admira em teoria –refiro-me em especial aos princípios elementares de Justiça. No segundo caso, a estratificação social por meio do preconceito de cor (seria pertinente considerar também o gênero), porque se instala até mesmo no templo mais recôndito da intimidade, o lar. O racismo habita o seio da vida doméstica de um modo muito peculiar, de que dá testemunho esta bizarra instituição chamada “empregada doméstica”. O teatro de distinções hierarquizantes e vetos abstrusos é exibido nas arenas que lhe oferecem as residências das camadas médias e das elites. Ritualizam-se no convívio íntimo entre patrões brancos e mulheres negras trabalhadoras o pseudo-amálgama das classes, o enganoso sincretismo das crenças, o falso hibridismo dos hábitos, em um banquete pantagruélico e cruelmente carnavalizado de atrações e repulsões rigorosamente codificadas. Relações contratuais de trabalho que remetem a mercado, direitos e deveres, regras claras e universais, metamorfoseiam-se em laços de afinidade quase-familiar e, no convívio, a reivindicação e a linguagem dos direitos, quando emergem, são repelidas e tomadas como manifestações intoleráveis de ingratidão. Contudo, a intimidade e os elos de semi-parentela são explorados das formas mais diversas, inclusive para a iniciação sexual dos rebentos que herdarão patrimônio, mando e privilégios. Este é o ambiente em que são socializados os filhos de empregadas e patrões, aos quais os exemplos diários ensinam lições de iniquidade, treinando-os na arte mortificante da naturalização de contradições. Se as crianças nascem livres e iguais na letra da lei, crescem cativas de preconceitos e dependentes de condições inteiramente desiguais. As lições performáticas do cotidiano, internalizadas, as levam a reproduzir a história que herdam, a cada uma cabendo um lugar previamente definido nas narrativas já esboçadas de suas respectivas biografias futuras.
As mulheres trabalhadoras negras moram (cada vez menos, felizmente) nas casas dos patrões, mas suas famílias estão em favelas e periferias (ainda é assim). A geografia do espaço doméstico reflete o mapa das divisões sociais urbanas: casa grande & senzala; casa farta, arejada e luminosa & quarto escuro, abafado, insalubre, deprimente –não é um quarto como os demais, o da “empregada”, mas uma espécie de puxadinho ignóbil da imaginação sociológica racista de nossos arquitetos, engenheiros e empreiteiros, que o concebem e constróem sob os auspícios do distinto público, que também atende pela graça de “mercado imobiliário”.
Cada vez mais as empregadas moram nas favelas e em bairros pobres para onde retornam depois do dia de trabalho duro. Suas retinas estão fatigadas, suas rotinas driblam as pedras do caminho e suas razões para seguir adiante elas as encontram com frequência nos outros: os filhos, a comunidade e a família estendida dos templos, que são reinos de outra prosperidade e valores alternativos. Elas são mediadoras, nós de redes locais, pontos de conexão com outros novelos sociais e outras cartografias. Atravessam ruas e cidades, castas e estamentos, e levam pelas mãos seus filhos –têm, crescentemente, assumido a chefia da casa ou da unidade doméstica, isto é, as responsabilidades por sua manutenção econômica, psicológica e moral. Homens fazem filhos, lavam as mãos ou se separam, renunciam à família e vão adiante; as mulheres ficam –com os filhos e a responsabilidade.
Todo esse mundo treme. O próximo capítulo não é o apocalipse com seu cortejo de bestas, trevas, labaredas e trombetas. A sequência dessa história não se pode conhecer, antecipadamente, mas há indícios de que o fim que se aproxima é a mudança de pele da sociedade brasileira, como o fenômeno que ocorre a alguns animais. Mudança de pele de um povo mutante e câmbio de visões de mundo, atitudes e estruturas sociais. Talvez esteja no horizonte o ocaso de uma ordem que já não se aguenta em pé e faz água por todos os lados, e sua substituição por uma nova ordem, em que os indivíduos rejeitem de vez o racismo, recusem definitivamente a confusão entre público e privado, convertendo-se em cidadãos, e aprendam a respeitar e orgulhar-se da exuberância da cor negra de sua população –da cor negra e de suas inumeráveis e inclassificáveis variações e combinações.
