Entrevista com Luiz Eduardo Soares: Liberalismos, direitos humanos e ordem no Brasil contemporâneo
Quarta-feira, dia 21 de novembro, fomos gentilmente recebidos por Luiz Eduardo Soares para uma entrevista sobre o lugar das direitas no Brasil contemporâneo. A feição do dossiê, composto por temas e abordagens diversas, requeria um entrevistado capaz de articular distintos olhares para a ascensão das direitas. Luiz Eduardo preenche com sobras os requisitos. O entrevistado dispensa maiores apresentações, mas cabe brevemente mencionar sua vasta trajetória acadêmica – como professor de UNICAMP, IUPERJ e UERJ, além de visiting scholar em Harvard, University of Virginia, University of Pittsburgh e Columbia University – e ampla experiência em cargos públicos, como seu período enquanto Secretário nacional de segurança pública bem demonstra. A entrevista expõe um intelectual diretamente comprometido com causas públicas e capaz de olhar o atual momento conturbado a partir de múltiplas perspectivas, em discurso onde reflexões sobre a formação da sociedade brasileira e as tradições da nossa política se encontram com suas experiencias do mundo público. Em tempos de profundas dúvidas sobre a natureza e as saídas para a atual crise, Luiz Eduardo Soares oferece interpretações distantes do conformismo da maior parte das análises de conjuntura contemporâneas.
Pedro Lima: Salientar o plural no título do dossiê foi muito importante para nós: em vez de Direita no Brasil Contemporâneo, optamos por Direitas no Brasil Contemporâneo. O binômio esquerda/direita acaba sugerindo esse tipo de ilusão da unidade, como se a direita fosse uma coisa só. Eu acho que esse processo histórico complexo que estamos vivendo no Brasil – pelo menos desde 2013 – mostra muito isso: as direitas têm uma certa pulverização e pluralidade. Elas não são necessariamente concertadas, ainda que muitas vezes convirjam entre si. Queria que você falasse um pouco sobre essa pluralidade, sobre como pensar essa pluralidade hoje no Brasil.
Luiz Eduardo Soares: Um ponto que surge mais da prática do que propriamente do espaço acadêmico reflexivo, quer dizer, que deriva mais da minha experiência de militância, é a observação de quão limitado é o nosso liberalismo e de quão importante teria sido uma presença mais plena do liberalismo no Brasil. Qual ponta de militância de que eu falo especificamente? Da militância por direitos humanos, que é fortemente politizada no Brasil por motivos óbvios e com implicações diversas que vocês conhecem.
Quando se abre essa “Caixa de Pandora” e uma multiplicidade de direitas emerge com nuances, tons e semitons, etc., sobretudo no âmbito desse revival da participação política pós-2013; quando se anuncia o colapso da representação, se exercitam então alternativas, linguagens, vocabulários, atores e protagonistas novos. O que parece tão obviamente limitado é justamente o campo do liberalismo. Claro que quando se examinam “as linhagens” todas – para usar o termo do Gildo Marçal Brandão -, identificam-se conexões de fundo com o liberalismo original, na sua riqueza, na sua proliferação de vias. Mas, nas suas manifestações concretas políticas, elas dizem respeito à economia e a variações do pensamento econômico, enquanto o liberalismo transposto para o social, para o comportamento, para os valores no sentido mais amplo, esses são muito tímidos, inibidos, limitados. Quando a gente pensa no liberalismo anglo-saxão como força potente, cultural, a gente pensa em John Stuart Mill, etc. Inclusive na perspectiva libertária, indo para a direita na economia com autores como Nozick, você continua preservando o sentido libertário do comportamento, com muitas implicações importantes. Então, seria de se esperar que esse ambiente liberal acomodasse as bandeiras todas dos direitos humanos, nas suas versões mais progressistas e radicais.
No Brasil isso não acontece. Somos nós, a esquerda, que erguemos essas bandeiras, o que de certa maneira as condena ao gueto. Nós estamos isolados, erguendo bandeiras pelos direitos humanos, que são pretensamente universalistas e derivadas dessas fontes históricas burguesas e, no entanto, nós estamos pagando o preço como se fossemos os sectários da esquerda. Os liberais nos empurram para o gueto e aplaudem a brutalidade policial letal, as execuções extrajudiciais, aplaudem as restrições à proposta de legalização das drogas, defendem a criminalização do aborto. Eles são falcões do comportamento, muito mais próximos dos republicanos do que dos democratas americanos. Na busca por alianças para que nós sejamos capazes, no campo dos direitos humanos, de saltar esse umbral – porque essas alianças são cruciais para formar uma maioria que nos ofereça barreiras contra o que eu chamo de genocídio de jovens, negros e pobres das periferias -, nós não encontramos parceiros.
Em um plano anedótico, pequeno, mas que é interessante etnograficamente: quando surgem agora novas versões do liberalismo – Partido Novo; o partido antes do Novo: o LIVRE e outras versões ainda –, eu fui procurado pelo Presidente Estadual do Livres, que depois foram conduzidos a se retirar do PSL pela chegada de Bolsonaro. Mas eles tinham grandes expectativas de tomar o partido. “Ao invés dos custos todos envolvidos na formação de um novo partido – como o Novo está tentando fazer -, nós estamos buscando esse”, que era o PSL. “Buscando, porque há possibilidades que nós o conquistemos. Então, teremos já essa estrutura formada e vamos avançar. E qual é nossa pauta?”. O presidente me convidou para almoçar, para conversar e me ouvir. Eu disse a ele: “Eu não me identifico com a pauta de vocês, mas eu acho que vocês são muito bem-vindos no cenário político. Vocês podem fazer a diferença se vocês crescerem. Nós estaremos em posições diferentes na luta econômica, mas estaremos juntos. Pela primeira vez nós vamos ter de fato uma bancada em defesa dos direitos humanos, para além da esquerda”. Quer dizer, isso é extraordinariamente relevante. Ele estava de acordo, compreendendo a minha leitura, com alguma hesitação aqui e ali. Eu percebi que não havia tanta clareza por parte deles a respeito das implicações de ser plenamente liberal. Por mais que ele abraçasse esses valores e essas bandeiras, não me pareceria que esse peso estivesse previsto na sua agenda política. Mas, enfim, seria viável esse tipo de caminhar. Logo a seguir nós víamos o que acontecia e as disposições para alianças que ele mencionava. Salvo engano – eu posso estar sendo injusto com ele –, eles mencionaram o Alckmin. Mas, vejam que curioso. “O Alckmin é um falcão. O Alckmin é conservador e não abraça de fato os valores liberais tais como você os enuncia, você quer que eles finalmente sejam plenamente trazidos para o debate público brasileiro na sua integralidade. Mas, essas lideranças, esses potenciais candidatos à presidência dos quais você fala (Alckmin, por exemplo), não traduzem essa caminhada, esse tipo de empenho. Então, nós vamos continuar com esse problema”. Juntos nós nos debruçamos sobre a pauta do Novo, que apresentava um perfil ainda muito mais restritivo, porque eles mesmos dizem que são conservadores nos costumes. Quer dizer, é um liberalismo, como sempre, digamos, de ocasião. Um liberalismo na economia enquanto o sapato não aperta, enquanto não é necessário convocar o Estado… A gente sabe o quão relativa é essa indisposição contra o Estado.
Mas, enfim, de toda maneira, do ponto de vista da prática, da militância, e esse é o ponto, o que se destacava era a possibilidade de nós termos, com essa emergência de uma pluralidade de direitas, de liberalismos distintos, uma reconfiguração de disputas políticas no Brasil com novos cruzamentos, novas alianças. Isso acabou sendo consumido, canibalizado, absorvido, por um potente poder gravitacional da tradição. É muito impressionante como isso que faiscava como potencialidade disruptiva “nova”, acabou sendo sacrificado e assimilado pelos polos tradicionais, pelas linguagens tradicionais – os velhos vocabulários – que têm uma pregnância muito impressionante. Inclusive eu estou fazendo aqui uma associação precipitada entre o liberalismo e as direitas, os liberalismos e as direitas. Isso tudo é objeto também, evidentemente, de questionamento. Amigos americanos iriam ficar chocados com isso, porque, imagina, estão lá apoiando Bernie Sanders com as suas leituras da tradição liberal. Mas, enfim, de toda maneira, evitando agora essa polêmica… Eu escrevi aqui e ali artigos de ocasião, de provocação, chamando atenção para a necessidade de que algum porta-voz ou alguma porta-voz do liberalismo aparecesse afinal de contas, assumisse as suas responsabilidades qua liberal e apresentasse suas armas para que nós negociemos a defesa comum de direitos humanos. Uma aliança democrática. Onde elas estão? Onde eles estão?
