UPP: origens, perspectivas, contextos institucionais e conjunturas políticas
Entrevista de Luiz Eduardo Soares
a René Ruschel (em 1 de dezembro de 2011)
Pacificadora, UPP, implantado pelo governador Sérgio Cabral, é muito semelhante ao Mutirão pela Paz, idealizado por sua equipe em 1999?
Resposta: É basicamente a mesma com a diferença de que não obtivemos o mesmo grau de apoio e empenho por parte do governo, que, hoje, se verifica. Antes de relatar o que houve, em 1999, vale a pena, em poucas palavras, explicar o que é a UPP e o que era o Mutirão pela Paz. Em primeiro lugar, ambos são uma alternativa às incursões bélicas às favelas e às áreas pobres. Em tais incursões, morriam e ainda morrem suspeitos de envolvimento em práticas criminosas, como o tráfico. Morrem também moradores da comunidade e policiais. E a despeito de tantas mortes, nada acontece, do ponto de vista da segurança ou da redução das dinâmicas criminais, porque depois de subir o morro e matar –e, eventualmente, prender suspeitos e apreender drogas e armas, as quais, com frequência, eram e ainda são revendidas para o mesmo grupo de traficantes ou para grupos rivais– a polícia retornava e retorna ao asfalto. Portanto, o território em que reside a comunidade permanece abandonado, seja pelas forças da segurança, seja pelas demais instituições do Estado, responsáveis pela prestação de serviços à comunidade. O modelo alternativo (Mutirão ou UPP) faz o contrário: oferece às áreas pobres o serviço público de segurança, 24 horas, do mesmo modo que oferece aos bairros de classe média. Um serviço que deve ser caracterizado pela qualidade e pelo respeito à cidadania, garantindo-se seus direitos (pois a segurança nada mais é ou deveria ser senão a garantia dos direitos contra eventuais intervenções que os desrespeitem). Ou seja, a polícia entra no território e não sai. E entra avisando, evitando surpresas e procurando evitar confrontos, pois eles só servem para colocar em risco a vida de inocentes. Idealmente, tanto no Mutirão quanto na UPP, o policiamento deveria ser comunitário ou orientado para a resolução de problemas, como é desejável em uma democracia que respeite os direitos humanos. Enquanto não houver preparo suficiente dos quadros policiais para a aplicação de tais metodologias, o que se espera é pelo menos respeito à legalidade e urbanidade no tratamento de todos os cidadãos, sem racismo, sem preconceitos ou viés de classe. Uma vez desalojados grupos armados que porventura tiranizem as comunidades, elas não passariam do despotismo do tráfico ao despotismo policial, mas a uma nova fase de vigência da legalidade constitucional. Nesse quadro, os serviços públicos poderiam ser providos e teriam de sê-lo. Assim, não haveria mais desculpas para que o Estado deixasse de cumprir suas obrigações nas áreas mais diversas, a começar por educação e saúde. Como se vê, essas concepções, formuladas e aplicadas em 1999, são exatamente aquelas hoje incorporadas pelo projeto das UPPs. E o digo com muita satisfação. Afinal, antes tarde do que nunca.