Júlio Ludemir nos dá esperanças sem negar-se a prestar seu depoimento literário sobre a tirania do braço policial do Estado e a crueldade inscrita no cotidiano de nossa experiência coletiva. O alto astral que sua ficção exala é o melhor antídoto à conversão da crítica em apatia, resignação e ceticismo. Sua obra nos transmite a sensação de que faz sentido confiar na grandeza humana da maioria da população brasileira, esse povo que vive em vilas e favelas, povo negro trabalhador, solidário e criativo –universo em que as mulheres se destacam. Ludemir nos encanta e dissemina uma contagiante fé laica nas qualidades morais e na força psicológica, cultural e social de nossos conterrâneos pobres, aqueles que usualmente são subestimados e classificados, numa clave unilateralmente negativa, como carentes, despossuídos, vítimas e sofredores –como já observara o pesquisador Jaílson Souza, com corajosa e aguda lucidez. O autor de Psico faz isso sem folclorizar ou idealizar a realidade dessas áreas, sobretudo quando elas são dominadas pelo tráfico. Violência contra a mulher, vício, disputas destrutivas e até mesmo o racismo interno fazem parte da experiência da comunidade retratada na obra. O romance não vende ilusões, nem a narrativa se degrada em proselitismo: esparge encantamento apenas com o elenco formidável de personagens inesquecíveis e a trama engenhosa, que seduz desde o primeiro parágrafo.
O cenário é a favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, onde o autor morou. O enredo surpreende quem espera encontrar tiro e sangue, ainda que a violência não esteja ausente, nem o tráfico, a polícia e suas tenebrosas transações. Seria inverossímil se não estivessem presentes, a despeito dessa afortunada circunstância: a publicação do livro coincide com o fim do reinado de traficantes armados no morro e o início de um momento auspicioso na trajetória da comunidade. A história cujo suspense nos tira o fôlego lida com a temática usual, já um clichê, mas por uma perspectiva absolutamente original. O relato nos leva aos becos, às festas, ao enxame de motos, à lan-house, ao templo e aos puxadinhos desse verdadeiro planeta que é a Rocinha, e nos conduz ao outro lado do morro, literalmente: a Gávea, bairro nobre da zona sul. O percurso narrativo corresponde ao trânsito existencial do personagem-narrador que dá título ao romance. Verso e reverso: o protagonista cruza fronteiras urbanas e sociais e atua como ponte, mensageiro, mas também como o contraste nos exames tomográficos do interior do corpo humano: passando e vivenciando seus dramas, ilumina e desvela o intangível, o ignorado, o que só se dá a conhecer por seus efeitos –sendo, todavia, decisivo para a vida e a morte.
Para não roubar dos leitores a delícia das descobertas, página a página, na travessia da obra, me permito adotar, daqui em diante, um tom mais alusivo e abstrato, meio cifrado, inteligível somente aos que já concluiram a leitura.
A narrativa dialoga, em sua dimensão latente ou paradigmática, com um repertório de metáforas matriciais de nossa tradição cultural e o faz com refinada acuidade, graças à sutil mediação simbólica de duas metonímias. O efeito poético e cognitivo é brilhante. O retorno do filho pródigo, o sacrifício de Cristo, o sacramento da eucaristia, a visita dos reis magos que presenteiam o recém-nascido para celebrar sua chegada ao mundo, o mito de Édipo e de Hermes, e a tragédia de Caim e Abel são algumas das metáforas mobilizadas pelo relato e, por assim dizer, organicamente metabolizadas na tessitura delicada do plot.
Uma parte do corpo e um pequeno objeto, seu símile, que funciona como seu duplo moral, semanticamente invertido, são as metonímias.
A dinâmica narrativa circula com impressionante energia em torno de cinco figuras ou tropoi simbolicamente potentes: a troca ou reciprocidade, o jogo, a gratuidade, a duplicação e a inversão. Alguns exemplos falam por si: o objeto furtado será restituído, imantado de valor sacrificial; a verdade originária roubada, porque negada, será restaurada ao preço de dupla inversão –o filho que deseja a mãe, mata o pai e se cega não segue, em Psico, o script, e mais não digo…; o falo é subtraído do pai em vez de sê-lo pelo pai, como na castração edipiano-freudiana, mas é também o genitor, doador da vida, quem a recebe; aquilo que é presenteado à mãe sob a forma de ceia –processada a troca pragmática– o é no natal, data cujo significado não deixa margem a dúvidas e remete ao tipo de objeto que torna viável o regalo. Em poucas palavras: a fábula dos dois irmãos separados por intervenções diversas do destino, tantas vezes reinventada, encontrou nesta obra uma versão fascinante.