Pedro Lima: Do ponto de vista partidário, sobre o qual você falava, fiquei pensando que esse partido mais genuinamente liberal talvez fosse o PSDB do final dos anos 1980. O Mário Covas do discurso sobre o choque de capitalismo, por exemplo, passa a impressão de que se trata de um partido liberal do ponto de vista da economia, no sentido de desestatizante e privatizante, mas com um núcleo duro de respeito aos direitos humanos e uma pauta cultural mais arejada. O PSDB parece ter paulatinamente caminhado para esse lugar, que é essa direita que vai se tornando cada vez mais conservadora, até o ponto em que o liberalismo, de um ponto de vista cultural e de costumes, passa a ser quase que irreconhecível…
Jorge Chaloub: Só para complementar o que o Pedro colocou, há um recrudescimento, sobretudo, após 2002. Em 2006, o Alckmin tenta explorar a questão dos costumes; em 2010, a questão do aborto já é mobilizada de forma mais incisiva; e em 2014, o Aécio levanta a maioridade penal como pauta central.
Luiz Eduardo Soares: Eu estava me lembrando também – me afastando do grande debate acadêmico, mas mergulhando no horizonte da militância, da prática – da pressão das disputas majoritárias sobre as proporcionais, porque as proporcionais são o locus ou os loci dessas possibilidades de avanço de pautas mais específicas em um caminho mais progressista, mesmo pensando o liberalismo perfeitamente compatível com essas pautas. Elas não são, afinal, necessariamente de esquerda. No entanto, as proporcionais acabam contaminando as disputas majoritárias e os candidatos majoritários pressionam os proporcionais de suas coalizões para frearem um pouquinho as suas ambições axiológicas, afirmativas, valorativas, para evitar uma vulnerabilidade ante críticas externas. Então, você tem uma espécie de imperativo majoritário que frustra a possibilidade de multiplicação de avanços que são puxados naturalmente pelos proporcionais. Isso cria uma série de embaraços. Não à toa, são os partidos que confundem majoritário com proporcional que proporcionam avanço. Quer dizer, o PSOL cuida das candidaturas majoritárias como se fossem proporcionais, porque não tem ambições reais de poder – ou não tinha. Então faziam campanhas afirmativas e identitárias. Por isso podiam puxar diretamente pautas avançadas ou permitir que nas suas coalizões se afirmassem pautas liberais, libertárias, liberais à esquerda. Mas eles permanecem à margem do sistema político – ou pelo menos permaneciam à margem do sistema político. Há um temor, que é uma espécie de profecia que se cumpre por si mesma: com o excesso de realismo, o excesso da prudência, e a disputa caminhando para o centro, como é natural, isso acaba reiterando o que se pressupõe verdadeiro, que acaba se afirmando efetivamente como o verdadeiro. Um embate entre valores dificilmente ocorre.
Mas, enfim, sobre a pluralidade das direitas eu acho que a gente teria de definir a posição dos liberalismos no Brasil. Nós facilmente transitamos da classificação “liberal” para a classificação “direita” e vice-versa, com a ajuda luxuosa dos próprios atores liberais que fazem esse movimento sempre na direção do conservadorismo. Qual é o liberal efetivamente libertário?
Há intervenções que são bastante interessantes no debate público. Figuras como Reinaldo Azevedo, por exemplo, que é uma pessoa muito bem formada, que vem da esquerda. Eu o conheci lá atrás. Tem uma tradição de participação de esquerda. É um bom leitor da formação liberal mais clássica e se situa então como um liberal mais próximo possível do que nós poderíamos identificar com o perfil tradicional clássico, que é capaz de defender princípios de justiça, que é capaz de criticar o punitivismo, que tem posições liberais-conservadoras na economia, mas que consegue manter uma fidelidade – até onde eu o acompanho – a certos princípios gerais. Ele gera um efeito muito interessante na opinião pública, ainda que seja um personagem típico e tradicional, paradigmático, se nós pensarmos em uma categoria liberal. Nos Estados Unidos, seria trivial. Ele aqui acaba surpreendendo, porque cruza as expectativas esquerda e direita, e alguns já o definem como comunista…
Pedro Lima: Nos últimos anos esse lugar meio solitário dele ficou muito pronunciado, a partir do momento em que ele assumiu uma posição de crítica à Lava Jato. O que se deu, com muita ênfase, depois do impeachment. Sua voz ficou muito ativa nesse sentido, e aí eles não sabem onde alocá-lo na prateleira das ideologias. Dá um nó nas concepções de uma direita mais tacanha: “Como assim esse cara é de direita e está defendendo a liberdade do Lula?”…
Jorge Chaloub: Há uma certa expectativa a respeito das unicidades dos campos da esquerda e direita que é interessante.
Agora, outro ponto, Luiz, que você levantou é esse lugar dos direitos humanos e a relação dele com o liberalismo. Quando você falava eu pensei: o nosso liberalismo cultivou uma proximidade grande a uma certa razão de Estado, enquanto liberalismo construtor da ordem. Por um lado, é claro que sempre tivemos liberais econômicos. Pode-se voltar para o Cairu, falar no Bulhões e no Gudin. Mas eram relativamente minoritários no campo liberal. O liberalismo como razão de Estado sempre foi predominante.
Em certo momento, esse liberalismo econômico vai ganhando vulto. A ideia de que o liberalismo está vinculado a uma certa ideia do mercado, não apenas como organizador do campo da economia, mas também da própria ordem social, a ser pensada pela chave do mercado. Em outras realidades sociais essa organização do mercado veio vinculada a um certo discurso de direitos humanos, não apenas como limitador do Estado, mas até para ser capaz de criar um “homem econômico” como base da ordem social. Aqui, esse discurso dos direitos humanos sempre foi muito claramente identificado a um campo variado da esquerda, nem que fossem, como você colocou, os liberais que se aproximavam mais do campo da esquerda, reivindicando um liberalismo social mais pronunciado. Você já levantou esse ponto, mas teria alguma hipótese, alguma ideia da razão desse discurso dos direitos humanos ficar restrito ao campo da esquerda ?.
Luiz Eduardo Soares: Eu acho que este é um tema extremamente importante. Para mim, para minha vida sempre foi – e para aqueles que estão mais envolvidos nesse campo de disputa mais especificamente – o que explica a nossa solidão, a nossa fragilidade política.
Eu acho que é importante recuperar a Guerra Fria e o sentido de direitos humanos, os diversos sentidos dessa grande disputa bipolar. Então, os Estados Unidos forçando a mão, chamando a atenção para os direitos civis, a importância da democracia e os soviéticos ou os países ligados ao campo socialista real puxando a brasa para as questões relativas à igualdade, enfim. Isso é trivial. Mas essa disputa durou muitos anos, com acusações recíprocas, e nós mergulhamos na ditadura. Nós não chegamos… é muito curioso. Se me permitem aqui uma interrupção para citar um textinho meu chamado A Política Sacrificial. Trata-se de um texto lá do início dos anos 1980 em que eu examinava três situações: o assassinato de Olga e o Queremismo; o suicídio de Vargas; e, por fim, a morte de Tancredo, como três grandes dramas (no sentido de Turner) da política brasileira. O que nos ensinavam esses dramas com as suas peculiaridades? Eu quero apenas mencionar o caso Prestes. Eu fui do “Partidão”, formado nessa cultura e há ali uma espécie de mito de origem sobre o eixo valorativo em torno do qual se forma a personalidade comunista, a personalidade social comunista, como se forma o personagem adequado à constelação axiológica comunista. Olga é entregue aos nazistas e Prestes perdoa Vargas no Queremismo. Há ali um momento de exaltação da sensibilidade, da generosidade ética de Prestes, que sacrifica seus sentimentos pessoais em nome dos interesses históricos da classe operária e celebra a paz em nome do país, em nome da revolução futura ou pelo menos em nome do fortalecimento dos setores progressistas da sociedade brasileira naquele momento constituinte com Vargas. Eu identifiquei nesse movimento algo curioso, independentemente do julgamento do personagem Prestes, que não está em questão. Sem negar a grandeza do personagem, a grandeza inclusive desse gesto. Mas há aí uma mensagem que – eu diria informalmente – carrega consigo alguma perversão, que é a seguinte: “valores são questões privadas. A política se dá transcendendo esse universo do privado. A política é o campo dos grandes interesses”. Portanto, de certa maneira, você abre a comporta para o que der e vier, um pragmatismo ilimitado no nível da execução das alianças políticas, porque o que está em jogo é a grande finalidade. Esses meios são questões pertinentes apenas para consideração privada, porque valores e toda essa conversa fiada da ética é conversa privada. Eu acho que aí mora o perigo e aí nós nos perdemos (Nos perdemos… Há tantas razões pelas quais nos perdemos. Perdemo-nos onde? Quanto a quê? São muitas perguntas…). Mas acho que aí mora um “Calcanhar de Aquiles” da formação da esquerda e dessa dissociação entre ética e política, que não é indiferente ao que gerou mais tarde o antipetismo. Não é o que gerou o antipetismo, porque o antipetismo tem uma origem exógena ao processo de equívocos do PT. Mas dialoga com os equívocos do PT, e na medida em que dialoga e na medida em que os equívocos do PT respondem a essa tradição, há aí uma conexão. É o que estou sugerindo.
