Prólogo para as edições argentina e espanhola de Elite da Tropa
Os brasileiros vivemos sob ditadura entre 1964 e 1988, quando foi promulgada a primeira Constituição realmente democrática de nossa história. Alguns historiadores disputam a data, porque o regime autoritário foi se desmontando gradualmente, ao longo de muitos anos, sem rupturas. Este é o estilo nacional: em vez de revoluções e insurgências sangrentas, a negociação entre as elites: espelho e fonte de nossas profundas e estruturais desigualdades.
Mas não se iludam: a proverbial disposição para o diálogo inter-pares não se estende para o relacionamento com as camadas subalternas e suas demandas por equidade, cidadania, condições dignas de vida. Luvas e conciliação, no vértice superior da pirâmide social; ferro e fogo, embaixo –sempre que os velhos métodos da cooptação clientelista entram em colapso.
De todo modo, a nova Carta Magna democrática consagrou o desfecho da transição política. Voto, saúde, educação e assistência social passaram a ser reconhecidos como direitos universais. Acabou a censura, a impostura, a tortura.
Pausa. Melhor voltar a fita: acabou a censura, sim, é fato; mas a tortura ainda convive conosco como um espectro do passado a assombrar o presente e condenar o futuro à impostura da farsa política: patética repetição de nossa tragédia arcaica.
A diferença é que, nos anos sombrios dos governos militares, o terror do Estado se dirigia a todos os que lutavam por liberdade, indistintamente. As garras e os dentes da máquina repressiva alcançavam estudantes, intelectuais, lideranças políticas e profissionais liberais. A tortura tornou-se um escândalo porque chegou à classe média. Sim, pois, afinal, não foi a ditadura que inventou as práticas bárbaras do aparelho coercitivo. Independentemente do regime político e da conjuntura histórica, ela sempre existiu no Brasil para os pobres e negros –antes, durante e depois da ditadura militar. E persiste até hoje.
A diferença é que, não mais atingindo a classe média, deixou de ter lugar de honra no panteão dos temas nobres; deixou de frequentar o repertório politicamente relevante da agenda nacional; perdeu acesso aos editoriais da grande imprensa; desapareceu no horizonte da criação estética; eclipsou-se na academia como objeto digno; refluiu para os bastidores da cena pública. E não só a tortura. Também as execuções extra-judiciais, que constituem uma violação grosseira e dramática dos fundamentos mais elementares do Estado Democrático de Direito.
O Estado brasileiro –mesmo em ambiente francamente democrático e regido por honorável Constituição– transgride, rotineiramente, a legalidade que lhe cumpre respeitar e fazer cumprir: na abordagem policial discriminatória, que submete a aplicação da lei ao crivo seletivo de classe e cor; no descumprimento de suas responsabilidades face às penas e às prisões, ao impor aos condenados um excedente da sentença em humilhações, brutalidade, doenças, condições absolutamente desumanas; no desprezo do Estatuto da Criança e do Adolescente; na convivência abúlica e cúmplice com as desigualdades no acesso à Justiça.
Por outro lado, as políticas de “mano dura”, predominantes no Brasil mesmo no período democrático, terminaram produzindo o contrário do que pretendiam: tencionavam eliminar o crime, nem que o preço fosse rasgar a Carta Magna e os Direitos Humanos –afinal, o horror ficaria confinado aos estratos mais pobres… O resultado paradoxal e surpreendente para os defensores do “tough on crime” e da “tolerância zero” deveu-se, sobretudo, ao seguinte: quando a autoridade superior da segurança pública atribui ao policial autoridade para matar, liberando-o para agir arbitrariamente, sem que suas decisões e seus atos lhe custem qualquer prejuízo, risco para a carreira ou processo judicial1, muitos profissionais optam por negociar com os suspeitos a vida e a liberdade. Afinal, quem pode, arbitrariamente, retirá-las, pode, pela mesma (des)razão, preservá-las.
