Luiz Eduardo Soares: “Matança de Castro no Rio teve resultado nulo para segurança pública”
Ao Fórum Onze e Meia, antropólogo analisou a operação do governador que deixou 121 mortos e propôs alternativas a ações violentas da polícia
O Fórum Onze e Meia desta quinta-feira (6) recebeu o antropólogo e especialista em Segurança Pública Luiz Eduardo Soares para falar sobre a chacina promovida pelo governador Cláudio Castro (PL), na última semana, nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro. Ao todo, 121 pessoas foram mortas no âmbito da Operação Conteção, que foi considerada a mais letal da história do país.
Soares analisou o que o massacre significou para a Segurança Público do Rio e suas consequências sociais e políticas, além de debater quais ações são realmente efetivas para combater o crime organizado.
Confira a íntegra da entrevista.
Operação de Castro não está inscrita no âmbito da Segurança Pública
Em primeiro lugar, a gente não deve classificar essa operação – assim chamada, né, operação policial – como uma medida inscrita no âmbito da Segurança Pública. Não se trata propriamente de uma operação de Segurança Pública, porque evidentemente, como todas e todos sabemos, no dia seguinte, apesar do rastro de dor e de sofrimento, as rotinas seriam retomadas e as dinâmicas criminais se reproduziriam normalmente, como sempre acontece depois de uma incursão bélica irresponsável e criminosa como essa.
Então, nós temos perdas de vidas de suspeitos, de inocentes e de policiais também para resultado absolutamente nulo no que diz respeito à segurança pública. O Comando Vermelho não ficou mais fraco, não há menos armas em circulação significativamente, nem menos drogas, e há muito mais medo e toda uma profusão de sofrimento e de dor.
Então, se não foi Segurança Pública, foi o quê? Por que mobilizaram 2.500 profissionais e promoveram esse banho de sangue, esse massacre? Por razões políticas, isso está muito evidente para todas e todos. Isso se deu a uma semana do julgamento do governador no Tribunal Superior Eleitoral. No momento em que o Governo Federal saía das cordas, revertendo as expectativas – inclusive eleitorais relativas a 2026 – quando a ultradireita se dividia em guerras fratricidas na medida em que as suas atitudes absolutamente injustificáveis contra a soberania nacional acabaram produzindo seu esgotamento. Quando o governo Lula crescia inclusive em termos geopolíticos, rearticulando conexões, alcançando inclusive algum sucesso nas negociações à desfeita das investidas imperialistas com os Estados Unidos. Nesse momento, uma operação espetacular cinematográfica sangrenta produziria uma reversão na atenção pública, na consciência pública, modificando a agenda e dando uma sobrevida aos candidatos, pelo menos aos sonhos de candidatos da ultradireita.
E, por fim, a utilização recorrente e proposital, planejada, da expressão narcoterrorismo para requalificar criminosos ligados ao tráfico de substâncias ilícitas. Essa utilização recorrente inscrevia o discurso da ultradireita brasileira no léxico transnacional global do neofascismo, abrindo portas para veleidades imperiais e estadunidenses. Era uma espécie de senha, o passaporte para as futuras intervenções, sempre em nome da luta contra o terror, assim como no passado isso se dava em outros termos e provocou guerras neocoloniais, como nós sabemos.
Então, nós temos aí um blend, um combo de abjeções de fato repulsivas, de matar para mudar a agenda política, para se defender, se prevenir no Tribunal Superior Eleitoral e para conectar o Brasil. É alguma coisa absolutamente ignóbil, vil, inconcebível, inclassificável.
Apesar de 121 mortos, alta taxa de aprovação à chacina
Esse é um ponto muito importante, doloroso e angustiante para nós. Tem que ser objeto de uma reflexão profunda. Eu acho que nós devemos levar em consideração alguns fatores. Número um: desamparo. A sensação de medo e vulnerabilidade, de insegurança permanente, a ocupação territorial, o domínio sobre as comunidades por meio das armas, o domínio tirânico e o tráfico que sempre havia sido um problema, fonte de humilhação, de insegurança, de ameaça, passou a se converter em muito mais do que isso, porque começou a adotar a metodologia da milícia.