Psico, por via de sua densidade ficcional, negocia com nossas tradições em múltiplos planos, traz à tona e reconfigura as mais pregnantes interpretações do Brasil, surpreende quem deduz de visões críticas sentidos dogmáticos e desdobramentos previsivelmente ideológicos, e articula a complexidade e a riqueza humana da Rocinha ao panteão das matrizes metafóricas que fizeram de nós o que somos e que ainda hoje nos dão uma linguagem simbólica poderosa.
Psico é, sobretudo, um gesto de louvor à amizade, que está para a prosa assim como o amor para a poesia. E talvez, como disse Caetano, aquela lhe seja superior. Justamente por isso, a obra capta o processo histórico de mudança em curso, em sua dimensão positiva. Capta por apostar na clave da fratria: Psico tece a rede de amigos/irmãos que se dispõem a sacrificar seus interesses em nome da solidariedade, adotando iniciativas próprias a personalidades empreendedoras, arrojadas, criativas. Capta por valorizar a língua portuguesa, na voz e na importância que o personagem concede à problemática da fala. A língua é a pátria do espírito, que repele o gueto, mas também separa os indivíduos e as classes, e os hierarquiza.
O relato em primeira pessoa não é onisciente, abre espaço para contradições, não fecha as lacunas –se fechasse não seria boa literatura. E aí também, na construção lacunar, se inscreve o movimento que promove e antecipa mudanças. Tampouco Psico é ingênuo: apropriar-se da língua, em sua riqueza sintática, significa assumir um decisivo instrumento de poder a que a favela, na sua diversidade e respeitadas as diferenças culturais, não deve renunciar.
A obra capta o processo de mudança na marcha dos acontecimentos narrativos desde a dança sedutora da abertura, sucedida por um reencontro que propiciará mais uma metamorfose existencial, depois de tantas que, dolorosamente, a antecederam. A mudança ou as mudanças, no plural, correspondem ao dinamismo das cenas e se manifestam no enredo como se fosse uma câmara de ecos, por analogia à homofonia das rimas poéticas: nas trocas de posição, de percepção, de identidade, e nas revisões do passado, assim como na abertura de novas possibilidades que vão se insinuando, por interstícios, para o futuro.
Se a obra capta, a seu modo, nos múltiplos ecos distorcidos e polifônicos, a marcha batida de mudanças profundas que abalam a sociedade da Rocinha –e não apenas–, o relato as envolve em uma atmosfera positiva, que dissemina confiança e esperança. O pulo do gato é a força com que gera empatia, aquém e além da consciência dos leitores –mas, quem sabe?, talvez também em sua consciência.
Reitero um ponto importante: captar o movimento de placas sociológicas profundas não se realiza como um gesto intelectual, mas no exercício da linguagem simbólica que subjaz à trama e a ilumina, tornando-a densa, remetendo-a ao acervo fecundo de nossa tradição e lhe transmitindo a energia literária que emociona e cativa.
A mudança anunciada desarticulará, caso se cumpra, a síndrome da cordialidade, no sentido que lhe atribui Sérgio Buarque, e a maldição de Casa Grande&Senzala. Muito bem, alguém dirá, tendo lido Psico: as relações raciais, sim, estão no coração do livro; mas a cordialidade, não. Pelo contrário, os personagens são tipicamente cordiais: agem sempre pelo afeto e as relações pessoais estendem o domínio do privado, ilimitadamente, a tal ponto que o público, o universal, como leis e instituicões, sequer são consideradas. Nem o policial as respeita.
É verdade. Contudo, quando, em Psico, as relações pessoais transcendem as fronteiras familiares e de classe social, elas contrariam interesses materiais privados e se transfiguram em rede social motivada pelo valor da solidariedade. Nessa medida, não é mais da velha cordialidade patrimonialista que se trata. Há algo novo no ar: o sentimento do mundo, o sentido de responsabilidade, a consciência do dever para com os outros, para além da comunidade, depois do morro, derramando-se sobre a cidade. Se as leis e as instituições não fazem parte desse mundo é porque, na vida real cotidiana, não o traduzem, não o respeitam. Tenhamos em mente que nenhuma ordem legal tem o monopólio da universalidade e do público. Se há choques, riscos e problemas, a expansão da rede solidária, mesmo transgressora e repleta de contradições, tem legitimidade. Constitui-se, embrionariamente, como potência instituinte. Não aludo a revoluções, nem faço o elogio da insurgência. Apenas identifico alguns deslocamentos significativos sob a superfície da continuidade. Aprendi com Psico.