Tropa de Elite e Elite da Tropa
Luiz Eduardo Soares
Escrever um livro e realizar um filme do ponto de vista de um policial não é incomum, em outros países. Entretanto, no Brasil, aconteceu pela primeira vez. O resultado foi um misto de perplexidade, abjeção e encantamento. Claro que houve todo tipo de reação ao livro e ao filme, como é natural –a este em uma escala extraordinária. Cada produto cultural é apropriado e interpretado segundo códigos valorativos e de acordo com dinâmicas micro-políticas as mais diversas. Por isso, a pluralidade de significados atribuídos ao livro e ao filme por leitores, espectadores e críticos, militantes, gestores e policiais, corresponde antes à multiplicidade babélica da sociedade brasileira do que à polissemia das obras.
Tudo isso é elementar e previsível. O que talvez mereça destaque e alguma reflexão mais atenta é a tendência narcisista, especular, defensiva e taxonômica, ordenadora e controladora, que acabou predominando, nesse exercício coletivo da hermenêutica. Pouco, quase nada restou para as obras em pauta. Pouquíssimo se disse a respeito delas, como objetos estéticos, estruturas narrativas, construções formais. Apesar de ambas apresentarem-se como ficções, raramente foram analisadas enquanto literatura e arte cinematográfica. A pregnância da referência, a falácia da verossimilhança, os ardis da representação foram consumidos e reproduzidos, acriticamente, em uma espécie de festival naif da inteligência exegética nacional. En passant, uns e outros brindaram os autores, em jornais e revistas, sites e entrevistas, com alusões generosas mas superficiais e fora de tom, quase impertinentes: “livro muito bem escrito”; “filme muito bem feito”. O que seria isso? Como isso se deixaria perceber? Por que poder-se-ia dizê-lo? Quais os critérios e métodos de aferição estética? Quais as séries literárias e cinematográficas em que se inscreveriam as obras e com que marcas distintivas, que singularidades, que contribuições, que reconfigurações das respectivas constelações sintáticas, semânticas, semiológicas, imagísticas, performáticas? Qual contribuição cada obra terá prestado para o enriquecimento do repertório da sensibilidade estética? E –agora sim–, a partir daí, apreendidas as cosmologias internas das obras e suas respectivas tessituras sintáticas, as linguagens e suas dicções, quais conexões de sentido e que mobilizações de percepção poderiam ser explorados, no âmbito de nosso momento histórico-político? Existindo enquanto tais, tendo merecido alguma atenção minimamente respeitosa, tendo sido observadas como os produtos culturais que desejaram ser, justificar-se-ia indagar como as obras (filme e livro) interpelariam nosso tempo e nossas posturas, as instituições policiais e sua degradação, a brutalidade selvagem, o êxtase que suscita, a repulsa que provoca, a rejeição que exige.
Não, não foi assim, não tem sido assim, salvo raras e honrosas exceções. Ao contrário, antes de situarem-se ante as obras que os interpelavam como construções discursivas -em cujo horizonte a problemática da representação era processada, desafiada, estendida, experimentada, examinada, revolvida, desconstruída-, a maioria dos críticos culturais e “formadores de opinião” apressaram-se a: (1) classificar as obras, segundo categorias político-ideológicas ou morais. (2) Operação pela qual e em cujo cumprimento, o autor da crítica falava mais de si do que da obra; mais das virtudes de suas crenças e de seus valores, do que do objeto que lhe suscitara tantas reações; mais das reações do que de sua fonte externa. (3) Classificar é uma forma de ordenar o mundo, que parecia ameaçado pelas obras em pauta. Mas não qualquer mundo. (4) Tratava-se do mundo de quem classificava o que lia e via. Este é que parecia sob risco de ruir, na iminência de um colapso. Portanto, nesse caso, o esforço de organizar o caos potencial implicava exorcizar o caos internalizado, para limpar-se, proteger-se, diferenciar-se desse outro assustador. O caos, como o inferno, é o outro, são os outros. Ocorre que, ante a natureza especular e narcísica desse freqüentar a obra sem abrir-se às suas peculiaridades internas, à sua identidade; ou, para dizê-lo de outro modo: ante a natureza eminentemente especular desse olhar o livro e o filme (olhar que nada vê nesses outros, nessas obras, além do espelho de suas próprias reações), o titânico empreendimento taxonômico toma como objeto o próprio sujeito que lê e olha, sem ver. Eis porque esse ordenamento do mundo corresponde a um auto-ordenamento. E a sensação de insegurança, caos, desordem, tem como referente o mundo interno de quem classifica e julga. (5) Impõe-se, aqui, a interrogação: por que terá tido tanto poder desestabilizador, subversivo, desorganizador, a voz desse protagonista policial, tanto no livro quanto no filme –voz atravessada por angústias e ambivalências, contradições, agressividade e insegurança, culpas e hesitações, sob a aparência de distanciamento irônico e auto-suficiente?
Eis um ensaio de resposta: essa voz e esse personagem, no livro e no filme, não são facilmente compreensíveis. Assustam e fascinam. Sofrem e se rejubilam com os excessos. Soam edificantes e morais, permitindo-se, todavia e paradoxalmente, aberrações repugnantes e primitivas. Mas tudo o que fazem e dizem é desconstruído pela forma e pelo jogo do conteúdo (separação inadequada, que apenas serve ao propósito de resumir), em dimensões complementares e suplementares, do enredo e da estrutura narrativa. Por isso, talvez, a compulsão à repetição, a rever mais e mais o filme, a reler cenas –no vício e na coleção, a peça que sobra e falta impede o apaziguamento das equações que fecham e das pontas que se harmonizam, em um todo unívoco e coerente. Afinal, no livro e no filme, a equação não fecha. Nenhuma explicação unilateral dá conta do universo de emoções e valores representado (redescrito). E daí talvez a razão pela qual a metáfora nuclear seja a tortura. Torturar é reificar o outro, tomando seu corpo como objeto e levando esse aviltamento ao limite, submetendo vontade e sensação alheias. Mas não é esse o sentido último do movimento de quem se recusa a abrir-se para a singularidade da voz que ouve, da obra que lê ou vê? Esse solipsismo, essa clausura narcísica, essa paranóia defensiva e agressiva, essa impossibilidade de abrir-se e oferecer um espaço de acolhida para a obra em sua densidade distintiva, essa obsessão pelo julgamento, essa volúpia taxonômica, não seriam, essas patologias da leitura, equivalentes metafóricos da tortura? Esses dós de peito morais e politicamente patrulhadores não seriam mimetismos patéticos do capitão Nascimento? Ou seja, quem detesta o personagem não o odeia por identificar-se com ele? E isso não acaba obliterando a sensibilidade hermenêutica, a qual exigiria abertura para o outro, para a alteridade que a obra afirma, representa e dramatiza?