Nos últimos anos, assim como as milícias tinham aprendido com os traficantes de substâncias ilícitas, que era possível dominar territórios e comunidades para usufruir de benefícios econômicos, por meio das armas – e as milícias se constituíram a partir dessa, digamos, inspiração e maximizaram muitíssimo esse tipo de controle, tornando mais cruel, porque assentado em bases econômicas muito mais amplas – assim também o tráfico, na volta do parafuso, aprendeu com o sucesso econômico e político das milícias que era possível ir muito além do comércio das substâncias ilícitas. Era possível fazer isso, mas também extrair vantagens por taxas cobradas por meio de chantagem. São todas as atividades econômicas. Desde o acesso à terra e a empreendimentos imobiliários, a transportes públicos, informais e de comunicação, até a monopolização de alguns produtos como gás. Enfim, extraindo lucros e vantagens de toda a dinâmica econômica local.
E quando isso acontece, o tráfico deixa de ser apenas uma fonte de risco, de perigo, e de problemas mais circunscritos e se converte, de fato, num núcleo despótico de expropriação do trabalho. Então, o desamparo nas comunidades e a revolta contra o tráfico e contra as milícias é muito grande e não há iniciativa governamental efetiva alguma. Então, as pessoas, diante da inércia, do imobilismo e da reprodução permanente desse tipo de situação inaceitável, tende a aplaudir o que quer que seja, mas que represente, de alguma forma, possivelmente, nas suas posições, alguma mudança de atitude para sair da inércia.
O outro ponto que nós devemos considerar é a a metodologia dessas pesquisas, considerar que há momentos e momentos. Essa foi uma fotografia que se deu imediatamente depois do evento, sem informações sobre mutilações, torturas, facadas, decapitações e todo o horror que se promoveu ali na serra. Essas notícias ainda não tinham saído e elas estão sendo ocultadas de todas as maneiras. Não há acesso das perícias, as perícias não têm independência e, se nós pudermos fazer com que a realidade aflore efetivamente, as percepções vão começar a mudar.
Por último, nós não devemos esquecer que essas comunidades elegeram Bolsonaro e elegeram Cláudio Castro no primeiro turno. Então, nós não estamos falando de um raio no céu azul. Nós estamos falando da consolidação de um certo tipo de percepção do espaço público, de promoção de valores, isso tudo está ligado a uma disputa por hegemonia no plano ideológico, pelo qual e para qual concorrem muitas igrejas populares, inclusive com a teologia do domínio, teologia da prosperidade e com suas ações sociais que são até respeitáveis e importantes. Eu não quero generalizar, óbvio, uma crítica, mas nós temos que reconhecer que esse trabalho, essa luta por hegemonia tem se dado já há décadas e tem produzido efeitos cumulativos. Então, esse conjunto de fatores torna mais inteligível esse resultado.
Operações violentas não são efetivas no combate ao crime
Bom, o que é possível vai ser determinado pela luta política, pela disputa. Hoje, com esse governo do estado, praticamente nada é possível, não é? A não ser a resistência, a denúncia. Mas há muitas propostas objetivas, propostas concretas que o campo político tem produzido ao longo dos anos. E se nós tivéssemos acesso ao governo do estado, teríamos muito a avançar, mesmo contando com os limites estritos das determinações constitucionais nessa área, mesmo contando com esse modelo policial que herdamos da ditadura e mesmo contando com todas as limitações, haveria muito a fazer.
Número um: o problema do domínio territorial que está na preocupação da população, da massa popular e é uma preocupação de todas e todos. O domínio territorial só se dá por conta do acesso às armas e portanto a problemática das armas é o núcleo central. E como é que as armas chegam às comunidades, aos bunkers criminosos, milicianos e de tráfico? Por meio de transporte que pode ser perfeitamente acompanhado e investigado, prevenido e interceptado. Chega por meio das polícias. A degradação policial é parte constitutiva do nosso problema no Rio de Janeiro há muitos anos.