Em 1999, o sucesso foi grande, os resultados foram excelentes, a receptividade na mídia e na sociedade foi a melhor possível. Entretanto, a PM não pôde contratar e treinar pessoal especificamente para o projeto, porque não havia os recursos correspondentes, os quais, como se sabe, só aparecem quando o governo reconhece tratar-se de prioridade e abraça a causa, plenamente. Além disso, como o governo estava dividido, na área da segurança, entre mim (subsecretário, depois coordenador de segurança, justiça e cidadania) e o secretário de segurança (primeiro, o general Siqueira, depois o coronel Josias Quintal), a resistência que era fortíssima e até hoje existe dentro da própria PM era vencida passo a passo, a muito custo, o que sacrificava a implantação do programa e a velocidade de sua expansão. Por fim, o êxito, paradoxalmente, voltou-se contra o programa. O governador Garotinho, que havia sido eleito por uma ampla coalizão de esquerda, que incluía o PT, ficou incomodado com a presença constante da vice-governadora, Benedita da Silva (do PT), nas favelas e na mídia, acompanhando seja as sondagens que eu conduzia para implementar o programa com participação popular e os cuidados necessários, seja o próprio processo de implantação do programa. É importante salientar que o nome Mutirão pela Paz aludia ao fato de que o Bope ocupava o território, tendo anunciado publicamente o que ocorreria (para evitar confrontos), recuperava-o para a vigência do Estado democrático de direito, garantindo o respeito aos direitos e às liberdades da comunidade, uma unidade regular da PM substituía a unidade especial, orientada e supervisionada, e acompanhada pela Ouvidoria que criamos, de modo a garantir a fidelidade policial à legalidade constitucional e aos direitos humanos, e, de imediato, começavam as ações sociais envolvendo diversas áreas de governo, simultaneamente: educação, saúde, trabalho, urbanização, transporte, habitação, meio-ambiente, serviços, etc…
O destaque do programa Mutirão pela Paz me conferia grande visibilidade, mas eu não era um problema, porque não representava risco político para o governador, pois não tinha pretensões eleitorais. No entanto, a visibilidade que a vice-governadora estava alcançando poderia, sim, ameaçar planos futuros do governador, que não desejava ficar à sombra de uma liderança ainda em forte ascensão, como era o caso de Benedita da Silva. Por isso, quando o programa, depois de alguns meses, conquistou uma aprovação praticamente consensual, o governador chamou-me ao Palácio Guanabara e, parabenizando-me pelo sucesso obtido, me disse que deveríamos interrompê-lo, provisoriamente, para relançá-lo em grande estilo, com outro nome, de modo a transformá-lo na principal marca de seu governo, que se pretendia popular. Atuar com políticas inter-setoriais nas áreas mais pobres, tendo superado a presença armada e ostensiva do tráfico, representava exatamente o que seu governo pretendia. Mas os dividendos político-eleitorais teriam de ser dele e de seu grupo. Isso ele não vocalizou, evidentemente, mas nem seria necessário, porque estava suficientemente claro. E se não estivesse, o futuro imediato evidenciaria. O governador suspendeu o Mutirão por um projeto que acabou abandonando a etapa relativa à segurança pública, a qual era, afinal de contas, essencial e que não passava de um clientelismo fisiológico e populista de quinta categoria.
Fui exonerado em março de 2000. Na sequência, o governo perdeu o controle da violência policial que, por sua vez, provocou reações violentas do tráfico e das comunidades tratadas pelas polícias com brutalidade criminosa. No afã de retomar algo do que eu e minha equipe havíamos construído, o governo resolveu, no segundo semestre daquele mesmo ano, relançar uma versão condensada do Mutirão pela Paz, que se implantaria apenas nas comunidades do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, em Copacabana. Para liderar a experiência, foi convocado um querido amigo, ex-aluno e que fora meu braço direito na sub-secretaria: o então Major Carballo (hoje, tenente-coronel). Carballo conduziu a implantação do novo projeto brilhantemente, com notável espírito de liderança, energia e firmeza no combate à corrupção e à violência policial. Ele deu ao projeto o nome, GPAE (Grupamento policial em áreas especiais), e em pouco tempo conquistou a confiança e a admiração dos moradores. O projeto foi um imenso sucesso. Aquelas comunidades, marcadas por tantos homicídios, não viu nenhum assassinato durante os dois anos em que Carballo esteve à frente do projeto. O GPAE não envolvia inter-setorialidade de políticas públicas. Reduzia-se à esfera da segurança pública. Mas a lucidez do Major Carballo o levou a incentivar iniciativas sociais e o resultado foi excepcional. A experiência foi objeto de muitas matérias na midia, inclusive internacional. A BBC realizou um ótimo documentário a respeito. O problema do GPAE era a virulenta resistência da PM, que se negava a apoiar o comandante da unidade e lhe enviava policiais problemáticos, que outros Batalhões já haviam rejeitado. A intenção era mesmo boicotar o projeto. O governo tentou preservá-lo como a joia da coroa, mas sem intervir na PM para remover a resistência e as fontes do boicote. O governo nunca vislumbrou a possibilidade de universalizar o GPAE como uma política pública, mudando a polícia e acrescentando as políticas sociais ao projeto. Talvez porque fazê-lo significasse render-se à nossa política, ao nosso plano original.
