Versão integral da entrevista a Marcelo Moura de Souza Santos, revista Época
Aqui está a versão integral da entrevista a Marcelo Moura de Souza Santos, da qual a revista Época publicou uma frase. Repito: uma frase.
Caro Luiz Eduardo,
Obrigado pela gentileza. Do que trata seu próximo livro?
Para não tomar seu tempo, resumirei minhas perguntas em uma só, de resposta tão longa quanto o senhor puder. O que explica e como resolver o caos no sistema carcerário brasileiro?
Com um abraço,
Marcelo
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Caro Marcelo,
divido a questão em duas:
(1) Não há como escapar ao óbvio e, portanto, ao lugar comum entre nós, críticos do sistema penitenciário: Se a LEP (Lei de Execuções Penais), que rege o sistema penitenciário, não é cumprida e se isso ocorre, sistematicamente, é porque falham os responsáveis diretos por seu cumprimento, os executivos estaduais, e os mecanismos de controle, que incluem o Judiciário (as VEPs, Varas de Execução Penal, o CNJ, o DEPEN, isto é, o Ministério da William da Rocinha buscando Justiça, assim como os Conselhos). Há aí uma gradação. As omissões e as irresponsabilidades distribuem-se desigualmente. Por exemplo, o CNJ tem procurado atuar com mais vigor e tem dado contribuições relevantes. O mesmo se aplica a algumas VEPs. A pergunta que surge é simples: se há omissões crônicas, que implicam transgressões graves e continuadas da LEP, ou seja, se há omissões institucionais múltiplas, que são criminosas (por definição, uma vez que a LEP está sendo desrespeitada), e se a própria mídia denuncia com frequência os desmandos, como explicar a reprodução desse padrão de comportamento, em tantas instituições, a começar pelos governos? A resposta é evidente: porque não há custos políticos. Esses desmandos criminosos não geram desgaste dos governos (são os principais culpados) junto à opinião pública. E aí reside o ponto mais importante: a maior parte da sociedade brasileira não se importa com o destino dos presos. Eles são percebidos como não-indivíduos, não-pessoas, portadores de um déficit de humanidade (pior, uma vez que animais têm recebido solidariedade quando maltratados). São vistos como pecadores que merecem sofrimento, castigos superiores às sentenças. Merecem um excedente de pena. Nesse sentido, a omissão governamental é aliada silenciosa do desejo de vingança da sociedade. O único meio de reverter esse quadro será a introdução de custo político ao descumprimento da LEP.
(2) A outra questão implicada em sua pergunta permite que eu complemente a análise: o Brasil se tornou o país do encarceramento de jovens negros e pobres. A população carcerária saltou de 140 mil, em meados dos anos 1990, para 550 mil, aproximadamente, hoje. Trata-se de uma das maiores taxas de crescimento do mundo. Essa realidade assustadora convive, paradoxalmente, com a impunidade de quem pratica homicídios dolosos. Pode-se afirmar que quase não há investigação desses crimes, que são os mais graves. A vida, positivamente, não é a prioridade da segurança pública e da Justiça criminal. Certamente, porque os que morrem, em sua imensa maioria, são jovens pobres e negros. Há 50 mil homicídios dolosos por ano no Brasil, dos quais, em média, considerando-se o conjunto do país, apenas 8% são investigados. Quem, então, está sendo preso e por que? 40% são presos provisórios ou cumprem prisão preventiva. Ou seja, faltam defensores públicos e uma mentalidade mais reflexiva e crítica aos magistrados e aos promotores. A grande maioria dos encarcerados está presa por crimes contra o patrimônio e por envolvimento em negociação de substâncias ilícitas (dois terços), mesmo que não tenha havido uso de arma ou vínculo com organização criminosa. A população carcerária que mais cresce é composta por varejistas não organizados e não-violentos de drogas. O proibicionismo é perverso. Provoca violência e criminaliza a pobreza. O quadro resultante é dantesco. A sociedade gasta fortunas para tornar mais difícil o futuro desses jovens encarcerados, quando retornarem à liberdade. Nossa falida política de drogas está montando uma bomba relógio sob nossos pés. A proibição das drogas é o mal maior, a irracionalidade autoritária que entope as penitenciárias de pobres, tornando-as cada vez mais superpovoadas, degradadas e degradantes.
Por isso, me parece um absurdo continuar a repetir o mantra: mais verbas e mais presídios. Que se usem as verbas não para construir presídios, mas para garantir a saúde e mínimas condições de vida aos presos. Precisamos de menos prisões, menos encarceramento e uma política de drogas compatível com a realidade e com perspectivas efetivamente democráticas. Investiguemos (e previnamos) os homicídios, reformando o modelo policial. E legalizemos as drogas.
Abraço,
le
Em 15/01/2014, às 16:11, Marcelo Moura de Souza Santos – Redação Época