“Ética é questão privada”. Eu me lembro quando Betinho dizia “ética na política”, “movimento ético na política”. Eu me lembro de companheiros meus de tradição comunista, ainda que situados em partidos mais diversos, dizendo: “Que bobagem é essa? Eu quero política na política”. Havia sempre esse ranço e tudo que dizia a respeito à ética era atribuído a um vezo udenista, que seria próprio inclusive da pequena burguesia com a qual nós nos vincularíamos enquanto intelectuais. Portanto, de alguma forma, haveria uma penetração exótica do liberalismo, uma infiltração indevida da própria formação política. Então, o paradigma de referência é: ética é algo privado. Nesse sentido, vejam o que significa o suicídio de Vargas. Um diálogo com esse momento anterior. Porque nesse momento há uma sobreposição entre o privado e o público que se cruzam no corpo, na vida. É um gesto histórico e público. Ao mesmo tempo é privado e pessoal, porque é a morte desse indivíduo que está se colocando como gesto político. Há uma indissociabilidade nesse caso, o que traz alguma complexificação para aquele modelo dual, tradicional, em que eram universos estanques, a ética e a política.
“Se ele entregou Olga, eu lamento, é horrível, soframos com isso. Isso é indigno, inaceitável. Mas isso não macula o personagem Getúlio do ponto de vista da sua atuação política. Ele se torna parceiro potencial”. Isso não inibe essas articulações. A mensagem basicamente é essa: “não vamos fazer política com o fígado”, como se diz vulgarmente. Bílis não é boa companheira, não é boa conselheira. Eu não quero dizer que não haja aí sabedoria, que não haja aí lições importantes, que não haja, inclusive, coragem, grandeza, generosidade. No entanto, há preços a pagar por isso.
Os Direitos Humanos intervêm nesse itinerário, digamos, reflexivo, formador da ética, porque provém de uma tradição kantiana segundo a qual dignidade humana seria justamente aquela resistência à equivalência universal que se manifesta no mercado, e não apenas. Dignidade é o incomensurável, é o excesso ou o que não se absorve nessa homogeneização dos cálculos, nessa racionalidade trivial. Em outras palavras, o ser humano por sua dignidade não pode ser senão fim. Jamais meio. E não há possibilidade de reduzi-lo a meio nem se os fins superiores se afirmarem, se impuserem. É inaceitável essa redução ontológica e ética. Isso por conta da dignidade. De toda maneira, não admitindo que o ser humano seja meio, você o retira da possibilidade de pensá-lo instrumentalmente. Quando a política, por outro lado, isola no privado o valor e a tese sobre a dignidade, libera o campo da política para a instrumentalização, que é sua prática usual vulgar. Tudo o que diz respeito, então, à consideração sobre a individualidade é vista como um recuo pequeno burguês, preocupações individualistas, udenismo e moralismo. Esse é um discurso que não é assimilado pela cultura brasileira no sentido mais amplo. A sociedade não absorve esse tipo de distinção, ainda que pratique essas distinções em outras esferas e outras províncias de significação. Mas, na política, não opera com essa distinção e nós temos aí um embate muito sério que nunca foi tratado devidamente entre a cultura das políticas, essa cultura, digamos, da dualidade de universos privado e público e as apropriações distintas sobre o universo da política, que lhe atribuem outras significações e outras formas de estruturação.
Então, retomando o fio da meada, porque eu acho que agora pode ficar mais claro. Além da Guerra Fria e daquelas disputas sobre relevâncias das diversas significações dos Direitos Humanos, nós temos um problema que não encontra guarida, nem tratamento, nem elaboração adequada, que é o problema da instrumentalização. Mergulhamos na ditadura carregando essas sombras, esses prospectos, essas indefinições, essas ambivalências todas. Não tratadas, não elaboradas. Tudo era muito naturalizado. Todos sabemos do que estamos falando. As esquerdas no Brasil apelam aos Direitos Humanos como resistência à ditadura, denunciando a tortura, os massacres. Então, a linguagem dos Direitos Humanos é uma linguagem adequada, porque ela se globaliza como o direito de transferência e com o passaporte sempre em dia, com todos os vistos. Você não precisa passar em alfândega nenhuma, se submeter a nenhum crivo de censura. Claro que haverá censura na prática, mas, eu quero dizer, não traz a marca partidária. Esses que estão denunciando tortura podem ser comunistas, socialistas, militantes. Não importa, porque eles falam a linguagem universal dos direitos humanos e é disso que se trata. Então, estão excluídas as hipóteses restritivas, porque nós estamos operando na linguagem universal. Então, podemos dialogar com Carter, com a Igreja Católica, com os fóruns internacionais liberais, que vão nos acolher crescentemente. É claro que há também considerações políticas, porque todos sabem de onde provém as demandas, quais as situações internacionais geopolíticas. Carter foi um momento. Há outros momentos em que o pleito por Direitos humanos não é bem recebido, porque há outros filtros. A gente sabe.
Quando nós, então, desaguamos, no Estado democrático de direito, consagrado lá em 1988, com a Constituição, as coisas começam ficar um pouco mais claras e exigentes. Mas, mesmo assim, o momento de encontro nosso com os grandes desafios intelectuais ético-políticos não se deu, porque nós imediatamente entramos em uma dinâmica que não era mais da ditadura, mas que a estendia, sobretudo, contra negros e pobres. Então, naturalmente as esquerdas continuaram buscando esse diálogo, essa identificação, essa representação e a denúncia da brutalidade do Estado continuou válida, necessária, pertinente, porque o Estado não sofreu grandes transformações no que diz respeito ao tratamento dessas populações e as polícias, a tortura, as execuções extrajudiciais, deslocaram o foco. Os alvos não fomos mais nós, classe média e oposições políticas. Mas as práticas continuaram sendo basicamente as mesmas, retomando a velha trilha histórica, porque a ditadura não inventou tortura, nem violência policial. Apenas a redirecionou para outros focos, a intensificou ou qualificou do ponto de visto técnico-metodológico. Mas esse é um processo que atravessa a história do Brasil. Então, era natural que as esquerdas continuassem utilizando uma linguagem que, entretanto, não é delas. Ocorre que isso não se faz impunimente. Felizmente, isso possui também um efeito (eu evitaria aqui o adjetivo, mas talvez coubesse) “dialético”, porque as esquerdas acabam se imantando, sofrendo alterações. Não só porque o mundo desaba, as referências se transformam, não há mais a Albânia, nem a China de Mao. Mas, independentemente dessas transformações, ou somando-se a elas, há também um processo de socialização de novos atores militantes em bandeiras que não eram as suas originalmente, mas que acabam tendo que ser assimiladas, conjugadas com a sua linguagem original marxista de alguma maneira.
Então, nós temos uma fusão que não está respondida. Não é uma fusão teórica-filosófica. Não há uma coerência conceitual. Há uma sobreposição e um convívio de modelos que em algum momento vão se atritar, quando por exemplo veio a perspectiva de poder. Um exemplo específico foi o do PT no poder. É um caso muito peculiar. O PT é muito menos radical. Então é um exemplo menor. Mas, de toda maneira, tivemos a reprodução do vocabulário da linguagem das dinâmicas políticas tradicionais. Essa problemática da ética privada. A dimensão oportunista na utilização da bandeira dos direitos humanos se evidencia porque não houve de fato nenhum enfrentamento do problema da violência policial, por exemplo. Os recursos do Ministério da Justiça vieram para governos que continuaram massacrando a população jovem de favela. Há, portanto, tradições se cruzando, entrecruzando, se chocando. Não são só os liberais que estão desmapeados ou com cartografias complicadas e cruzadas. Nós todos também.