O governo Cabral começou o primeiro mandato, em janeiro de 2007, lançando seu grito de guerra: minha política de segurança será original. Será a política do confronto. Apesar da midia ter saudado a iniciativa do governador, qualquer cidadão minimamente informado ou não desprovido de memória sabia muito bem que nada havia de original nem na política proposta, nem no nome com que o governador a batizara. Os resultados foram os de sempre. Em geral, mais do mesmo redunda nos mesmos resultados. Um ano e meio ou dois anos depois, o governador começou a prever dificuldades para a reeleição. O seu bardo guerreiro não surtira o efeito pretendido. Recebeu, então, de grupos empresariais bem informados, alimentados por um engenhoso e diligente think-tank, a proposta de um novo projeto, que tinha tudo para dar certo, simplesmente porque já mostrara que funciona e porque era o óbvio. E assim o governador, para o bem da população do estado do Rio, abraçou a ideia. Como ela foi o sucesso previsto, tornou-se alavanca fundamental de sua reeleição. Cabral teve o mérito de impor a racionalidade do projeto da UPP à PM, dobrando resistências. Para isso contou com a ajuda imprescindível e a liderança de um homem honrado, bem intencionado, que conquistou a admiração da sociedade. Refiro-me ao secretário Beltrame. Divergi dele quando ele comandou a política do confronto e ainda divirjo quando ele não age para transformar as polícias, o que considero indispensável até mesmo para que as UPPs tenham futuro. Mas nunca deixei de reconhecer seu valor, sua coragem e honestidade. E isso no ambiente da segurança pública fluminense é muito. Faz a diferença.
O desafio do programa UPP –hoje aplicado em 19 comunidades, em um universo de centenas– é tornar-se política pública, ou seja, alcançar escala e sustentabilidade, isto é, universalizar-se
e manter-se no tempo. Para que o programa se converta em política pública, incorporando essas duas qualidades, é necessário institucionalizá-lo, quer dizer, entregá-lo à PM –não em sua dimensão social ou inter-setorial, é claro, mas em sua dimensão segurança pública. Não é possível continuar contratando e treinando policiais ad hoc, e lhes pagando mais do que aos demais, para cada nova UPP. No entanto, o governo sabe que não pode passar à PM essa responsabilidade, sob pena de por tudo a perder, tal o nível de degradação da instituição –a despeito de a comporem milhares de profissionais honestos e devotados, que arriscam suas vidas por salários indignos (os segundos piores do país) e merecem todo o nosso respeito. Esse é o ponto. Para que as UPPs tenham futuro, é preciso mudar as polícias, em especial a PM. Mais que isso: refundá-las. Até porque enquanto uma UPP é criada, a PM continua incursionando em favelas de forma irresponsável, policiais militares criam novas milícias e promovem mais execuções extra-judiciais. Os casos de corrupção e brutalidade estão longe de constituírem casos isolados ou desvios de conduta individuais. Eles formam um padrão e, portanto, expressam uma dinâmica institucionalizada. Os números são eloquentes nesse sentido: entre 2003 e 2010, 8.708 pessoas foram mortas por ações policiais, no estado do Rio. Em média, mais de mil por ano. São produto da resistência violenta de traficantes a ações legais de policiais? Não. Os dados provam que não, a despeito do trágico silêncio do MP e da Justiça, com raras exceções –entre elas estava a brava juíza Patrícia Accioly, barbaramente assassinada por um grupo de policiais, sob a direção do comandante do Batalhão da área.
2 – Fundamentalmente, o que diferencia as duas propostas?
Resposta: As UPPs têm o apoio pleno do governador, que entendeu perfeitamente sua importância, inclusive política, até mesmo para seu futuro eleitoral. Não foi o que ocorreu em 1999, como acabo de relatar.
3 – A política de segurança pública que o senhor propôs à época previa uma mudança não só no modelo de gestão, mas principalmente de conscientização das polícias civil e militar sobre valores como ética, cidadania e respeito às leis. Esse projeto ainda é factível?
