Quando a política é obstáculo à segurança pública
Por Paulo Vasconcelos Para o Valor do Rio
O antropólogo Luiz Eduardo Soares, coautor dos dois volumes de “Elite da Tropa”, livros que deram origem aos filmes “Tropa de Elite”, volta a trilhar o caminho da literatura com “Rio de Janeiro Histórias de Vida e Morte” (Companhia das Letras, 256 páginas, R$ 39,90). A obra, nada ficcional, relata seu convívio próximo com a violência da cidade e as origens do escândalo do mensalão. Em entrevista ao Valor, o exsecretário nacional de Segurança Pública do governo Lula revela como a política fez naufragar também as esperanças de cidades mais seguras e polícias menos violentas.
Valor: O livro começa com o relato da sua ascensão e queda no jogo do
poder. O fracasso é um destino inevitável na política?
Luiz Eduardo Soares: Não é inevitável, mas uma das possibilidades.
Durante o primeiro semestre de 2003, na execução do Plano Nacional de
Segurança Pública, me dediquei a mudar o artigo 144 da Constituição, que
alterava o modelo policial. Cada Estado poderia estabelecer o ciclo completo
[de investigação e trabalho ostensivo], com ou sem unificação [de polícias
militar e civil], e criar polícias municipais. Todos os governadores
endossaram, o presidente chegou a convocar uma reunião para a celebração
do pacto nacional pela paz, mas o núcleo duro do governo, comandado pelo
ministro José Dirceu, achou que era um risco de desgaste para Lula em um
tema que constitucionalmente é de competência dos Estados. Pouco depois,
fui expelido do governo e não se falou mais no assunto. A mudança da agenda
é ilustrativa das dificuldades políticas quando o tema é segurança. Lula fez o
mesmo que Fernando Henrique Cardoso fizera e que Dilma Rousseff faz
agora. O Brasil perde uma oportunidade, mas todo o processo de discussão
revela que o encaminhamento do tema não é impossível.
Valor: Alguns indicadores do país melhoraram, mas não a segurança.
Como se explica isso?
Soares: Desigualdade social, problemas de educação, o mercado de drogas e
a falta de democratização da Justiça. E, claro, o papel das instituições. Não só
pela filosofia, mas pelas estruturas organizacionais. Há uma
disfuncionalidade absurda das polícias. Polícia militar e polícia civil brigam
entre si, não porque não se gostam, mas pela natureza em que foram criadas.
Enquanto o crime se organiza em escala transnacional, nossas polícias são
provincianas. O resultado são 56 mil homicídios dolosos por ano no Brasil,
dos quais só 8% são investigados. Aí entra a Justiça. O Brasil não é o país da
impunidade, porque temos a quarta maior população penitenciária do
mundo, com 640 mil presos. Mas apenas 12% cumprem pena por homicídio
doloso. Dois terços estão na cadeia por crime contra o patrimônio e tráfico de
drogas. São, sobretudo, jovens, negros e pobres. Isso expressa, além de tudo,
irracionalidade. Um preso custa R$ 1.800 por mês. É um investimento do
Estado na contratação da violência futura.
Valor: Por que as Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs do Estado do
Rio, saudadas como o primeiro enfrentamento efetivo do tráfico,
provocaram valorização dos imóveis nas favelas e são elogiadas pela classe
média, parecem ter fracassado?
Soares: O projeto fracassou porque é impossível sustentar qualquer
programa de mudança na relação com a comunidade com a polícia de
sempre. Temos uma polícia tão enraizada com o crime que é impossível
imaginar que tenha qualquer compromisso com a legalidade constitucional.
O projeto previa o recrutamento de novos policiais, mas o padrão de
recrutamento seguiu o modelo institucional. O resultado só podia ser mais
corrupção e brutalidade policial. Os policias das UPPs ficam em contêineres
instalados nas favelas, onde a temperatura no verão passa dos 40 graus, e
trabalham em jornadas dobradas. Os PMs sofrem violação e praticam a
violação. A ideia original e elogiável de substituir a invasão bélica pela
abordagem comunitária se perdeu. Só funcionaria com outra polícia e com a
presença do Estado nas comunidades.
Valor: A violência no Rio costuma dar trégua a grandes eventos. É assim
no Carnaval, foi assim no encontro do papa Francisco com a juventude, é
assim no réveillon na praia. Alguma chance de que seja diferente nos jogos
olímpicos?
Soares: O problema não é o grande evento, mas o dia a dia. Para grande
evento há recursos, trabalho articulado de várias instituições, profissionais
escolhidos e tecnologia de ponta. Todos os componentes são definidos para
funcionar. Isso mostra que a ação pública pode ser muito competente. Mas é
exatamente o que falta no cotidiano. No caso do réveillon, com dois milhões
de pessoas na praia, não é o aparato de segurança que justifica o sucesso, mas
a história de convivência da cidade.
Valor: As manifestações de rua no Rio, em junho de 2013, são personagens
do livro. Um trecho diz que o Rio “saiu do armário”. O clichê hedonista da
cidade estava deposto. O que restou?
Soares: As energias precipitadas ainda vão reverberar. A melhoria dos
indicadores sociais despertou a militância da juventude das periferias. As
pessoas começaram aos poucos a vestir a roupa da cidadania, para ver se lhes
servia. A dramaturgia das ruas foi mais importante pela falta de
representação política. A energia das ruas foi canalizada pelas eleições, mas
não se resume a elas. Houve um gato espiritual entre a lógica da campanha e
o ódio. Passamos a viver um nível de antagonismo e confronto que não se
experimentava antes.
Valor: O livro resgata a história de Dulce Pandolfi, historiadora presa e
torturada na ditadura militar. Por quê?
Soares: Há razões públicas e pessoais. Pessoais, pela amizade de mais de 40
anos. Do ponto de vista público, foi a única pessoa usada para a formação dos
torturadores na América Latina com supervisão americana. A tortura entre
nós foi política de Estado e não desvio de um sádico. Há um vínculo entre a
brutalidade do Estado durante a ditadura e a violência policial que temos
hoje.