Pedro Lima: É curioso. Pelo mapa que você está apontando para a gente é quase como se do ponto de vista da direita, de uma direita liberal, não surgiu esse portador da bandeira dos direitos humanos. E do ponto de vista da esquerda, também haveria uma adesão ligeiramente inautêntica, posto que não se trata de uma bandeira constitutiva do campo. Então a pauta dos Direitos Humanos ficaria meio que perdida no meio disso tudo, sem um portador propriamente dito dessa bandeira.
Eu estava outro dia ouvindo o disco dos Racionais, para a gente tentar se aproximar um pouco da conjuntura mais imediata, que acho que é uma preocupação nossa. No disco dos Racionais – o clássico, Sobrevivendo no Inferno, de 1997, logo no início do disco a música Capítulo 4, Versículo 3 começa com uma enunciação: a cada quatro mortos pela polícia, três são negros. A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente no Brasil. Recentemente, não sei se o Estadão ou O Globo, algum dos grandes jornais retomou isso para ver como estavam esses dados e constatou que continuaram quase no mesmo patamar. A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras; a cada quatro horas morre um jovem negro violentamente. Há ainda outro dado mencionado na introdução da música: apenas 2% dos estudantes das universidades brasileiras eram negros (em 1997). Esse dado saltou para 30%, aproximadamente, passados vinte anos.
Tentando pensar um pouco a partir disso: a que se deve essa reação da direita no país? Se é que podemos chamar de “reação” também. Os jovens negros continuam massacrados como sempre. Existe o avanço significativo, que é a presença de negras e negros nas universidades. Será que esse é um dos gatilhos possíveis para isso que estamos vivendo? Quais são os gatilhos na sua opinião para esse tipo de reação – se é que é uma “reação” – que estamos vivendo?
Luiz Eduardo Soares: Eu desconfio que o resultado da conta já seja pior… Você multiplica 24 horas por 365. Depois você divide 63.880, número de homicídios do ano passado, por esse número que você obteve na primeira conta. Eu imagino que a gente tenha bem mais do que uma morte a cada quatro horas. Mas a distribuição étnica, racial de cor, continua sendo basicamente a mesma: 71% porcento das vítimas são negros. Então, então é mais ou menos 3 em cada 4. Continua sendo assim.
Pedro Lima: Só para contextualizar um pouco mais a questão. Existe uma sociologia entre nós que tematiza a questão das desigualdades, o abismo das desigualdades no Brasil, quase que como se fosse efeito de uma elite particularmente perversa. Eu ouvi a música dos Racionais e esses dados das universidades me chamaram muito a atenção, porque em 1997, 2% dos estudantes eram negros e hoje em dia eu creio que esteja próximo de 30%… e essa sociologia credita muito a essa expansão o tipo de reação conservadora que estamos vivenciando agora.
Luiz Eduardo Soares: Eu acho que há esse elemento, sem dúvida. Não é o único, é claro. Há sempre combinações. Mas esse é um dos fatores. Se a gente imaginar que além dos 30% diretamente envolvidos na universidade, desse crescimento espantoso da atuação universitária de negros e pobres, as políticas afirmativas, políticas de cotas, têm implicações ainda muito maiores. É claro que é uma intuição. Mas eu creio que haja aí repetições muito mais significativas do que a gente tenda a reconhecer, porque nós estamos falando de famílias, de primeiros indivíduos que chegam às universidades em famílias e gerações. Há um núcleo familiar, há uma família extensa, há uma comunidade, vizinhança, conexões e o impacto de alguém que se destaca e que assume algum protagonismo alterando seu discurso e suas referências. O impacto maximizado pelo valor que a sociedade mesma atribui a esse novo lugar. Então, nós temos aí um potencial de disparar ecos que é realmente notável.
Há estudos nos Estados Unidos que demonstram – estudos antigos: uma década depois do início da aplicação das cotas – que esses estudantes tendem a ter, esses que se beneficiam por cotas e políticas afirmativas, um desempenho médio indistinguível do desempenho usual médio, mas o seu desempenho posterior, no retorno às comunidades, aos seus núcleos sociais, é muito mais relevante do que a média dos demais estudantes. Isso é alguma coisa já observada e me parece que podemos adotar essa hipótese. Portanto, nós não estamos falando de um impacto que se reduz àqueles que experimentam diretamente essa ascensão ou essa trajetória mais inclusiva. Isso é extremamente importante. Os dados e os estudos do Ricardo Paes de Barros, por exemplo, são eloquentes nesse sentido. As alterações sociais foram notáveis. Nós não as valorizamos suficientemente.
Quando eu falei criticamente do PT em dois ou três momentos, podia aparecer ali uma leitura unilateral. Longe disso, eu valorizo muito todo esse processo e os dados são indiscutíveis. O que aconteceu no Brasil nos governos Lula tem poucos paralelos na história do século XX. O paralelo do New Deal, o paralelo da Inglaterra pós-Segunda Guerra Mundial e mesmo assim o que ocorreu no Brasil, pela escala, ele se distingue. É alguma coisa extraordinária, porque normalmente nós tendemos à miudeza do debate sobre o “acesso ao consumo”, sem inclusive compreender o que significa consumo. O Canclini já nos ajudava a entender, lá atrás, quão importante pode ser o consumo e como nós devemos pensar o consumo para além apenas do ciclo econômico: qual impacto sobre a sociedade isso traz? No sentido mesmo anedótico, eu me lembro de discutir com um amigo meu, compositor popular de origem popular. Ele dizia: “Mas, Luiz, o que é um ventilador? É isso que muda a classe social? Isso muda a temperatura”. Agora, quem mora no Rio de Janeiro pode saber o que isso significa para o seu bem-estar e mais, um micro-ondas, uma geladeira… Isso pode mudar muito mais do que se pode imaginar, porque nós naturalizamos a presença dos eletrodomésticos em nossas vidas. Isso muda a possibilidade de planejamento, de organização da sua vida doméstica. Você não precisa comprar todo dia. Você pode comprar uma vez só. Você pode estocar. Com estocagem você tem o melhor aproveitamento. Faz uma economia. Você tem uma qualidade, uma variedade diferente. Você muda a sua relação com a alimentação. O micro-ondas reduz o seu trabalho, enfim. Nós de fato não valorizamos o que já se tinha. Agora, quem passa a ter, sabe que a sua vida muda efetivamente, muito mais do que a indicação sobre renda pode indicar. Então, nós estamos falando de uma mutação social muito expressiva. Eu considero que a grande questão no Brasil é o racismo estrutural. Antes de ser a desigualdade ou a forma da desigualdade, crucial – no meu modo de entender – é o racismo estrutural, porque como eu digo em um livro, ainda inédito, é o racismo que oferece o molde que formata a desigualdade no Brasil. Ela é vivenciada, sobretudo, em primeiro lugar, sobre a fórmula da cor e da diferença de cor. Ao contrário do pensamento usual, de que a desigualdade é que seria estruturante, e o racismo seria uma espécie de epifenômeno que se acoplaria à desigualdade estrutural.
Jorge Chaloub: Contraria Sérgio Buarque em Raízes do Brasil, no capítulo sete, quando ele fala sobre o caráter secundário do preconceito de cor o em relação ao preconceito social…
Luiz Eduardo Soares: E todo o marxismo.
Jorge Chaloub: E todo o marxismo posterior.
Luiz Eduardo Soares: Nós temos uma contribuição decisiva do Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva, que começam a mostrar que são variáveis significantes as distinções de cor e interpretações mais etnográficas. Então, eu penso por esse viés.
Pensando por esse viés, não é apenas a desigualdade que foi reduzida e provocou reações das elites. São as relações de cor que foram transformadas. Por isso, para mim, o drama por excelência revelador do que aconteceu na origem desse processo, é um sobre o qual eu já escrevi: os “rolezinhos”.