Resposta: No Rio de Janeiro, já não creio que seja possível nenhuma mudança incremental, gradualista, no âmbito de uma reforma. Acredito que, no Rio, tenhamos de escolher entre o status quo, que é desastroso, ou a refundação das instituições policiais, mudando desde estruturas organizacionais até metodologias de trabalho, da formação à informação, da gestão aos controles interno e externo, da perícia à cultura. Como fazê-lo se o artigo 144 da Constituição federal é uma camisa de força? Seria necessário mudá-lo. Entretanto, isso não se fará sem que o governo do Rio, o governo federal, a mídia, a opinião pública e os movimentos sociais negociem um consenso mínimo do qual participem lideranças policiais não-corporativas. Nesse caso, a mobilização se alastrará por outros estados e contagiará o Congresso. Mesmo que isso não aconteça, a energia política desprendida seria provavelmente suficiente para que pelo menos se abrisse uma janela legal para que o Rio experimentasse a mudança que desejar, respeitados parâmetros nacionalmente estabelecidos, conformes aos princípios constitucionais. Era o que eu chamava, quando ocupei a secretaria nacional de segurança pública, em 2003, de desconstitucionalização da arquitetura institucional da segurança pública, associada à normatização infra-constitucional do SUSP, sistema único de segurança pública: cada estado poderia mudar com liberdade, desde que obedecesse as normas do SUSP –as quais garantiriam uma unidade nacional, respeito a padrões comuns e qualidade democrática e técnica.
4 – A ocupação do Complexo do Alemão pela UPP acaba de completar um ano. Qual sua avaliação de resultados?
Resposta: As UPPs são extremamente positivas, por mais que haja problemas. Os problemas são e serão naturais, porque a realidade é complexa, as ações sociais tardam e os policiais, mesmo diferentes de seus colegas, acabam contagiados pela corporação. De todo modo, enquanto houver acompanhamento de movimentos sociais e da mídia, e enquanto a presença policial for tão permanente e numerosa quanto é nas áreas nobres da cidade, uma UPP será infinitamente melhor para a democracia e os direitos humanos do que o poder arbitrário armado de um grupo qualquer. O que não se pode é vender a ideia de que, no Rio, há uma divisão entre o bem, representado pelas polícias, e o mal, representado pelos traficantes. Isso é falso e mascara nosso verdadeiro problema, que é a indissociabilidade, no Rio, entre crime e polícia. Só houve e só há tráfico, funcionando no velho modelo territorializado, porque segmentos policiais corruptos se associaram aos traficantes. A grande questão é mudar, refundar as polícias. Esta é a condição sine qua non para um avanço consistente no estado do Rio de Janeiro. Atribuir aos traficantes o monopólio do mal é um erro patético ou mera manipulação política e retórica.
5 – No livro, ”Meu casaco de general”, o senhor narra às dificuldades que enfrentou no governo Anthony Garotinho. Qual foi a pior: a corrupção, o corporativismo, o jogo rasteiro pelo poder ou a falta de vontade política?
Resposta: Não é fácil analisar, até porque o governador mudou muito e trocou aliados. Em 1999, não era assim. Havia virtudes. Tanto que uma coalizão progressista e democrática elegeu aquele governo e o sustentou. Tanto que, no final do ano, a aprovação popular foi a maior do país. E foi aí que começou a decadência e a derrocada. Em novembro-dezembro de 1999, o governador convenceu-se de que teria chances de eleger-se presidente e resolveu candidatar-se. Como as esquerdas já tinham candidato para 2002, ele teria de buscar abrigo e aliados no campo conservador ou no centro ideologicamente anódino e fisiológico. Mas isso arruinaria seu governo e poria a pique a coalizão que o elegera e com a qual governara com tanto sucesso durante o primeiro ano, 1999. Foi o que aconteceu. O governador procurou a oposição, na Assembléia, uniu-se ao PMDB de Cabral e Picciani, saltou de uma agremiação partidária para outra, galvanizando o mosaico evangélico-fisiológico, e perdeu a própria identidade que criara com tanto esforço e boas iniciativas, em 1999. Quando começou a guinada à direita, fui o primeiro a ser exonerado. O próprio governador me dizia, desde o começo de 2000, que minha cabeça era a primeira pedida pelos novos aliados. Mas antes da guinada à direita, já havia problemas, muitos problemas, porque o governador adotou a ambiguidade como método de gestão. Ele queria ficar bem com os dois pólos da opinião pública, os que defendiam reformas policiais e políticas civilizadas, com respeito aos direitos humanos, e os que preferiam leis mais duras e estímulo à violência policial, em políticas de confronto. Para manter o equilíbrio, contando com o apoio de ambos os pólos, me mantinha no cargo de subsecretário de segurança (e depois de coordenador de segurança, justiça e cidadania), ao mesmo tempo que mantinha na posição de secretário de segurança um general e depois um coronel PM sem afinidades com nossa política democrática e transformadora. O pior é que o cálculo do governador não se esgotava nessa pseudo-solução salomônica. A equação não era estática. Ele jogava um perverso jogo pendular que não demorei a identificar e antecipar: ora me valorizava e deslocava o poder em minha direção, ora valorizava meu rival, deslocando o poder em sua direção. Não seria possível levar adiante esse malabarismo oportunista por muito tempo. Acumulei forças e puxei a corda, quando senti que não era mais possível conviver com contradições. Compartilhei com a sociedade: ou radicalizamos o combate à banda podre das polícias, ou seremos tragados pela tsunami da violência e da corrupção policiais. O governador recusou o confronto que propus. Optou pelo convívio para evitar rupturas e riscos políticos. Como os anteriores e os posteriores sempre fizeram. Por isso estamos, hoje, na situação em que nos encontramos, assistindo o avanço das milícias, essas máfias policiais que se politizam e assumem protagonismo crescente.
