Um enclave antidemocrático
Antropólogo Luiz Eduardo Soares diz que governadores não controlam
polícias em seus Estados. Por Helena Ce l e st i n o , para o Valor, de São Paulo
A resposta que o Supremo Tribunal
Federal (STF) der à operação policial
na favela do Jacarezinho, no
Rio, com um rastro de 28 mortes,
pode acabar com o enclave antidemocrático
das forças de segurança no Brasil, uma herança
da ditadura que sobrevive até hoje. Esta
é a opinião e a esperança do antropólogo
Luiz Eduardo Soares, um dos mais respeitados
especialistas em segurança pública, autor
ou coautor de 20 livros e com passagens
por cargos como a Secretaria de Segurança
Pública no governo Lula e a coordenação da
Justiça, Segurança e Cidadania no Rio.
“Foi um desafio frontal ao Supremo”, diz,
referindo-se ao desrespeito à proibição do STF
de operações policiais nas comunidades durante
a pandemia. Entre junho e outubro de
2020, a ordem foi cumprida, e o número de
mortes despencou, sem que a criminalidade
aumentasse. Foi uma inversão temporária da
escalada do número de vítimas da violência
policial entre 2003 e 2020.
“Só no Rio registraram-se 18.110 mortes”,
diz ele. Nesta entrevista, ele analisa a politização
das polícias e o descontrole das forças de
segurança em todo o país. “Os governadores
não controlam as polícias nos Estados”, diz
Valor: A operação no Jacarezinho sinalizou
uma politização das polícias? Não houve uma
mudança de tom quando, ao justificar as mortes,
o delegado culpou o ativismo judicial pelo aumento
da criminalidade?
Luiz Eduardo Soares: Esse é um ponto-chave.
No último ano, pela primeira vez, o Supremo
acolheu uma demanda para suspender as operações
policiais durante a pandemia, a não ser
em casos excepcionais, em que a vida dos moradores
estivesse em risco. E, nesses casos, uma série
de protocolos deveria ser cumprida, como
perícia de cada morte ocorrida. As polícias se
opuseram dizendo que haveria uma explosão
de criminalidade. De junho a outubro de 2020,
assistimos à maior queda no número de mortos
provocados por operações policiais, sem qualquer
variação na criminalidade. A partir de outubro
começou a haver desobediência a essa determinação,
primeiro tímida, depois mais expressiva,
e entramos neste ano numa escalada
extraordinária de mortes. Uma nova demanda
foi feita ao tribunal para fazer valer sua autoridade:
o ministro Fachin convocou uma audiência
pública nos dias 16 e 19 de abril e, menos de
um mês depois, tivemos o massacre no Jacarezinho.
Me parece evidente que esse desrespeito ao
Supremo não foi ingenuidade e sim um desafio,
porque o discurso oficial subsequente ao banho
de sangue foi sobre o ativismo judicial. Nunca tínhamos
visto isso antes. Esse discurso mais político
se dá na sequência da visita do presidente
Bolsonaro ao governador Cláudio Castro, sendo
que, dias antes, o presidente já desafiara a Justiça,
ao dizer que tinha um decreto pronto para
impedir governadores e prefeitos de tomarem
medidas restritivas e, se não fosse cumprido, o
Exército garantiria a liberdade do povo. Exatamente
depois de Bolsonaro vir ao Rio ocorre a
maior afronta ao Supremo com a operação que
deixou um número recorde de mortes. Foi um
desrespeito frontal ao Supremo, porque todos
os protocolos determinados foram descumpridos,
não foi feita perícia de nenhum dos casos de
mortes, e não havia nenhuma justificativa para a
excepcionalidade da operação: o que eles alegaram
[aliciamento de jovens pelo tráfico] ocorre
todos os dias há décadas.
Valor: Como o Supremo pode reagir ao desafio
de sua autoridade?
Soares: Estamos numa encruzilhada. Pela
primeira vez pode haver uma intervenção
nesse enclave, essa bolha antidemocrática
em que as polícias se movem. O STF pode fazer
uma intervenção no absoluto descontrole
que caracteriza o universo policial com a
cumplicidade do Ministério Público. Uma
eventual intervenção do Supremo poderá sinalizar
política e simbolicamente a reversão
nesse descontrole. Não acho que a partir daí
tudo se torne democrático, mas é uma disputa-
chave para o futuro da democracia.
