Tranquila e infalível como Bruce Lee
Luiz Eduardo Soares
Antropólogo, ex-secretário nacional de segurança pública, autor de Justiça [Nova Fronteira, 2011]
Os primeiros nove meses do governo Dilma, na segurança pública, foram decepcionantes. A decepção decorre do contraste entre as expectativas suscitadas pelos excelentes nomes escalados para enfrentar o desafio e a postura da presidente, que prefiro descrever a qualificar, por respeito ao cargo e à sua biografia. O começo foi alvissareiro, com a nomeação do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que encheu de esperança até os céticos. O primeiro ato do novo ministro justificou o otimismo. Foram convidados Regina Mikki e Pedro Abramovay para as secretarias de segurança e de políticas para as drogas. Escolhas irretocáveis, cujos significados prenunciavam avanços. Some-se a isso uma vitória do ministro, ao obter o deslocamento da secretaria responsável pela política sobre drogas para o ministério da Justiça. Ainda que o ideal fosse inseri-la no Ministério da Saúde, tratava-se de um passo positivo da maior importância.
Na sequência, mais um alento: em entrevista a O Globo, Pedro mostrava quão perversa vinha sendo a escalada do encarceramento no Brasil, cujas taxas de crescimento já eram campeãs mundiais: desde 2006, o tipo penal que concentrava o foco das ações repressivas correspondia à prática da comercialização de drogas ilícitas sem armas, sem violência, sem envolvimento com organizações criminosas. De meados dos anos 90 até hoje, passamos de 140 mil a mais de 500 mil presos. Em termos absolutos, só perdemos para a China e Estados Unidos. Era preciso mudar a abordagem do problema. Por aí ficou Pedro, mas já era suficiente para disseminar o entusiasmo em tantos de nós.
Enquanto a taxa média nacional de esclarecimento de homícidios dolosos é de 8% (92% dos homicidas permanecem impunes, sequer são identificados nas investigações policiais), nosso país entope penitenciárias de jovens pobres, com baixa escolaridade, não violentos, que negociavam drogas no varejo. Ao condená-los à privação de liberdade em convívio com grupos profissionais e organizados, que futuro estamos preparando para eles e para a sociedade? Não há uso mais inteligente para os R$ 1.500,00 mensais gastos com cada jovem preso que não cometeu violência? É preciso impor limites, mas também ampará-lo na construção de alternativas.
Veio a primeira frustração: a presidente ordenou ao ministro que desconvidasse Pedro Abramovay. A ordem presidencial caiu como um raio, fulminando a confiança que se consolidava e expandia.
Enquanto isso, o Brasil continua sendo o segundo país do mundo em números absolutos de homicídios dolosos –em torno de 50 mil por ano–, atrás apenas da Rússia. Para reverter essa realidade dramática, uma equipe qualificada do ministério trabalhou todo o primeiro semestre na elaboração de um plano de articulação nacional para a redução dos homicídios dolosos, valorizando a prevenção mas com ênfase no aprimoramento das investigações. Um plano consistente e promissor, que não transferia responsabilidades à União, mas a levava a compartilhar responsabilidades práticas. Em meados de julho, chegou a data tão esperada: o encontro com a presidente. O ministro passou-lhe o documento enquanto o técnico preparava-se para expô-lo. Rápida e eficaz, tranquila e infalível como Bruce Lee, a presidente antecipou-se: homicídios? Isso é com os estados. Pôs de lado o documento e ordenou que se passasse ao próximo ponto da pauta.