6 – O senhor afirma ainda que processo de transformação na área de segurança pública do Rio de Janeiro foi inviabilizado pela ambição
presidencial de Garotinho. Em troca de apoio político ele teria negociado uma série de concessões. O projeto das UPPs não corre esse mesmo risco em função da disputa pelo governo do Estado, em 2014?
Resposta: Não creio. Ao contrário: o governador Cabral tem nas UPPs seu maior cabo eleitoral. Mas o problema não está aí. Está na indisposição para confrontar as estruturas policiais.
7 – A violência no Rio sofre um processo migratório. Agora, a bola da vez são as milícias que ameaçam de morte o deputado Marcelo Freixo, do PSOL. Como conter essa expansão desenfreada? Ou esse ciclo sempre existiu e apenas vem à tona por questões específicas?
Resposta: Em meados dos anos 1990, foi o líder comunitário de Vigário Geral, criador da Casa da Paz, Caio Ferraz, quem teve de sair do país. Em março de 2000, fui eu, depois de ser exonerado do governo por denunciar as redes clandestinas da banda podre da polícia fluminense, com ramificações políticas Hoje, Freixo é o alvo e teve de se afastar por duas semanas até que sua segurança pessoal se reestruturasse, ante a multiplicação das ameaças. Hoje, as máfias policiais chamadas milícias constituem o problema principal, na esfera da segurança pública. Muitos fatores concorreram para a formação dessa hidra criminosa, que aterroriza comunidades e se apropria de percentuais de todos os negócios que nelas se realizam –além de transacionarem drogas e armas, quando conveniente. Vou destacar quatro:
(1) a manutenção do modelo policial legado pela ditadura, a despeito das mudanças generalizadas suscitadas pelo processo de transição da ditadura para a democracia. A área da segurança permaneceu intocada e a arquitetura institucional herdada do período autoritário foi fixada no artigo 144 da Constituição. Ora, essas estruturas organizacionais serviam com eficiência à repressão exercida pela ditadura, mas são ingovernáveis em ambiente democrático, e refratárias a uma gestão comprometida com valores legalistas e com os direitos humanos. Gestão que envolveria efetivo controle externo, inclusive, e atendimento aos cidadãos (inclusive negros e pobres) como destinatários dos serviços policiais, não como inimigos.
(2) A natureza da transição brasileira, ao contrário da sul-africana e de tantas outras, saltou a etapa da verdade e foi diretamente ao estágio da reconciliação, para usar a abordagem que Nelson Mandela consagrou. Isso tem a ver com o caráter elitista e excludente de nosso processo político, que privilegia acordos pelo alto, exorcizando rupturas e conflitos entre segmentos das elites dirigentes, que acabam se recompondo, não importando o preço a pagar. Em nosso caso, entre tantos outros, há um preço que estamos pagando até hoje: a preservação quase intocada da cultura policial, orientada para a defesa do Estado e não da cidadania e dos direitos.
