Querida bisneta
Querida bisneta (que um dia há de nascer),
sinto que lhe devo uma explicação. Lego a você e sua prole, se houver, um país de canalhas. Seria fácil lhe pedir desculpas, dizer que me esforcei para evitar, mas a verdade é que fui, sim, responsável. Caí na esparrela de que não havia mais nada a fazer. Caí porque era conveniente. Para não pôr tudo a perder, pus tudo a perder. Não incendiei catedrais, não matei o tirano, não parei o trânsito de todas as cidades como um assassino decente teria feito, não providenciei o desespero dos genocidas, não despedacei o corpo do imperador, não invadi a casa-grande, não pendurei o senhor pelos pés, não injetei o sangue dos mutilados no coração dos traidores, não calcinei a terra dos violadores, não violei o túmulo dos cínicos, não persegui os torturadores até o inferno, não reparei que a gentileza era lúgubre e cúmplice, não vi o que se podia ver e era demasiado, não quis pra mim o horror que é sua herança, não tive coragem de não ser bom, não fiz o trabalho sujo que meu tempo exigia, não quis figurar na galeria dos bárbaros, não quis carregar nos ombros a pilha de cadáveres, não quis o punhal e a dor das mães, não quis o fardo de pulhas abatidos, não pronunciei a palavra maldita, não levei até o fim a exumação da história infectada do Brasil, não infectei com o veneno de minha revolta a alma santa dos delicados.
Luiz Eduardo Soares (abril de 2020, ano 1 da pandemia)