Valor: Como poderia se materializar essa intervenção
do Supremo?
Soares: O Supremo pode reiterar a proibição
dessas operações. Poderia formar um comitê no
Rio de Janeiro com servidores ligados ao Supremo
e alguns membros da Procuradoria-Geral
da República, com representantes de movimentos
sociais e de favelas que acompanhassem
o dia a dia do Rio de Janeiro com lupa, de tal maneira que qualquer caso fosse reportado,
responsabilizando o governador. E esses casos
teriam um tratamento especial da Justiça, muito
severo e rápido, com a determinação de afastar
todos os envolvidos. O Supremo, trabalhando
com a Defensoria, cobraria do Ministério Público
a apresentação de um plano para reversão
desse quadro de descontrole. Isso tudo ensejaria
no Rio uma espécie de repactuação, o que
poderia ter impacto nacional porque as manifestações
de violência não são só no Rio.
Valor: O senhor considera as polícias como
um enclave e uma herança da ditadura. Pode
explicar melhor?
Soares: A transição da ditadura para a democracia,
como sabemos, foi negociada nos anos
80. Havia uma correlação de forças que imputava
aos militares do “ancient regime” uma influência
significativa, embora as forças democráticas
fossem mais fortes. Eles [os militares]
não foram capazes de ditar as regras, houve
muitos avanços, nós devemos a democracia àquele processo e à Constituição que emergiu dele. Mas alguns pontos trazem as digitais do
poder dos militares, e um deles, para mim crucial,
é a segurança pública. Ficou como uma espécie
de reserva estratégica, como se dissessem:
vocês podem brincar de democracia, mas aqui
[a segurança] ninguém tasca, essa área vai permanecer
sob tutela. Impediu-se assim qualquer
mudança no modelo policial, nas estruturas organizacionais
da polícia. O fato é que ali por
1988 as polícias eram uma reserva estratégica
dos militares que mantiveram o status quo.
Valor: O senhor está dizendo que as polícias
não fizeram a transição para a democracia?
Soares: Sim. Para preencher esse organograma
das polícias, vieram homens com valores,
afetos, formas de entender a sua missão, modos
de definir a inserção na sociedade, modos de
definir os suspeitos e decidir, inclusive, aqueles
que deveriam ser eliminados, abatidos, excluídos
da sociedade. Essas instituições se viam como
portadoras do bem, a serviço dos homens de bem, e essa era a concepção compatível com
a ditadura, sem nada a ver com mediações legais,
com a ideia de cidadania e respeito a direitos.
E essa perspectiva foi preservada porque
não houve justiça de transição no Brasil. Se nós
tivéssemos tido a justiça de transição, passado a
limpo os horrores da ditadura, isso entraria na
história sem o negacionismo que emerge depois
e nos assombra. Como não tivemos justiça
de transição e essas estruturas foram mantidas,
foi mantida a cultura corporativa, ou seja, foram
mantidos esses valores [da ditadura].
Valor: As forças de segurança, de alguma maneira,
ficaram paradas no tempo?
Soares: Construiu-se a dupla temporalidade,
uma contradição que está a nos desafiar, mas
aprendemos a conviver com ela e a ignorá-la
em certa medida. Temos duas temporalidades,
o tempo da democracia, vital, dinâmico, com
expansão da cidadania, incorporação de novos
atores, avanço da conquista de direitos, avanço
da modernização da sociedade, mesmo com
contradições e gradações. Por outro lado, nós
temos uma contração do tempo e da historicidade:
a ditadura congelou práticas remotíssimas
das polícias, práticas profundamente racistas,
que definiam os pobres e os negros como
suspeitos quase que naturais. Tudo isso foi preservado
na ditadura, e a ditadura [nos] legou essa
cultura e a forma institucional, ambas alimentadas
e retroalimentadas até hoje. Nós tivemos
a reiteração do passado, e isso significa que
práticas tradicionais inspiradas nos porões da
ditadura ainda estão conosco.