(3) Políticas de segurança adotadas no estado do Rio de Janeiro estimularam a brutalidade policial e não atuaram sobre os mecanismos de controle interno e externo, e de gestão efetiva na ponta. Refiro-me aos governos Moreira Franco (87-90), Marcelo Alencar (95-98), Garotinho (pós março de 2000, até 2002), Rosinha (2003/2006) e Cabral (2007 até hoje, salvo nas UPPs). Crimes policiais ou foram tolerados ou tratados como casos individuais, mesmo quando envolveu chefes de polícia –um dos quais, hoje condenado, dirigiu a polícia civil fluminense durante 7 anos. A ligação entre violência policial e corrupção dá-se do seguinte modo: quando se confere ao policial na ponta licença para matar (o que difere do exercício da legítima defesa ou da defesa da vida de terceiro com recurso extremo à força letal), confere-se a ele, ao mesmo tempo, licença para não matar, negociando a vida e a liberdade do suspeito. Cria-se, assim, uma moeda, que rapidamente se inflaciona, atraindo mais e mais operadores e investimentos. Das negociações no varejo do cotidiano passa-se a sequestros de suspeitos, que são conduzidos a casas clandestinas, onde se processam as mesmas negociações. Mas é custoso e arriscado sequestrar, manter a casa clandestina, travar negociações com representantes ou parceiros do sequestrado, e depois ocultar o corpo, se as negociações não tiverem êxito. Transita-se, então, para uma terceira fase, nessa racionalização da economia da corrupção: pactua-se um acordo (o arreglo ou “arrego”, na variante carioca) que garante um percentual ou um valor constante, semanal ou quinzenal, aos policiais do lucro auferido em atividades criminosas de traficantes ou outros operadores do crime. Esta fase significa uma evolução, porque terceiriza riscos e custos, preservando ganhos. A quarta etapa desse desenvolvimento corresponde ao momento presente (ainda que todas as fases continuem existindo e convivendo, destaco o que é predominante). Hoje, os segmentos policiais corruptos mais empreendedores perceberam que, no cálculo de custos e benefícios, valeria a pena assumir o protagonismo criminoso e agir com mais audácia, no velho estilo mafioso: impor-se pela força sobre comunidades e extorquir todas as atividades econômicas, da moradia ao transporte, do comércio à luz, do gás à TV a cabo. Chegaram também à conclusão de que seria mais vantajoso, em vez de apoiar candidatos que garantissem sua imunidade, lançar seus próprios candidatos a cargos eletivos.
Vemos, portanto, que na base do processo de degradação estava a política de segurança que dava aos policiais na ponta carta branca para matar.
(4) O orçamento público para a segurança, em quase todo o Brasil, é irreal. Os salários pagos à maioria dos policiais são insuficientes, o que os obriga a buscar um bico ou segundo emprego para complementá-los. Como todos nós, os policiais buscarão a segunda atividade na área de sua especialidade, ou seja, na segurança privada. Ocorre que isso é ilegal. Em nosso país, com raras exceções, policiais não podem trabalhar na segurança privada. Certa ou errada, esta é a lei. Isso significa que os policiais são empurrados para uma situação irregular. As autoridades, na maioria dos estados, fingem que não veem o que está acontecendo diante de seus olhos porque, se aplicassem a lei, reprimissem os policiais e proibissem o bico, haveria forte demanda por aumentos salariais, colocando em risco o orçamento. Preferem, então, a paz dos cemitérios e a cumplicidade surda com a ilegalidade. Em nome da estabilidade de orçamentos artificiais e insustentáveis, aceitam conviver com a ilegalidade. Veja que escândalo: em quase todo o país, o Estado, como instituição, tem um pé na legalidade e um pé na ilegalidade. O orçamento público da segurança é financiado ou viabilizado por um acordo tácito com a ilegalidade. Esta conexão clandestina entre Estado e ilegalidade eu denomino “gato orçamentário”, para usar o vocabulário dos milicianos. Não existem apenas os “gatos” ou ligações clandestinas, piratas e ilegais de luz, internet e TV a cabo, nas favelas. Há um gato mais gordo e problemático, no centro do poder, ligando o lícito ao ilícito, as instituições e a ilegalidade, o orçamento público da segurança e a segurança privada informal. Na medida em que as autoridades se recusam a fiscalizar, prosperam, protegidas e ocultas sob o manto da omissão oficial, dois tipos de dinâmicas: as benignas e as malignas.