Eu já tive que fugir do Brasil, passar tempo fora, em função dessa luta e das denúncias em relação à participação de segmentos numerosos das polícias no que nós chamamos de crime. Nós chamamos com legitimidade, não é? De tal maneira que essa distinção polícial, em muitos momentos, em muitos segmentos, deixa de fazer sentido. Ora, segmentos policiais manobram, incentivam e viabilizam o tráfico de armas – e vamos nos lembrar que Bolsonaro tem a ver diretamente com isso por força de toda a legislação flexibilizadora que promoveu ao longo do seu governo. Não por por acaso, sabemos por meio dos trabalhos do Rafael Soares, excepcional jornalista aqui do Rio de Janeiro, que uma das principais fontes de abastecimento de munição e de armas para o Comando Vermelho é um CAC que fica situado em São Paulo. Nós compreendemos bem como é que essa rede vem funcionando. O tráfico e as milícias sendo formadas em parte por policiais, evidentemente, que recorrem às armas que obtêm junto às próprias instituições policiais. Então, nós temos de impedir que as polícias continuem promovendo o crime. Nós temos de impedir que as armas continuem influindo normalmente e chegando às comunidades.
E não faz nenhum sentido, se nós já temos uma realidade em que grupos armados controlam territórios, não tem nenhum sentido, numa área densamente povoada, subir o morro, entrar nessas para, por exemplo, prender alguém que está identificado como vinculado ao crime. Isso significa, então, deixar essa pessoa em liberdade e não cumprir o mandato judicial? Não. Essas pessoas saem eventualmente da comunidade, então por que invadir a comunidade com força bélica, colocando em risco a vida de milhares de pessoas e correndo risco, inclusive, de praticar execuções extrajudiciais, mesmo que sejam involuntárias em função da natureza mesma do conflito que se instala naturalmente. Por que fazer isso? Isso seria feito num bairro nobre? Isso parece uma pergunta demagógica, sempre repetida, parece uma pergunta simplória, mas é uma pergunta decisiva. Alguém teria a ideia de invadir um prédio de classe média ou da elite promovendo um banho de sangue para prender alguém? Isso não faz absolutamente nenhum sentido. Isso mostra um viés racista que tem de ser reconhecido e enfatizado. É um viés racista e classista desse tipo de concepção e “construção pública”. Então, você captura essas pessoas fora dessas áreas, né? E nós temos exemplos internacionais de enfrentamento de máfias, enfrentamento de crime organizado armado e que se dá dessa maneira.
Você acompanha, descobre quais são as rotinas, e planeja uma abordagem no espaço em que o suspeito tenha menos defesa armada para reagir e menos pessoas fiquem suscetíveis aos eventuais efeitos perversos daquela ação. Então, isso se faz e assim você prende, como alternativa a invasões que são absolutamente ineptas e criminosas na prática, impedir crescentemente que haja esse fluxo.
Como combater a degradação policial, essa corrupção que acaba retroalimentando o crime? É claro que a gente sonha com outro modelo organizativo, com outras estruturas institucionais mas, enquanto isso não for possível, é necessário e é viável confrontar essas dinâmicas. Como nós fizemos em 1999, quando eu estava no governo. Eu acabei perdendo porque a força política pendeu para o outro lado, porque nós estávamos enfrentando e, de certa maneira, vencendo esse desafio com toda transparência, com participação da sociedade, e trazendo à tona a verdade, a realidade. Você pode colocar na defensiva, não do ponto de vista beligerante, mas do ponto de vista exclusivo da opinião pública, aqueles que são verdadeiros criminosos dentro ou fora das polícias. Isso exige transparência e não esse discurso de “bandidos contra mocinhos” enaltecendo a instituição, mesmo quando ela está nitidamente comprometida.
Para readquirir o controle sobre as polícias, isso é muito difícil, mas um passo é reconstruir aquela institucionalidade que significava um avanço depois da ditadura, que é a criação de uma Secretaria de Segurança, submetendo as polícias a uma autoridade civil. Já era um pequeno passo, mas um passo relevante. O que o Witzel [Wilson Witzel, ex-governador do Rio de Janeiro], aquele juiz que sofreu o impeachment e que defendia atirar na cabeça, fez?. O Witzel acabou com a Secretaria de Segurança e atendendo corporativismo das polícias, criou uma Secretaria de Polícia Civil e outra de Polícia Militar. Quando o Cláudio Castro se torna governador, ele manteve essa separação, que é uma uma radicalização da desintegração completa que caracteriza o nosso modelo e que dificulta controle externo, controle interno e o mínimo de racionalidade.