Gerou-se, assim, uma torpe moeda sempre inflacionada. Das negociações ad hoc, no varejo dos encontros e desencontros, nas ruelas sujas e escuras das cidades grandes, saltou-se para um segundo estágio no processo de “racionalização” e “institucionalização” da corrupção (pois a economia ilegal também se rege por princípios racionais e previsíveis): o aluguel de casas clandestinas para as quais eram conduzidos os suspeitos e negociadas, com intermediários, a vida e a liberdade. A escala se ampliou, os negócios prosperaram. Mas havia limites. A solução estava longe de ser ideal. Alugar e logo abandonar a casa, mantê-la clandestina, prender e sequestrar os suspeitos, administrar negociações complicadas e tensas, tudo isso implica riscos e custos. Emerge, então, a terceira fase na dinâmica evolutiva da corrupção policial, amparada na “mano dura”: o acordo ou “arrego”, um espanholismo que designa “areglo”, pacto. Melhor para todos os envolvidos, menos custos, mais eficiência: os segmentos corruptos da polícia terceirizam riscos e privatizam lucros. Os “agentes da lei” estipulam preços e recolhem toda semana, ou diariamente, determinada importância fixa ou variável –ou um percentual do lucro líquido dos ganhos proporcionados pelas atividades criminosas (especialmente do tráfico de armas e drogas).
Foi assim que numerosos grupos de policiais converteram-se em sócios do crime, transformando-se, portanto, eles mesmo em criminosos –a ponto de oferecerem segurança para o tráfico ou de transportarem armas para seus cúmplices. Vê-se, portanto, como a intenção de combater o crime com mais rigor e eficácia ao arrepio da lei acaba provocando efeitos perversos e gerando seu contrário: impotência, ineficiência e cumplicidade com o que se buscava combater. A degradação institucional tem múltiplas fontes. Uma delas é a política que sacrifica a legalidade para resguardá-la. Ilegalidade e desrespeito aos direitos humanos só promovem mais ilegalidade e iniquidades. Violência arbitrária e uso não-comedido da força provocam mais violência, numa espiral de morte e sofrimento, e de corrosão da própria legitimidade da Justiça e da democracia.
Além das políticas que flertavam com a truculência e o arbítrio, marcou o Brasil, no período pós-ditadura, a omissão relativamente às polícias e à estrutura organizacional da segurança pública. A indigência não caracterizou apenas as políticas de “mano dura”, mas também os debates (ou sua ausência) sobre políticas reformadoras, modernizadoras e democratizantes. Nenhuma iniciativa, nenhuma proposta alternativa.
A esquerda era e continua sendo competente nas denúncias, que são necessárias, sem dúvida, mas insuficientes. Quando chega ao governo, a esquerda repete as práticas (ou a negligência) que criticava. Por absoluta falta de rumo, de compreensão, de compromisso com a construção de uma polícia para a democracia do século XXI. Como se a polícia fosse tabu, um totem maligno, um intruso na história da civilização a ser expelido assim que se superem alguns entraves circunstanciais –as classes sociais, o modo de produção capitalista, a competição entre os humanos e outros pequenos detalhes. Como se definir e propor um papel positivo para a polícia nos marcos do Estado Democrático de Direito fosse render-se a um discurso necessariamente conservador ou permitir que a atenção às consequências (a violência, os crimes) desviasse a consciência do único foco legítimo: as causas estruturais sócioeconômicas. Até hoje, não houve qualquer mobilização em torno de qualquer proposta construtiva alternativa, que apontasse caminhos de mudança capazes de criar condições objetivas para a refundação das polícias em novas bases. Polícias de novo tipo, pensadas e organizadas para respeitar a cidadania e os direitos humanos, proteger direitos e liberdades, prevenindo a violência, recorrendo à força comedida apenas de acordo com a resistência que se lhe oponha, reprimindo violações dos direitos e liberdades.
A direita sempre esteve confortável com a solução ditatorial: a segurança pensada e estruturada para defender o Estado, não os cidadãos; para fazer valer o arbítrio com a força desmedida. Polícia, no limite, confundida com Exército. Umbilicalmente vinculada ao Exército. Espelhando-o, na verticalidade hierárquica, na centralização do processo decisório, na primazia do “pronto emprego” –sem participação da sociedade e dos próprios profissionais, em seu conjunto; sem controle externo; sem transparência. Instituições e agentes distantes do público, que só interagem com a sociedade quando infiltrados para investigar e punir. Os conservadores, aliados aos lobbies corporativos, obstruíram qualquer gesto isolado dos poucos atores políticos que se dispuseram a remar contra a maré.