As primeiras são aquelas conhecidas: policiais, na folga, fazendo a segurança de shows, lojas, condomínios, restaurantes, etc… Trata-se de uma ilegalidade, mas benigna, porque a motivação é honesta. Esses homens precisam sobreviver, alimentar suas famílias, pagar as contas e o aluguel, como todos nós. Claro que há prejuízos tanto para os profissionais quanto para a segurança pública, porque eles chegarão exaustos às polícias ou porque a hierarquia será subvertida (quando superior e subalterno forem, na folga, sócios do ilícito, o primeiro agenciando o segundo, em firmas de segurança privada de sua propriedade, em nome de algum testa de ferro). Outros prejuízos são: o atendimento aos clientes privados nos dias dedicados à segurança pública e os turnos de trabalho irracionais (12 horas de trabalho por 48 de folga ou 24 por 72). Muitas vezes não se corrige esse absurdo e não se racionalizam os turnos para não quebrar a coluna vertebral do segundo emprego. Além disso, quando trabalham informalmente (e ilegalmente) na segurança privada, os policiais não são cobertos por seguro, equipamentos de qualidade e metodologias de trabalho adequadas. Por isso, morrem mais na folga do que no trabalho. Ou seja, submetem-se a maiores riscos na segurança privada do que nas polícias.
Por outro lado, há as dinâmicas malignas, que se desenvolvem sob esse manto da omissão oficial: aproveitando-se da sistemática inexistência de fiscalização, policiais civis e militares da banda podre provocam insegurança para vender segurança, formam grupos de extermínio e, finalmente, organizam-se sob a forma de milícias. Portanto, estas são filhas bastardas do gato orçamentário. Atenção, isso não quer dizer que baixos salários determinem a corrupção. Não creio nisso. Se fosse assim, a maioria do povo brasileiro, que ganha pouco, seria corrupta e criminosa, o que, obviamente, não é verdade. O que estou dizendo é diferente: a insuficiência do orçamento público na área da segurança acaba obrigando as autoridades a não fiscalizar a segurança privada informal, o que gera um ponto cego do qual se aproveita a banda podre das polícias para agir com liberdade e organizar-se criminalmente.
Alguém dirá: essa fiscalização cabe à Polícia Federal. É verdade, mas, por convênio com o Ministério da Justiça, seria possível que os governos estaduais evocassem essa responsabilidade, o que alguns estados já fizeram no passado, por curtos períodos. O fato é que ninguém quer meter a mão nesse vespeiro e trazer à tôna esse debate, com transparência. Eu gostaria de enfatizar, entretanto, que, nas polícias do Rio, também há dezenas de milhares de policiais honestos, honrados e competentes, que arriscam suas vidas por salários indignos (os segundos piores do país), e que são vítimas da degradação institucional. Eles se sentem acuados e humilhados pelo convívio com a banda podre e também desejam mudanças profundas.
8 – A prisão do traficante Nem teve uma repercussão hollywoodiana na mídia. O que permanece obscuro nesta operação é apurar o destino de todo o dinheiro arrecadado pelo tráfico na Rocinha – especulou-se algo em torno de R$ 10 milhões mensais – e que certamente foi ‘lavado’ no asfalto. A faxina não precisa ser geral? Porque só no morro?
Resposta: Isso é bastante complicado. Não há uma central de comando e muito menos grandes empresários, fora das favelas, controlando lucros e investimentos. O que há são focos e iniciativas, com planejamento muito limitado e dependente de um grande varejo, cuja lógica de funcionamento é inteiramente irracional, tanto econômica quanto politicamente. O negócio das drogas ilegais vai muito bem e continuará indo bem em todo o mundo democrático. A ideia de que seria possível reprimi-lo já foi negada pela prática –e não me refiro ao Brasil apenas. Entretanto, o negócio das drogas não se confunde com o modelo adotado no Rio, que eu considero irracional: ele é caro e arriscado demais, quando haveria alternativas mais simples, baratas, eficientes e mais seguras. Não é necessário recrutar, treinar e manter coeso um pequeno exército, controlando territórios e comunidades, para vender drogas. Basta fazer como se faz em outros lugares: eleger locais, estabelecer códigos, praticar o “delivery”, etc… Nesse sentido, na medida em que as UPPs vão sendo implantadas e desalojam grupos de traficantes, elas, involuntariamente, forçam a modernização do tráfico, a qual garantirá sua permanência e elevará seu lucro, aumentando a expectativa de vida de seus operadores e reduzindo a carga política que se lhes opõe.