E, mais adiante, em função da pressão que decorreu da ADPF 635 e da mobilização de setores da sociedade, ele [Cláudio Castro] então, como uma espécie de resposta de compromisso, criou a Secretaria de Segurança, mas manteve as outras duas, o que gera perplexidade em qualquer observador. Então, você tem uma Secretaria de Segurança que não tem nenhuma autoridade sobre as polícias, as quais continuam tendo as suas respectivas secretarias. Ele fez isso como uma espécie de manobra política diversionista. Então, há elementos aí, inclusive nas propostas dirigidas ao Supremo pelas entidades populares, que apontam alguns caminhos para reforçar a participação popular e controle sobre as polícias.
O que fazer para a retomada dos territórios
Você tem que pensar de forma multidimensional, digamos assim, e gradualista. Há medidas urgentes e imediatas que podem ser tomadas, que não terão muita sustentabilidade, mas são necessárias, e há aquelas que virão com o tempo se houver planejamento e vontade política, e que vão envolver, inclusive reurbanização, políticas públicas para juventude, medidas contrárias à evasão escolar, fortalecimento da primeira infância e das famílias, enfim, uma série de políticas que em médio prazo começam a alterar essa realidade interceptada pela ação do fluxo de armas. Isso tudo é que vai dar sustentabilidade e reconstruir esse quadro.
Imediatamente, o que fazer? No Rio, nós tivemos duas experiências, o Mutirão pela Paz que eu coordenei em 1999 e depois outra, o GPAE [Grupo de Policiamento de Áreas Especiais], a partir de 2000, com o então major e coronel Antônio Carlos Cabral Branco. Era uma experiência piloto que se ampliou com sucesso depois nas UPPs. As UPPs tinham problemas graves de concepção e de implementação, mas também demonstravam alguns pontos que nós defendíamos há muitos anos e que já se tinham demonstrado eficientes.
É o seguinte, não se trata de incursão, de invasão, de operação. Se trata de oferecer aos bairros populares os mesmos serviços, garantias de direito, ou esforços nessa direção, que são oferecidos nos bairros nobres, nos bairros das classes médias. Você não invade Copacabana, você tem ali um serviço policial 24 horas, bom ou mau, com seus limites, mas está presente ali o serviço de segurança como outros serviços sociais, de saúde, educação etc. Nos bairros pobres, nós deveríamos ter também serviços policiais. Não são invasões eventuais e recuos, são presenças permanentes. Então, na UPP, assim como no Mutirão pela Paz, a gente avisava a comunidade. Olha, a partir do dia tal, nós vamos abrir instalações policiais, vai haver um trabalho de policiamento comunitário permanente dia e noite com acompanhamento da comunidade, da mídia, o que seja, e isso vai impor uma inflexão no curso desses acontecimentos.
Então, o que acontecia era que os traficantes ou milicianos abandonavam aquela área, e buscavam outros abrigos. E nós, então, tivemos uma redução importantíssima de mortes provocadas por ações policiais. Tivemos uma redução enorme também nos confrontos simétricos entre facções e uma redução muito grande de homicídios, não só ali como nas áreas adjacentes. São dados, são fatos, são evidências. Por que isso não é sustentável? Porque primeiro: nós teríamos de ter uma orientação não político-demagógica voltada para turistas para as camadas médias, pensando nos grandes eventos, mas nós teríamos de ter uma polícia de segurança voltada para as áreas em que os problemas são mais graves, mesmo que com menos visibilidade. E nós teríamos de pensar uma articulação estadual bem mais ampla para evitar a mera migração de traficantes de um espaço para outro. Isso tinha de ser contemplado, pensado. Nós teríamos de alterar a formação policial inteiramente, valorizando o policiamento comunitário com outras metodologias. Isso não podia ser feito em um mês como o governador dizia: “agora vai ser diferente”. Não é assim.