A falta de vontade política da esquerda e a adesão da direita ao status quo institucional confluíram para uma bizarra coalizão conservadora: no processo constituinte, manteve-se, então, a estrutura organizacional legada pela ditadura. Duas polícias federais, subordinadas ao Ministério da Justiça: uma investigativa, outra rodoviária. Duas polícias em cada estado da federação e no distrito federal, cada uma delas realizando parte das funções: o ciclo de trabalho policial fraturado. Ambas comandadas pelo governo do estado (ou do DF): uma civil (investigativa); outra militar (ostensiva-uniformizada)–vinculada ao Exército e composta à sua imagem e semelhança. Nenhuma função para os municípios, em matéria de segurança pública. Nenhum lugar para a prevenção e a inter-setorialidade das políticas públicas, ou as inter-faces com programas sociais. Nenhuma atenção à capacitação e à mudança cultural dos agentes. Nenhuma palavra sobre os novos compromissos, nem a propósito da indispensável adequação de estruturas funcionais e mecanismos de gestão aos desafios emergentes.
As características dessa arquitetura organizacional facilitam a reprodução de velhas culturas corporativas e de antigos padrões de comportamento, incompatíveis com as exigências de uma sociedade complexa, que se moderniza aceleradamente, e cujas elevadas taxas de desigualdade dificultam mas não impedem a democratização.
Nesse contexto de estruturas peremptas, ingovernáveis e irracionais, sem transparência e sem oxigenação democrática, sofrem os próprios profissionais, desvalorizados (nos planos salarial e de formação), submetidos a plantões desumanos, expostos a riscos desnecessários e sujeitos a regimentos disciplinares medievais (inteiramente incompatíveis com a Constituição da República). Regimentos que são extremamente rigorosos com o cabelo grande, o atraso, o uniforme desalinhado e o coturno sujo, mas indulgentes com as faltas efetivamente graves perpetradas no exercício da função policial.
Contemplada a moldura de tantas deficiências, compreende-se por que temos sido, como Nação, incapazes de reverter as múltiplas dinâmicas da violência: perpetradas pela sociedade e pelo Estado. Os últimos dados razoavelmente confiáveis sobre homicídios dolosos no Brasil referem-se ao ano de 2006 e exibem a impressionante marca de 49.145 vítimas (26,3 por 100 mil habitantes). No estado do Rio de Janeiro, em 2008, houve 5.717 assassinatos (35,8 por 100 mil habitantes), e 5.095 pessoas desapareceram –muitas das quais terão sido sepultadas em cemitérios clandestinos, vítimas da violência letal intencional.
Ainda mais assustadores são os números da brutalidade policial letal, no estado do Rio de Janeiro: 1.195 pessoas foram mortas em ações policiais, em 2003 –65% das quais com sinais claros de execução. Em 2004, foram 983. Em 2005, 1098. Em 2006, 1063. Em 2007, 1330. Em 2008, 1.137. Estamos falando de 6.806 mortes, em seis anos. Evidente que esses números incluem muitos suspeitos que se recusaram a render-se e confrontaram os policiais, ameaçando-lhes a vida e gerando condições que tornam legítimo o uso da arma de fogo, por parte da polícia, e seu uso letal, quanto mais não fosse em legítima defesa. Mas o fato é que os dados são impressionantes, seja para demonstrar a brutalidade policial (via execuções extra-judiciais), seja para indicar o grau de violência empregado por criminosos, que se impõem pela força sobre territórios e suas populações, subtraindo-lhes direitos elementares –como o de ir e vir, organizar-se, expressar opiniões, recorrer a serviços públicos, não ser agredido, humilhado ou obrigado a esconder armas e drogas.
Note-se que as vítimas da polícia são, quase invariavelmente, jovens do sexo masculino, pobres e negros, entre 15 e 29 anos.
Observe-se, por outro lado, que os policiais também são vítimas de ações de criminosos, com frequência do modo mais cruel, covarde e arbitrário. De 2003 a 2007, 194 policiais civis e militares foram mortos em serviço2. E quem são esses profissionais da polícia? São, via de regra, oriundos das mesmas áreas da cidade, das mesmas favelas ou comunidades, das mesmas classes sociais e, não raro, têm a mesma cor de pele. Também são jovens do sexo masculino. Trata-se, portanto, de uma guerra fratricida.