Valor: Como foi possível este enclave se manter
esse tempo todo?
Soares: Graças ao silêncio cúmplice do Ministério
Público, definido na Constituição como
responsável pelo controle externo da atividade
policial. Nunca cumpriu essa missão, salvo excepcionalmente.
Assim como a polícia, é um
universo de quase 700 mil pessoas, necessariamente plural,
no MP houve também muitas manifestações
individuais na tarefa do cumprimento do
dever constitucional. Masa prática foi
o silêncio sobre a violência policial. Porque as vítimas
eram os negros e os pobres da favela. Aí
aquelas ideias do passado, que continuavam
orientando as práticas policiais, estavam também presentes
na cultura que formou esses profissionais.
Havia um pacto tácito, vocês agem e
nós olhamos para o lado. Isso acaba sendo conveniente,
muitas vezes porque não se queria
abalar o governador, pois criticar a polícia cria
dificuldades para os governadores—e o procurador-
geral é indicado pelo governador. Só no
Rio de Janeiro, de 2003 a 2020, houve 18.110
mortes provocadas por operações policiais, das
quais só 3% chegaram aos tribunais, foram de fato
examinadas e punidas. Isso se naturalizou.
Valor: Mas com governadores de partidos e tendências políticas diferentes, como nenhum conseguiu enquadrar a polícia?
Soares: Porque essas instituições nunca foram
comandadas pelos governadores. Elas são
refratárias à autoridade civil republicana. São
refratárias aos direitos humanos. Isso se manteve
assim, quando governadores tentaram mudar,
o “spoiling power” da polícia teve o poder
de estragar. Não tendo opção, os governadores
acabam aceitando o convívio com o que chamam
“operacionais”, os policiais que resolvem:
entram, matam ou negociam com os criminosos,
e dessa forma eles [as autoridades] lavam as
mãos e olham para o lado. E acabam endossando
a polícia. Às vezes diretamente, como o Witzel
[Wilson Witzel, ex-governador do Rio], que
mandava “mirar na cabecinha”. Esse bolsão
sempre foi bolsonarista “avant la lettre”, antes
de Bolsonaro. O presidente simplesmente dá
cor e reinscreve na política essa ideologia que
sempre foi a dele, que era da ditadura e não foi
desafiada. E isso segue, por conta do nível do racismo
brasileiro que tolera essa barbárie. Ocorre
em todos os Estados, com variações de graus
e da conjuntura, dependendo da capacidade
do governador de dialogar com os sub comandantes.
O governador Doria comanda a polícia?
É claro que não .O Witzel, antes de cair, numa
audiência pública, gravada com autorização
dele, dizia: eu não comando as polícias.Um
governador admitir isso é muito grave. Nem em
São Paulo, nem no Rio e nem em outras praças,
nós vemos esse comportamento.
Valor: As forças de segurança, na prática, tornaram-
se autônomas e sem controle externo?
Soares: Eu já testemunhei: quando a autoridade
confere ao policial liberdade para matar,
confere também liberdade para não matar, e o
policial pode negociar com o suspeito a sua sobrevivência,
o que instala uma moeda potente
que vai se inflacionar rapidamente, porque qualquer um dá o que tem e o que não tem para sobreviver. Isso passa a ser explorado sistematicamente,
não por um policial, mas por grupos
que vão se agregando e colaborando, inclusive
impondo alguma organização a essa prática.
Por isso transitamos das negociações no varejo
para aquilo que no Rio se chama dos “arregos”.
Valor: A próxima etapa desse processo são as
milícias?
Soares: O arrego é uma etapa preliminar.
