Proibição do consumo de drogas não é forma de controle eficaz
Publicada em 14/09/2012
Luiz Eduardo Soares explica que o tema das drogas está muito mais ligado às questões de saúde pública do que às de justiça criminal ou de segurança. Também esclarece que o tráfico internacional de drogas ilegais movimentou, em 2005, US$ 320 bilhões, valor superior ao PIB de 88% dos países.
Para ele, “legalizar é criar o avesso do caos que hoje impera e que traz prejuízos para todos – menos para os que traficam. Legalizar implica disciplinar, regulamentar, negociar circunstâncias, métodos e padrões de relacionamento”. Confira, abaixo, a íntegra da entrevista.
Informe ENSP: Como o senhor vê a chance de discutir o tema das drogas em uma instituição de ensino e pesquisa em saúde como a ENSP?
Luiz Eduardo Soares: O tema está muito mais ligado às questões de saúde pública do que às de justiça criminal, polícia e segurança, a despeito da legislação vigente que enviesa a percepção e constrói de modo equivocado toda essa problemática. A matéria foi sequestrada pelo discurso da justiça criminal, a ponto de nortear suas práticas. Hoje, é impossível fechar os olhos para as consequências em nosso país: somos a terceira maior população carcerária do planeta, 540 mil presos, e o maior índice de crescimento dessa população. O foco socialmente seletivo da política criminal e de segurança pública incide sobre jovens pobres, com baixa escolaridade. Entretanto, apesar da voracidade monopolizadora da justiça criminal e de seus dispositivos, há tempos a chamada “questão das drogas” também frequenta a agenda da saúde. Mais que isso: deixou de se limitar ao escrutínio na área científica da saúde e se tornou tema fundamental para quem estuda a cultura e a política.
Estar aqui na ENSP e discutir este tema numa instituição tão importante e de tanta legitimidade, com tanto poder de formação de opinião e de divulgação de informações, é uma grande oportunidade. Também é maravilhoso rever amigos e debater o tema com colegas.
Informe ENSP: Acredita-se que a proibição do consumo de drogas também é uma forma de controle. O que o senhor acha disso?
Luiz Eduardo Soares: O acesso às drogas está se ocorrendo sem nenhum tipo de disciplina ou controle. As misturas químicas e associações geram novos nichos de mercado que causam graves consequências, como é o caso do crack. O usuário não tem nenhuma informação sobre o que está sendo consumido, pois grande parte desses produtos não tem nenhum controle de qualidade. Não se pode prevenir ou planejar o seu consumo, e o consumidor não é apoiado nem recebe nenhum tipo de orientação ou acompanhamento que possa reduzir os danos provenientes de abuso. A suposta proibição existente hoje é equivocada do ponto de vista dos seus efeitos: ela existe apenas formalmente, o que não inviabiliza o acesso às drogas.
Informe ENSP: Quem lucra com a proibição?
Luiz Eduardo Soares: Os Estados Unidos já gastaram mais de US$ 1 trilhão na guerra às drogas. Temos setores de serviços que se beneficiam com esse tipo de giro econômico. Além disso, politicamente, temos uma engenharia econômica parcial que se compõe por interesses políticos específicos. Estamos diante de um quadro desafiador: não há redução de consumo, os custos são extremamente elevados, etc. Não há, portanto, alteração.
Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), o tráfico internacional de drogas ilegais movimentou, em 2005, US$ 320 bilhões – valor superior ao PIB de 88% dos países. Apesar dos custos bilionários, o consumo e os preços não foram afetados. Os únicos beneficiários têm sido o tráfico e os setores da economia que lucram com armas, equipamentos militares e instrumentos de segurança, além dos titulares políticos da moralidade dos costumes e dos governos que precisam de inimigos para promover a coesão ameaçada por crises e descrédito.
A guerra às drogas constitui o mais escandaloso fracasso de política pública transnacional continuada, nas últimas décadas, sem que o resultado pareça importar aos governos que a implementam. Isso demonstra quão valiosos são os ganhos secundários e as vantagens setoriais.
Informe ENSP: Qual é o perfil das pessoas presas com drogas?
Luiz Eduardo Soares: No Brasil, com a Lei 11.343/2006, o usuário de drogas ilícitas não pode ser preso, mas deve ser conduzido à delegacia, depois a um Juizado Especial Criminal, onde poderá receber advertência verbal, pena de prestação de serviço à comunidade, medida de comparecimento obrigatório a programa educativo ou multa. O consumo ainda é considerado crime. No Rio de Janeiro, segundo pesquisa realizada em 2009 por Luciana Boiteux e Ela Wiecko para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), 80% dos presos por tráfico são jovens entre 16 e 28 anos, primários. A grande maioria foi capturada em flagrante, não portava arma, não agia com violência, não tinha ligação com organização criminosa.
A lei brasileira não define a partir de que quantidade o porte passa a ser interpretado como tráfico. Isso estende ao limite a discricionaridade da autoridade judicial. Dispondo de larga margem para avaliações subjetivas, a maior parte dos juízes termina por reproduzir as desigualdades e discriminações que marcam a sociedade e a cultura em que foram socializados. Os efeitos desse coquetel têm sido mais graves do que a ingestão de qualquer outro pernicioso à saúde, composto por substâncias psicoativas.
Informe ENSP: Há um perfil-padrão do usuário típico de drogas?