Falar em guerra não é bom, porque acaba justificando a política belicista das incursões nas favelas e da “mano dura” arbitrária. Mas é sugestivo, porque mostra que, apesar de não estarmos em guerra, pagamos –em vidas, degradação e sofrimento humano– preço equivalente àquele pago pelas sociedades que estão em guerra. Além disso, ajuda a abrir caminhos, a pensar com ousadia, a imaginar com audácia soluções criativas e inovadoras. Por exemplo: se é de guerra que se trata, não estamos mais no patamar da mera (in)segurança pública, do simples “law enforcement”. Não basta, portanto, continuar falando em afirmação da legalidade e em trabalho policial, nem mesmo em programas preventivos. Se estamos diante de uma guerra, a gravidade não-rotineira autoriza heterodoxias. Ante uma guerra, fala-se na construção da paz e se revelam legítimas propostas de negociação, anistia, restauração de condições de diálogo, concessões, recuos, pactos –perdão e reconciliação. Nada disso tem guarida no código penal. Tudo isso encontra abrigo no bom senso, entretanto, quando é de guerra que falamos.
Falemos, pois, sim, sem pudor, com a voz embargada mas com coragem, na guerra entre irmãos, na aniquilação mútua dos pobres brasileiros, estimulados pela adrenalina do ódio e da cobiça, da desorientação institucional dos órgãos da segurança, acelerados pela corrupção, a falta de políticas públicas adequadas, modelos institucionais ultrapassados e a insanidade de uma política de drogas hipócrita e irrealista.
E não nos esqueçamos que o mais fácil seria também o mais injusto: definir o policial como “bode expiatório”, como o culpado, o criminoso, o bárbaro, o corrupto. Individualizar as culpas redime o Estado, as instituições policiais e as políticas de segurança pública, mas seria um equívoco. Antes de atribuir-lhe responsabilidades –e sem negar que elas também existam–, é preciso entender o que dele fazem as instituições do Estado que o recrutam e o treinam. É necessário desvendar a lógica das políticas de segurança que lhe incumbe implementar, mas cuja autoria não lhe pertence. É indispensável perceber que seus direitos humanos são ultrajados antes que ele transforme em método de ação o desrespeito que sofreu.
O livro que está diante de você é dividido em duas partes: a primeira é narrada pela voz de um policial; a segunda, nas diversas vozes de múltiplos personagens. Não há uma análise objetiva e autônoma, de um ponto de vista neutro. O sentido da polifonia caberá a você extrair ou imaginar, depois que a leitura lhe der acesso a todas as peças do mosaico. E se você duvidar da veracidade dos fatos construídos pelos relatos, saiba do seguinte: você tem razão; as coisas não se passaram exatamente assim. Não foi exatamente assim; foi muito pior. A realidade é mais assustadora. O que lhe oferecemos é um flash sem adereços retóricos, sem subterfúgios e adjetivações. Mas apenas um flash.
O labor sobre a linguagem exigiu anos de dedicação, para escavar com as unhas a alma sob o osso do anedótico. Porém, sem ingenuidades. Nenhuma narrativa é “o real”. Construímos o que denominamos “real”, coletivamente. Com a imaginação, lhe conferimos, aqui, uma ordem que lhe empresta um sentido crítico –iluminando o que costuma permanecer à sombra.
Em nosso caso, gostaríamos que esse sentido fosse um fio esticado para o futuro, ajudando-nos a reconstruir, na prática, esse real de que damos testemunho. Nosso foco é o Rio de Janeiro, mas talvez você encontre ingredientes universais nas cenas que lerá: o cômico, patético, épico, cru, árido, impolido, trágico, inverossímil, jornalístico, melodramático. Um pouco de nós estará aí –e até mesmo, quem sabe?, um pouco de você.
1 Pelo contrário, no estado do Rio de Janeiro, entre 1995 e 1998, o agente da lei que matasse ganhava um adicional permanente em seu salário e um prêmio por bravura: a famigerada “premiação faroeste”.
2 Em 2003, foram mortos em serviço 43 policiais militares e 7 policiais civis. Em 2004, 50 policiais militares perderam a vida, vítimas da violência. Em 2005, foram 24 policiais militares e 9 policiais civis. Em 2006, 27 PMs e 2 PCs. Em 2007, 23 policiais militares e 9 policiais civis foram mortos em serviço.