Os “rolezinhos” em São Paulo são dramatizações de geopolíticas ou dramatizações de alterações da geopolítica das cores no meio urbano. A ocupação de espaços públicos jovens por parte daqueles que não frequentavam e quando faziam, faziam individualmente, temerosos da vigilância persecutória que se exercia de modo repressor e orientado pela cor. Tantos exemplos. Entretanto, juntos, sem qualquer violência, sem prática de qualquer delito (houve um ou outro caso isolado), o resultado foi uma reação em cadeia que se politizou rapidamente e se converteu em um “case nacional”. “O que fazer com esses que aparecem? Não podemos proibir a sua entrada”. Então shoppings eram fechados, governadores eram convocados para reuniões emergenciais e a segurança não sabia como agir. Até que houve a reação bem brasileira, que dá uma resposta carioca ao evento paulista. São Paulo na frente, modernizando, e o Rio ancorando na história a reação. Foi o linchamento de um menino aqui no bairro do Flamengo. Ele foi desnudado, amarrado em um poste pelo pescoço depois de levar uma surra. O que nós temos aí é claramente uma resposta àquela errância, àquele nomadismo ensaiado, aqueles deslocamentos territoriais, que de fato desorganizavam as “Tordesilhas do Apartheid” paulista. O que nós tivemos foi uma afirmação do sedentarismo, da raiz espacial, da fixação, porque ele foi amarrado a um poste, desnudado, e então devolvido à sua “natureza” animal – à nossa comum natureza. As marcas sociais das roupas são suprimidas; e é preso pelo pescoço, o que é uma citação à Ku Klux Klan, é uma citação aos velhos métodos de execução. Ele não morreu aqui, mas é uma citação ao enforcamento. E mais: com a compressão da garganta você cancela a voz, que é o que supostamente humaniza o sujeito, o que torna sujeito o sujeito. A sua possibilidade de se exercer como ser humano, sendo sujeito, é ali suprimida. A linguagem, a voz é cancelada, e ele é devolvido à sua natureza animal, desqualificado como personagem social e exibido como uma espécie de instalação em resposta a esse nomadismo, a essa errância “selvagem” que desmarcava a geopolítica tradicional.
Esse diálogo, esse contraponto, inclusive teve uma sequência bem carioca, sobre a qual eu também escrevi, que é muito engraçado. Porque há o lado cômico também: quanto se tentou um “rolezinho” no Shopping Leblon – não sei se vocês se lembram disso. Em um domingo o shopping fechou e então nós tivemos um ensaio geral pré-bolsonárico ali debaixo do Shopping Leblon. Está bem documentado na internet. Estava presente – não sei se vocês se lembram – um personagem bem carioca, que era o “Batman”. Personagem de 2013. E há um embate triplo entre um senhor que se revolta contra o Batman, acusando-o de impatriótico, já que aquele é um personagem norte-americano e defendendo que ele deveria se render a personagens nacionais. É um discurso nacionalista ao mesmo tempo pela ordem contra a bagunça e a baderna. Nós percebemos que se trata de um profissional de um algum banco público que defende o PT, mas defende a ordem de uma perspectiva nacionalista. É muito curiosa a presença dele. Até que chega uma senhora e defende a repressão policial e pede a volta à ditadura. Quando ela pede a volta à ditadura, o Batman que estava negociando muito delicadamente com o senhor – esse senhor nacionalista, supostamente de esquerda – acaba entrando num quiproquó , porque o senhor que estava defendido pela senhora se volta contra a senhora: “Não. Ditadura, não”. Então, nós temos ali nesse microcosmo o Batman, a senhora que defende a ditadura, que antecipa Bolsonaro, e esse senhor que está no meio do caminho buscando uma solução de centro. É muito curioso como no microcosmo você vai encontrando aqueles indícios do que depois vai se hipertrofiar em outras linhas futuras.
Mas, enfim, eu acho então que encontrar no aeroporto personagens de rodoviária, de fato, provoca uma elite que naturalizou os apartheids todos, as “tordesilhas”, as geopolíticas das raças, a organização do meio urbano, a sociedade em seu sentido tradicional. E quando surgem as manifestações, saem do armário os espectros todos.
Eu acho as manifestações de 2013 extremamente ricas. Acho um equívoco reduzi-las à afirmação de uma direita que então emerge. Acho que 2013 é ali um exercício de cidadania, de protagonismo, onde todos os personagens passam a descobrir sua força potencial e sua possibilidade de ação direta nas ruas, passando a adotar novas linguagens. É claro, então, que com essa energia desprendida, também na direita novos protagonismos emergem e aí que nós temos o surgimento do MBL e de grupos que se afirmam a partir da sociedade em torno de ideologias. Esse é um momento crucial, porque é difícil que haja esse momento no qual coletivos de distintas orientações surjam simultânea e espontaneamente – o que ocorreu a partir daquela movimentação que tem espelhamento internacional.
Então, eu acho que há uma combinação. O racismo se reafirma e se torna “aceitável”, porque havia um pudor nos anos Lula, que era um pudor civilizador. E é curioso que há uma expressão que é importante, o chamado “politicamente correto”, que vai ser um regulador importante. Eu escrevi sobre isso, Em defesa do politicamente correto, em um congresso em Brasília, na UnB, organizado pelo Jessé de Souza, que depois foi publicado em livro. E eu publiquei uma outra versão desse texto já nos anos 90, enfim, discutindo o Norbert Elias e do que é que estamos falando efetivamente quando falamos do “politicamente correto”, deixando de lado as bizarrices.
Recentemente, eu li na Piauí uma entrevista, raríssima à época, – agora tem se falado mais – do General Villas Bôas. Era um “pingue-pongue”, raríssimo, pois ele se pronuncia por notas oficiais. Nessa entrevista lhe perguntam: “General, qual é o maior problema do brasileiro?”, e ele, para a minha perplexidade, diz assim: “É o politicamente correto”. Tem poucos meses isso. Eu fiquei estarrecido. “O grande problema brasileiro é o politicamente correto”. Ou seja, é esse constrangimento das elites relativamente aos seus preconceitos, ao exercício livre do seu preconceito. Ou seja, o Brasil estava mudando na direção contrária à de suas convicções e os seus preconceitos estavam no armário, os indivíduos se sentiam constrangidos para emiti-los. Não se pode dizer qualquer coisa sobre homossexuais, sobre negros, sobre mulheres. Isso é muito revelador.
Nós estávamos em um momento civilizatório – civilizatório mesmo, pensando no sentido europeizante de Elias – em que alguns valores democráticos começavam a se impor sobre os costumes, disciplinando, domesticando impulsos, de modo que nós pudéssemos começar a ter uma sociedade um pouquinho menos desigual enfrentando alguns de seus temas fundamentais. Subitamente, há uma autorização – em função do processo histórico – para que saiam do armário esses espectros, saiam dos espíritos essas evocações do passado, as mais regressivas, racistas. Tudo isso passou a ser razoável. Passou a ser aceitável. Então, há um elemento de restauração, um elemento regressivo, obscurantista e reacionário em seu sentido mais forte. Isso não diz tudo, mas é um elemento importante.
Se você conecta com os evangélicos, há uma outra dinâmica e uma outra lógica. Por isso que eu acho que nós não estamos falando de “bolhas”. Eu não acredito na história das “bolhas”, porque há cruzamentos. Quando você fala em “bolhas” dá a impressão de um arquipélago, de nichos insulados. Eu acho que, claro, há nichos. Mas há também cruzamentos. Sem a Globo não haveria a possibilidade de que uma bolha contagiasse a outra e cada bolha com seus códigos, significados e gramáticas próprias, distintas, mas uma influenciando a outra, uma contaminando a outra. O mundo evangélico e o mundo do racista não são os mesmos mundos. O mundo de uma direita selvagem que evoca a ditadura não é o mesmo mundo, tampouco. Então, vou dar um exemplo. Eu ouvindo rádio, já ouvi atores, intelectuais – que eu inclusive pensei que tivessem alguma formação mais crítica, porque são cosmopolitas – falando sobre o “politicamente correto” antes desse momento com muita virulência, em um sentido de repúdio muito forte. Isso nada tem a ver com defesa da ditadura. Eles jamais defenderiam a ditadura. Eles, tampouco, são evangélicos. Os seus valores são liberais. Mas eles não são capazes de incorporar os avanços do liberalismo norte-americano, que passaram a assimilar o “politicamente correto” como uma chave de regulação de comportamento e de discurso adequado, no sentido de educação e respeito à alteridade. Querem ser livres para brincar com o velho racismo. Sempre fizeram. “Por que não?”. É uma espécie de ingenuidade e vício regressivo que se combinam. Então essas bolhas se cruzam pela Rede Globo. Pela grande mídia, mas, sobretudo, pela Globo, que faz circular a denúncia de corrupção, faz circular a crítica que se faz aqui e ali ao próprio modelo econômico, atribuindo toda a crise à corrupção, ao modelo novo adotado pelo PT. Essas bolhas passam a dialogar entre si e as mediações políticas fazem um enclave.