Ainda é a delegação ao traficante para que ele
continue atuando em toda liberdade, desde
que repassem um percentual ou uma quantia
dos seus ganhos. A partir daí, temos as milícias,
os policiais mais experimentados percebem
que podem não só negociar substâncias ilícitas
no varejo como extrair vantagem e ganho smateriais
sobre todas as atividades econômicas da
comunidade. Como controlam o território, podem
impor taxas ao comércio, ao transporte,
podem monopolizar o acesso ao gás e à terra,
mesmo a terra sendo pública. Tudo vira mercadoria,
sob jugo do déspota, essa organização
criminosa. A violência policial autorizada acaba
propiciando formas de corrupção, tornam indistinguíveis polícia e crime. Na quarta etapa, a que nós estamos, as polícias e milícias já estão
cooptando os traficantes. O Terceiro Comando
já fez acordos com a milícia, a Ada praticamente
acabou, o Comando Vermelho é o que ainda
vive o conflito com as milícias. A política que
autoriza execução extrajudicial estimula também
esse processo de corrupção que em última
instância gera a própria milícia. E ainda tem a
segurança privada que os governos têm interesse
de manter porque diminui a pressão sobre os
salários. Esse bico na segurança é ilegal, porque
quanto melhor for a segurança pública, pior será
a segurança privada e vice-versa. Nessa zona
de sombra, terá o policial honrado que busca
melhores condições para a família, é ilegal mas
a motivação é compreensível. O outro é a milícia,
que começa criando insegurança — até em
bairros nobres — para vender segurança.
Valor: Como isso impacta os projetos políticos
de Bolsonaro?
Soares: O presidente investe em duas vias para
um autoritarismo pleno e mais institucionalizado.
Por ora há um discurso e muita disputa no
interior de cada instituição. Mas aos poucos, a
via húngara [pode ser um modelo]. Ela se caracteriza
pelo caráter gradualista da derrocada de
direitos e de barreiras ao exercício do poder.De
tal maneira que vão se formando meios legais
de destruir a legalidade. Isso se dá ao longo do
tempo. Isso está em jogo e há a manifestação de
juízes e desembargadores, promotores, a favor
de Bolsonaro e suas bandeiras, mesmo quando
elas confrontam a Constituição. Essa é a via húngara,
que leva tempo, e nós estamos resistindo.
Por outro lado há a via boliviana, em que as Forças
Armadas e o Exército se recolheram, as polícias
agiram nas províncias, ocupando sede de
governo, governadores e promovendo o golpe.
Isso se deu com a anuência do Exército e sua
omissão. Claro que o Brasil é mais complexo.
Entidades citadas por Luiz Eduardo
Soares reagiram com notas ou comentários.
A Polícia Civil do Rio de
Janeiro diz que cumpriu todos os
protocolos no episódio de Jacarezinho e
considera que “barricadas, traficantes invadindo
residências com fuzis, granadas explodindo
nas ruas e crianças sendo aliciadas
são considerados situações excepcionais”.
A Polícia Federal considerou que nada
tem a comentar porque não foi ela a responsável
pela operação no Jacarezinho.
Em nota, o Ministério Público do Rio de
Janeiro informou que criou um grupo temático
para atender às determinações para
reduzir a letalidade e a violência no Estado,
que já iniciou os trabalhos criando um canal
para receber denúncias de abusos cometidos
durante operações policiais em comunidades
e dialogando com representantes
da sociedade civil. Esse grupo também
presta suporte na atuação dos promotores
de Justiça, como é o caso da força-tarefa instituída
para apurar grandes fatos ocorridos
na operação policial do Jacarezinho.
O Exército diz que a legislação vigente
prevê que as polícias militares são forças auxiliares,
reserva do Exército. E acrescenta
que é preceito da ética militar o respeito à
dignidade humana e o procedimento ilibado
em qualquer situação.
A Secretaria de Segurança Pública do Estado
de São Paulo afirma que as forças de segurança
do Estado seguem rigoroso controle
hierárquico. “As polícias paulistas atuam
para a preservação da vida e, por isso, São
Paulo é o Estado com a menor taxa de homicídios
no país, com 6,4 casos/100 mil habitantes,
e as mortes decorrentes por intervenção
policial estão em queda há dez anos.
O governador João Doria se reúne semanalmente
com os comandantes da Polícia Civil,
Militar e Técnico Científica, do Corpo de
Bombeiros, além do secretário de Segurança
Pública e os respectivos secretários executivos
para debater a política pública da
área. Isso acontece desde a primeira semana
de governo.”