Luiz Eduardo Soares: Gilberto Velho mostrou que não é assim. Os usuários de droga não compartilham nenhuma característica que os distinga dos demais indivíduos, exceto o fato de usarem droga. Isso também vale para aqueles que não são usuários. Aliás, mesmo essa característica, digamos, diacrítica, deixa de existir quando o não usuário usa e o usuário deixa de fazê-lo, decisões imprevisíveis e sempre disponíveis aos indivíduos para confundir as ingênuas pretensões do iludido classificador. Além disso, caberia perguntar: de que droga se trata? De que relação com a droga se trata? Só há uma droga e apenas uma modalidade de relação?
Informe ENSP: Todo consumidor de drogas ilegais é viciado?
Luiz Eduardo Soares: Essa afirmação, por absurda, dispensa comentários. Por outro lado, a palavra “viciado” menos descreve uma pessoa do que lhe determina um destino criminal e médico. É curioso observar que a palavra refere-se a uma pessoa como se a rotulasse, como se lhe atribuísse uma identidade. E o faz como se essa identidade esgotasse sua inscrição no mundo, como se a qualidade destacada, o “vício”, fosse constitutiva de seu ser. Uma vez que fazemos coisas com palavras, a classificação “viciado”, tanto quanto “criminoso”, é uma intervenção performativa da linguagem, porque condena, traça um círculo em volta do indivíduo, prescreve um futuro e encaminha o sujeito para determinadas instituições, que o submeterão a certos procedimentos.
Informe ENSP: A única meta das políticas públicas relativas a drogas é a abstinência?
Luiz Eduardo Soares: Não se trata de um enunciado analiticamente sustentável, nem normativamente defensável. Por que o mesmo corpo institucional não vê do mesmo modo o consumo de cigarros e de bebidas alcoólicas, por exemplo? Não há razão para que a maconha e a cachaça tornem-se objeto de políticas cujas metas sejam a abstinência, em um caso, e a temperança ou a moderação, no outro. Não há nada na substância material desses produtos que determine um ou outro caminho, uma ou outra finalidade. Na verdade, há outra finalidade no mascaramento do caráter arbitrário dessas classificações e das atribuições de periculosidade. A finalidade é firmar e difundir a suposição de que há base substantiva para o exercício legiferante. O objetivo é formar a crença na existência de uma base substantiva para o exercício da autoridade repressiva do Estado. O poder político encontraria legitimidade por derivar seu funcionamento da ordem da necessidade, uma vez que suas ações decorreriam de imperativos morais, racionais e ontológicos. Por isso, a política de drogas proibicionista é antiliberal, mesmo quando proposta e aplicada por liberais.
Informe ENSP: Legalizar implica liberar. Isso provocaria a explosão do consumo?
Luiz Eduardo Soares: Liberar é um verbo caprichoso que insinua convite sedutor, apologia e celebração. Sobretudo, o verbo sugere falta de limites, ausência de regras e homogeneização das situações, sem respeito a nuances e gradações, normas e valores, cautelas e negociações. Legalizar é criar o avesso do caos que hoje impera e que traz prejuízos para todos – menos para os que traficam. Legalizar implica disciplinar, regulamentar, negociar circunstâncias, métodos e padrões de relacionamento. A experiência de políticas descriminalizantes tende a demonstrar que o consumo não sofre alteração significativa. A elevação gira em torno de 1,5% e fica na média do que se verifica em outros países que não flexibilizaram sua legislação, no mesmo período.
O grande erro de quem postula a proibição é a crença em sua eficácia prática. Supõe-se, ingenuamente, que proibir significa bloquear o acesso de consumidores potenciais às drogas. Isso não ocorre no Brasil nem em nenhum país não totalitário. O acesso às drogas continuou sendo uma realidade inabalável, ao longo das últimas décadas, apesar das políticas repressivas, independentemente do volume de dinheiro investido (ou perdido) nessa guerra e da qualidade das polícias mobilizadas. O acesso não é afetado pela proibição. Por isso, flexibilizações legais não importam em expressiva mudança na demanda.
Informe ENSP: Como a mídia tem lidado com a questão das drogas?
Luiz Eduardo Soares: Isso seria tema de outra palestra para a qual não estou preparado. Mas posso dizer que, quando falamos em mídia, também falamos em representações sociais, imagens, etc. É impossível falar da cultura dos conceitos e preconceitos sem pensar mídia. Ela é a estrutura da rede e a dinâmica em que se constroem as imagens, e por meio dela se divulgam as informações.
A mídia é uma grande questão, pois opera por filtros. Todos nós operamos por filtros. Sem isso, não haveria discursos nem atos significativos sem perdas, exclusões e seleções. O importante é que esta seletividade não se dê sempre numa mesma linha, mas sim que tenhamos uma pluralidade. O problema é que há pouquíssima pluralidade, e isso acaba enviesando a percepção coletiva. Por exemplo, se cada caso de extermínio ou de execução extrajudicial fosse tratado pela mídia como um grande escândalo, já teríamos mudado esta realidade. No entanto, como só viram notícias destacadas os acontecimentos que se ocorrem no campo de visibilidade da mídia – que corresponde ao campo de visibilidade da classe média –, não há nenhum interesse e nenhuma atenção, ou rara e comparativamente pequeno destaque para as execuções extrajudiciais. Há exemplos incríveis em que essa questão fica patente.
Acredito que essas terríveis manifestações da brutalidade policial letal mereçam destaque. Porém, apenas muito eventualmente, elas ganham destaque, sem a constância e assiduidade dos fatos e sem simetria com a atenção conferida com o que ocorre nas áreas socialmente privilegiadas. É aí que se impõe uma interrogação prática e crucial: o que fazer para criar mídias alternativas que enriqueçam o processo de comunicação e ampliem o espectro de abrangência e observação?