Jorge Chaloub: Eu gostei muito do seu ponto, Luiz, e eu acho que há uma chave analítica muito importante. Penso que a perplexidade em relação a esse movimento recente é muito menos em relação à face de uma defesa mais irrestrita do mundo do mercado, porque com isso a gente já estava lidando há algum tempo. Há um certo movimento que podemos chamar tanto de neoconservador, como alguns autores fazem -Wendy Brown, Habermas – mas também de volta a velhos repertórios fascistas. Alguns deles, sobretudo os neoconservadores, convivendo com essa retórica do mercado. É uma coalizão muito heterogênea, que, uma vez no poder, talvez vai enfrentar confrontos até então desconhecidos. Mas, a impressão que se coloca é que cabe a esse neoconservadorismo – que tem um “quê” de tradicionalismo, que tem um “quê” de articulação evangélica, que tem um “quê” de resquícios de um passado, de repertórios antigos, além dos repertórios fascistizantes que chocam mais – que merece maior destaque. Não tanto o modelo Paulo Guedes, estrito. Podia se pensar que era esse adversário com o qual se tinha que defrontar. Quando o “politicamente correto” vira o adversário, quando a defesa de minorias vira o problema, quando a retórica dos direitos em si, dos direitos humanos, vira o problema é que parece que surge algo novo, não?
Queria que você comentasse sobre isso: até que ponto o fato de a esquerda (sem querer culpabilizá-la) não ter conseguido tratar esse tema dos costumes, de essa ética ser relegada ao mundo privado, desse movimento um pouco – para falar de um autor que você trabalhou na sua tese, Hobbesiano, segundo Koselleck, de jogar as convicções para o mundo privado e deixar a política no público em relação aos outros temas… Até que ponto esse certo silêncio não permitiu que se reorganizasse o mundo de outra maneira? Mais do que uma moral, ocorreu uma moralização do público, que foi ocupado por algo com que agora temos que nos defrontar. Então, até que ponto esse silêncio não permitiu que tanto ecos do passado quantos atores novos, atores modernos – já que os neopentecostais em boa parte são atores modernos, não são resquícios do passado – ocupassem e rearranjassem esse mundo?
Luiz Eduardo Soares: Sim. Isso é muito importante. Eu começo lateralmente trazendo um outro aspecto ainda para a gente então passar para isso que é decisivo. E eu respondo só antecipando que sim. Acho que você tem toda razão. Participei de uma reunião há pouco tempo, em que uma das pessoas presentes disse que um erro do PT teria sido não defender o “kit gay” na ocasião em que se falava disso. Ela tem razão. Não deveriam cancelá-lo, como acabou acontecendo, afirmando defensivamente que “nunca houve um ‘kit gay’”, mas ao contrário: defender e tomar um partido em nome do direito – direito à informação ou o que fosse. Não considerando isso apenas uma problemática de costumes. Isso tem a ver com a problemática que você está suscitando. As esquerdas, de um modo geral, e o PT, em particular, não tomaram a cultura… Não estou criticando o Gil que fez um belíssimo trabalho no Ministério da Cultura, mas essa não é uma questão de Ministério da Cultura. A questão é muito mais ampla. O PT não fez o trabalho de luta pela hegemonia no sentido mais profundo da palavra, o que nada tem a ver com autoritarismo, totalitarismo e essas baboseiras todas.
Pedro Lima: E o PT é acusado com frequência de ter feito exatamente isso, lutado pela hegemonia…
Luiz Eduardo Soares: Não fez em absoluto! Eu não quero usar palavras que são acusatórias, mas apenas para designar na ausência de outro vocabulário. Ele teve uma atitude de indiferença, uma atitude pusilânime, uma atitude covarde, depreciando, desvalorizando essas questões, como se fossem questões menores. “No fundo, no fundo” (aí compartilhando uma perspectiva que é tanto liberal, quanto da esquerda marxista) “o que vale é a infraestrutura. Vamos tocar a economia? Deixa que o resto se acomoda”. É a convicção hoje dos liberais que abraçam Paulo Guedes e dizem: “Vamos tocar essas reformas. Vamos fazer as reformas neoliberais e o resto que se dane, o resto se acomoda. A médio prazo se ajusta. Alguns vão morrer, as liberdades vão ser sacrificadas. Que se dane. Esse é o processo que importa”. Em certo sentido, é claro que com outras mediações, outra sofisticação, o PT disse: “Vamos redistribuir. Vamos recompor aqui a nossa base produtiva e econômica com cores sociais. Vamos começar a alterar esse quadro das desigualdades e o resto – comportamentos, valores – se acomoda no processo”. E nas eleições? As eleições não são momentos para disputa de valores propriamente, porque tem de haver essas acomodações pragmaticamente orientadas, utilitárias. As disputas de valores têm de ser objeto de uma intervenção estratégica, inteligente. Essa é uma questão-chave. Os evangélicos estão aí e estão crescendo, se fortalecendo e alterando não só os resultados eleitorais, mas o balanço de poder. Então, não há por parte da esquerda, ou não houve, um reconhecimento da centralidade dessas questões. Você tem toda razão.
Mas, para trazer um outro ponto, e citando aqui um velho amigo, José Padilha – citando fraternalmente, mas afirmando a divergência, porque ele já a publicizou até recentemente –, que tem escrito insistentemente em uma certa direção e fez uma série, “O Mecanismo”, baseado nessa compressão que me parece completamente equivocada: a ideia liberal em uma chave simplificadora de que de um lado você tem o Estado e de outro você tem a sociedade. É curioso porque na etnologia a gente tem uma apropriação invertida com Pierre Clastres, que é muito valorizada. É curioso que a chave anarquista atravesse a etnologia, inconsciente de si, como se o pensamento político não maculasse a etnologia. E a ideia da sociedade que resiste ao risco da formação de um Estado pode ser muito interessante, mas no fundo está dialogando com a tradição anarquista e está jogando com alguns pressupostos. Esquecendo, por exemplo, já que eu mencionei o Clastres, a contribuição de parceiros do próprio Clastres, como o Foucault, esquecendo que há poderes independentes do Estado e esquecendo que a sociedade é capaz de exercer poderes e poderes tirânicos, por exemplo, sobre o indivíduo. “Não há ainda indivíduo ali”. Sim, mas as experiências dessas singularidades estão constrangidas fortemente e os tais rituais de escarificação, que seriam demonstrações de uma igualdade heroica que resiste epicamente ao advento potencial do Estado, são antes afirmações despóticas do social, do coletivo sobre o individual. Eis minha maneira crítica de ver o Clastres.
Mas, enfim, de toda maneira essa ideia é reproduzida pelo José Padilha, de que você tem de um lado, Estado, e de outro lado, Sociedade e de que o problema é que essa casta que se “enquistou” no Estado está se aproveitando da riqueza da sociedade para se beneficiar e se reproduzir. Não preciso ir adiante na crítica, que é tão evidente. Essa tal casta burocrática ou essa casta política, ou os burocratas, a Justiça ou o que seja, eles não apenas funcionam para se reproduzir como uma praga, eles operam, sobretudo, para reproduzir domínios de classe, domínios de grupo da sociedade aos quais eles servem, aos quais eles estão vinculados, dos quais ele fazem parte, de modo que essa distinção é absurda. Mas foi esta a distinção que colou.
Então, quando se fala em corrupção (e aí é grande a contribuição da Globo e dos suportes teóricos dos economistas da Globo que reiteram diariamente esse ponto), a corrupção é uma apropriação de políticos dilapidando a riqueza da sociedade. Se a sociedade se livrar do Estado, ela flui, com seu dinamismo impetuoso, produz riquezas e resolve os problemas. Então, a questão é livrar-se dos políticos. Livrar-se da política. Esse espírito anti-sistêmico, digamos assim… Usa-se até a palavra sistema, o que é curioso… Uma notícia biográfica pequena, mas que às vezes pode ser interessante: quando eu vi a primeira montagem do “Tropa 2”, gostei imensamente do filme e fiz algumas anotações em cima da perna. A gente foi tomar um café e depois de cumprimentar emocionado o Zé pelo trabalho, que achei extraordinário, eu disse: “Olha, Zé, eu tenho alguns pontos pequenos aqui, mas um talvez mais significativo”, e o mais significativo era esse, por que se falava de “sistema”?. No final dos anos 60, a gente falava establishment e tinha um sentido na contracultura que era muito interessante, que tinha que ser contextualizado. No entanto, quando agora a gente fala em “sistema” isso pode levar a uma despolitização, a uma generalização que é incompatível inclusive com a própria narrativa, porque lá nós temos, claramente, deputados em choque, o secretário que é eleito ligado às milícias e o personagem herói que resiste e defende os direitos humanos, que confronta isso. O Nascimento diz: “A Polícia Militar tem que acabar, há um comprometimento com a corrupção política”. Quando você reduz isso ao sistema, então toda a narrativa, toda a complexidade, as contradições que se dão, as lutas todas se perdem, está tudo isso diluído. Aí você mostra Brasília como sendo o sistema e essas divisões internas, então, trata-se de quê? De derrubar o sistema em nome de quê? Substituí-lo por quê? Pela sociedade livre? Por um mercado sem constrangimentos? Nem Nozick seria capaz de tamanha ousadia, porque ele diz que pelo menos para a segurança é preciso que haja Estado.