9 – Apesar da violência generalizada no Brasil, o governo federal nunca encarou o tema segurança na proporção que deveria. O País não requer um projeto nacional, que envolva União, Estados, municípios e a própria sociedade? O que impede viabilizá-lo?
Resposta: O artigo 144 da Constituição não atribui responsabilidades aos municípios e à União, a qual se envolveria apenas por meio das polícias federal e rodoviária federal. Todo o fardo é depositado nos estados. Para mudar a Constituição, é necessário uma ampla aliança, capaz de sobrepujar os lobbies corporativos extremamente reacionários (ainda que a massa policial deseje a mudança do modelo policial, conforme pesquisa que coordenei com Marcos Rolim e Silvia Ramos, em 2009). Só seria possível articular tal aliança se houvesse uma grande mobilização popular (o que nunca houve e dificilmente haverá, porque a questão é complexa e plena de mediações técnicas, nada que se aproxime das paixões e do simplismo de demandas políticas). Ou se o governo federal liderasse esse esforço político. Mas nenhum presidente, nem a presidenta Dilma, quis chamar para si a responsabilidade, a qual traz consigo elevados riscos de desgaste. Tem sido muito mais confortável deixar a bomba no colo dos governadores e fazer “cara de paisagem”, lavando as mãos.
10 – O senhor é favorável à unificação das policias civil e militar?
Resposta: Não. Temos duas instituições extremamente problemáticas e, via de regra, Brasil afora, ingovernáveis. Recordemo-nos de que a taxa média, no Brasil, de esclarecimento do crime mais grave, o homicídio doloso, é de 8%. Lembremo-nos do que ocorre com as PMs, salvo honrosas exceções. Imagine juntar duas estruturas organizacionais irracionais, inadequadas, refratárias ao trabalho adequado a uma democracia. Em vez de dois problemas, teremos um problema maior ainda que a soma dos dois. O que, sim, é indispensável é acabar com a divisão do ciclo do trabalho policial (uma polícia faz a parte ostensiva-preventiva do trabalho policial, outra polícia faz a parte investigativa do trabalho policial). A PM é obrigada, por lei, a copia o modelo organizacional do Exército, o que é absurdo, porque as funções são inteiramente diferentes. Ou seja, precisamos de polícias de outro tipo, cada uma delas realizando o ciclo completo do trabalho policial (aquilo que, hoje, está distribuído entre a PM e a polícia civil). Essas polícias novas e unificadas podem ser definidas por territórios (por exemplo, municípios maiores, etc…, regiões metropolitanas) ou por tipos de crime aos quais se dedicariam: pequeno potencial ofensivo; médios e graves; crime organizado, por exemplo. Qualquer modelo que viesse a ser adotado teria de sê-lo num período de vários anos de transição. Em paralelo, seria preciso normatizar o SUSP (sistema único de segurança público), que estabeleceria parâmetros nacionais para todas as polícias, nas áras de formação, informação, gestão, controle interno e externo, perícia técnica e conexão com políticas preventivas inter-setoriais.
11 – O projeto “Tolerância Zero”, uma experiência bem sucedida na cidade de Nova York, já foi amplamente debatido no Brasil sem resultar em nenhum benefício prático. Porque aqui não deu certo?
Resposta: Porque nunca foi tentado. Mas se fosse, não daria certo. Para que haja rigor na exigência de cumprimento da lei, o Estado e as instituições públicas, a começar por aquelas responsáveis por fazer cumprir a lei, sejam as primeiras a cumpri-la. Muito bem. Se for assim, viva a tolerância zero com os crimes perpetrado pelo Estado e por suas agências, especialmente as polícias. Cumprida esta etapa, aconteceria uma verdadeira revolução no relacionamento entre Estado e sociedade, a desigualdade no acesso à Justiça deixaria de existir e a transformação assim revolucionária, no caso brasileiro, acabaria por tornar praticamente desnecessário o rigor com a sociedade.
12 – Como cidadão, o senhor continua otimista em relação ao futuro da segurança pública no Brasil?
Resposta: Apesar dos pesares, como procurei demonstrar em “Cabeça de Porco”, a esperança é um dever ético