Bom, eu acho que o germe da nossa divergência estava presente ali e eu acho que isso apenas se repetiu. Eu estou trazendo o nome do Zé, e eu me sinto autorizado por ele mesmo, porque no último artigo para O Globo [edição de 07/11/2018] ele citou a mim e ao Marcelo Freixo, criticando-nos fraternalmente, mas duramente. Então eu também me sinto autorizado a citá-lo. Até porque ele se tornou um personagem nesse drama todo. Ele faz parte disso. Ele tem sua responsabilidade e essa série confirma a visão mais preconceituosa, equivocada, que saúda a Lava-Jato como se não tivesse comprometimento político, de uma maneira que me parece inaceitável. Mas eu acho, portanto, que o que você diz é verdade e agora nós temos de enfrentar essa questão. Como desenvolver uma política que não seja exclusivamente eleitoral, se nós estamos pensando não apenas no cretinismo parlamentar, para usar a velha expressão de Lenin. Estamos pensando na construção de hegemonia. Nós temos que voltar a pensar grande, em compromissos históricos, para além de composições eventuais. Nesse caso, os estudos sobre os liberalismos, os conservadorismos, as direitas – na sua pluralidade -, as esquerdas, esses estudos passaram a ser mais importantes do que nunca.
Então, concluo trazendo os evangélicos para a nossa conversa. Há aí também uma pluralidade grande, há uma multiplicidade que é irredutível. Temos evangélicos de denominações diferentes, histórias distintas, valores que são contraditórios e adesões políticas diversas também. Mas, cumpre assinalar um ponto pelo menos. Em um livro inédito que eu espero publicar ano que vem, o qual escrevi ao longo dos últimos seis, sete anos, há um capítulo sobre a revolução religiosa no Brasil onde eu procuro dizer o seguinte: nós somos carentes de ascetismos intramundanos. Houve uma experiência da teologia da libertação, que foi muito importante, ajudou a formar o PT e exerceu impacto na cultura popular. Na teologia da libertação há um direcionamento para o mundo, sua concretude e uma valorização de transformações que podem – e devem – se dar no mundo, na sociedade. No entanto, ainda que haja essa orientação para o mundo, a realização humana continua postergada, pelo menos, para as gerações posteriores, porque há todo um trabalho a ser feito para que esse mundo se aproxime do paraíso, do que seria utopia, se aproxime do universo da fraternidade, da igualdade, com o qual sonhamos, porque essa não é uma tarefa para o indivíduo: “nenhum indivíduo pode se beneficiar dessas conquistas por si só. É preciso que haja conjugação dos esforços. Enquanto todos não puderem ser felizes, ninguém será. Não está no meu horizonte histórico e nem no dos meus filhos. Esse é um processo de gerações”. Portanto, esse redirecionamento para o intramundano é relativo, porque continua posto para além do meu horizonte. Quando a teologia da prosperidade, que é muito forte na Universal do Reino de Deus, aponta para esse mundo, aponta para cada um de nós, ela diz: “Você pode ser feliz. Você, no seu tempo de vida ainda. E não é feio e nem pecado você desejar ter um carro e você desejar uma vida com mais conforto, desejar consumir. Isso não só não é pecado como é virtuoso, como é possível. Pare de beber, organize sua família dessa e daquela maneira, frequente o culto, siga determinadas regras, se dedique ao trabalho – coisa Weberiana – e é possível, sim, que você, não só com os seus méritos individuais…”. Não é uma questão meramente liberal, ainda que haja ali afinidades eletivas, é uma questão da graça divina, que reconhecerá seus esforços e do apoio comunitário, porque “os seus filhos ficarão sob a nossa guarda enquanto sua mulher precisar trabalhar. Nós vamos ajudar nos momentos de dificuldades” e etc.
O Carlos Lessa fala disso. Seria incompreensível o que aconteceu no Rio de Janeiro, inclusive com as migrações para as favelas, sem que nós considerássemos não só benefícios providos por governos para as favelas nas últimas décadas depois da redemocratização, como também o papel desse welfare social que tem a ver com a ação de comunidades religiosas. Ele chama a atenção para isso. O que acontece quando esse discurso avança, se difunde? Nós temos não só o real, que tira 17% da miséria absoluta pelo mero fato do fim da inflação. Nós temos Lula. 40 milhões incluídos. Ou seja, as estruturas de plausibilidade – para falar com a sociologia fenomenológica do final dos anos 60 – estão dadas para a afirmação da verossimilhança dos discursos. Você diz: “É possível. De fato, é possível. Acontece. Aconteceu”. Qual é o desafio agora? E na crise? A crença vai suportar a desestabilização provocada pela crise? Porque agora o discurso está autonomizado. Ele tende, então, a se preservar, na carência das estruturas de plausibilidade dadas pelo “real”, ele tende a se ideologizar. É um processo mais ou menos natural. Se cristaliza, se congela, se dissocia do imediato, traduz prosperidade com alguma simbolização que permita negociar com a temporalidade de seus exercícios. Esse é um fenômeno que a gente deve estudar daqui para adiante e coloca para nós algumas questões.
Isso tudo nos aponta para ainda outra questão que é bastante interessante, que é o horizonte de expectativa. A questão das expectativas é a nossa questão por excelência. É um problema muito sério. Houve um abatimento das expectativas depois dos governos Lula e isso tende a estimular reação. A gente viu desde Tocqueville o que isso significa. E uma reação negativa de classes médias-baixas, conduzindo ao conservadorismo, à tentativa de restauração do que foi perdido. E agora com essa crise de desemprego e tudo mais, elas estão sob ameaça dupla.
Por fim, o último ponto: eu acho que há uma demanda por ordem. Isso tem a ver com o universo evangélico, mas não apenas. Há uma demanda por ordem que não é apenas a ordem que se opõe à criminalidade. A criminalidade e os riscos da insegurança seriam sintomas. Mas há uma desordem que é vivida de forma muito mais profunda, extensa, e a demanda por ordem tem uma marca mais ontológica e cósmica, porque além da incerteza que caracteriza o nosso tempo, nós temos os deslizamentos dos padrões de relação familiar, de relações afetivas, de identidades sexuais e isso gera uma angústia muito grande, sobretudo, nessas classes populares, com uma dificuldade muito grande de elaborar tudo isso e uma necessidade de ancorar de novo as suas, digamos, personalidades, e as de suas famílias. Decorre disso uma necessidade de um pai absoluto, um pai total. O mundo Bolsonaro é como um mundo das ancoragens ontológicas redivivas, e isso dialoga com essa problemática de valores e comportamento, que é muito mais importante, portanto, do que supõe a nossa vã filosofia.
Pedro Lima: Vou fazer uma última pergunta. O Clifford Geertz, no início do texto sobre o “anti-anti-relativismo”, escreve o seguinte – trata-se, na verdade, da primeira frase do texto: “Dificilmente pode um intelectual encontrar melhor ocupação do que a de destruir um medo”. Eu fui a esse texto obviamente remetido pelo seu uso do termo “anti-antipetismo”, que considero um achado muito precioso. Se não me engano, em um texto de abril de 2018, desde antes de essa hecatombe cristalizar, você já falava algo como: “Olha, a gente tem um certo imperativo político aqui que é lutar contra o antipetismo”. Ou seja, lutar contra esse tipo específico de medo, que não implica necessariamente a afirmação de uma identidade petista – e você, evidentemente, afirma isso de modo insuspeito. Acho que a gente tem que se aperceber de como certa oposição, a Globo e a Lava Jato construíram a imagem do petismo como fonte de todos os males. Moralizaram esse adversário político, transformando-o em um inimigo a ser extirpado.
Estou parafraseando alguns argumentos que você elabora naquele texto e que eu queria que você desenvolvesse um pouco mais. Eu pergunto também porque fico com a impressão de que há partes da esquerda com muita dificuldade de transitar nesse registro. Por exemplo, o deputado Marcelo Freixo concedeu uma entrevista outro dia, em que afirmava: “a gente tem que tirar o ‘Lula Livre’ do primeiro plano” [Revista Época, 12/11/2018]. Ele falava de um ponto de vista mais pragmático, estratégico. Mas ainda assim pareceu-me um erro a afirmação do Freixo, porque a prisão do Lula é muito central para todo o processo político que está acontecendo no país e, do ponto de vista de uma grande aliança de esquerda, se se pretende incorporar o petismo nessa aliança, por mais difuso que isso seja, tirar o Lula de cena ou aceitar passivamente que ele talvez já tenha sido tirado de cena, parece-me um despropósito…
Luiz Eduardo Soares: Eu vou retomar essa conversa com o Marcelo citando aqui a nossa conversa, minha e dele, sobre essa entrevista dele. Olha aqui o que eu disse – porque eu disse a mesma coisa que você.
Luiz Eduardo Soares: Eu disse assim: “Eu achei excelente, mas talvez coubesse dizer que continuamos fiéis ao ‘Lula Livre’”. Enfim, os jornalistas colocaram no título da entrevista: “A pauta não pode mais ser o Lula Livre”. O que eu acho é que é possível e necessário que esta continue sendo uma das pautas, mas que ela não seja um imperativo para todos os integrantes de uma frente. Na frente é preciso haver liberdade para agir com distintos segmentos da frente, em pautas próprias, senão nunca vai conseguir ser formada uma frente efetiva. Há setores liberais que ficaram contra Bolsonaro e que não são favoráveis ao “Lula Livre”. Então tudo bem. Eles participam dessa frente e na outra luta nós continuamos, seguimos.
Mas o “anti-antipetismo” é fundamental. Eu tenho esse texto de alguns meses atrás, e eu tinha escrito sobre isso já logo depois do impeachment, por ali. Havia essa distinção, PT e anti-PT, e eu, mesmo sendo muito crítico do PT, fiquei completamente contra o impeachment. Foi quando eu rompi com a Rede, com a Marina. Eu disse: “Olha, uma coisa é ser crítico ao PT e outra coisa é embarcar nessa canoa furada do antipetismo”. O que está em jogo não é a crítica ao que o PT tenha feito de errado, segundo a nossa avaliação. O que está em jogo é a construção artificial de um monstrengo que passa a ser definido como fonte de todos os males do Brasil e o PT é visto não só como o que monopoliza a corrupção, mas também como fonte de tudo que é negativo: as crises todas, o desemprego, etc. Isso é inaceitável. Como é que isso se produz? Eu trabalhei mais isso em um texto que é um dos capítulos desse livro inédito. O capítulo se chama A Justiça e seu duplo, sobre o caso Lula. Eu examino o papel da Globo no impeachment e como ali no impeachment foi se constituindo o antipetismo tal como nós conhecemos hoje, porque antipetismo sempre houve, mas de uma maneira mais, digamos, circunscrita, limitada, tópica.
Por falar em circunscrito, eu lembro aqui – acho interessante – um vídeo que eu recebi de uma moça que trabalhou aqui em casa. Ela mora em Rio das Pedras e mantém conosco relações de amizade. Ela tentou nos convencer a votar em Bolsonaro e nos enviou um vídeo – a mim e à Miriam – que seria definidor, decisivo. “Depois que o senhor assistir a esse vídeo, o senhor não só vai entender porque eu voto no Bolsonaro, mas vai também se convencer de que é necessário votar nele”. É um vídeo de exorcismo. Uma prática usual de expulsão do demônio que se apossaria do corpo de um fiel. E é muito interessante, porque parece teatro infantil. A moça, que é objeto, suporte, da entidade que será exorcizada, usa um tom de voz tipo de teatro infantil. Uma cena muito grotesca e muito simplória, muito artificial. No entanto, pelo visto funciona, porque produziu esse efeito que chegou a nós. O pastor dizia:
— “Você é o demônio!”
— “Sim, sou o demônio”
— “E as eleições…”.
E aí o demônio:
— “Não…”.
— “Você tem medo de quê? De quem você tem medo?”
— “Daquele homem! Daquele homem!”
— “Mas, que homem?”
Ela não diz que homem.
— “Não. Aquele homem vai me expulsar do Brasil. Não pode ser aquele homem.”
— “Mas, que homem? Então quem você quer que seja eleito?”
— “O barbudo que está preso e o grupo do barbudo que está preso, porque eles ganhando eu ganho também. Eu vou tomar esse país. Eu vou conquistar esse país com a vitória do barbudo que está preso e de seu grupo”.
— “Então você é contra o outro?”
— “Não. Não fale o nome dele”
— “Você é contra Bolsonaro?”
— “Não. Não fale o nome dele. Ele vai me expulsar desse país”.
Então essa cena (que funciona, ainda que para uma audiência limitada, mas funciona) é muito didática, porque nos mostra a operação simbólica do antipetismo que basicamente é a circunscrição do mal, porque é assim que funciona a definição da ovelha sacrificial, chamada “bode expiatório”. Os estudos mais clássicos mostram exatamente que funciona sempre assim. Você concentra em um objeto, ou em um animal, ou em uma pessoa, todos os indicadores do mal e depois imola, destrói esse concentrado do mal e assim dele se livra. Nós temos uma operação simbólica análoga. É muito mais fácil do que contemplar uma diversidade de problemas, de riscos, de malefícios, de vícios que se distribuem, que se difundem, que são identificáveis simplesmente, que não se aglutinam todos no mesmo espaço, no mesmo polo. É um mundo muito mais desafiador. Agora, se você pode estabelecer essa dicotomia entre bem e mal, isolando o mal, para isso é necessário identificá-lo. Tudo fica muito mais simples. Muito mais fácil. Então, há o processo do impeachment em nome da luta contra a corrupção. Você entroniza o comitê central do crime organizado no Brasil. É absolutamente chocante. Mas, como é que isso se dá?
Aquelas manifestações de massa de 2015 – para tratar delas, eu acho que seria impróprio operar com as velhas categorias da manipulação da grande mídia. Empregar esse termo significaria desqualificar o protagonismo real da cidadania, dos indivíduos ali envolvidos, reduzidos em sua idade mental. É uma coisa que a gente aprendeu e não deve fazer. Por outro lado, também seria absurdo não considerar o papel decisivo da Globo, da Globo News. Eu me lembro da Globo News, acompanhei de perto. Entra um repórter: “Estou aqui na cidade de “sei lá onde” no interior do estado de Santa Catarina e estiveram aqui na praça até pouco tempo mais de 17 pessoas”. Não estavam mais, “mas estiveram, eu garanto que vi”. Corta; outro no interior do Paraná. Algumas pessoas gritando. Umas dez pessoas gritando. “Estão aqui se manifestando também…”. Era uma coisa inacreditável. Era uma convocação todo o tempo para aquela agenda, acompanhando o dia inteiro, e mesmo que não houvesse notícia, mesmo que não houvesse ninguém na praça, a praça aparecia como um palco do que fora, do que viria a ser. Era uma coisa inacreditável. E na Avenida Paulista você tem de fato um milhão de pessoas, ou o que seja, uma coisa monstruosa, extraordinária, de grande impacto, e essas pessoas se veem assim mesmas ali atuando no sentido da metalinguagem, atuando como protagonistas. Mas elas também se veem na telinha do celular como personagens em um roteiro pré-definido, coreografia pronta, cenografia do pato já encenado, com trilha sonora das panelas. Há toda uma narrativa que as inscreve, as inclui. Então, ela se vê, vê o seu reflexo. “Meu protagonismo está sendo reconhecido”. E ao mesmo tempo, ela vê a instrução para funcionar como personagem ali descrito. É um processo especular em que você tem uma extraordinária complexidade na construção desse protagonismo, que é esvaziado e que ao mesmo tempo é preenchido em um processo circular. Portanto, não dá para unilateralmente dizer: “Manipulei um milhão de pessoas e pus na rua”; mas tampouco dá para dizer: “um milhão de pessoas foram as ruas espontaneamente”.
Esse protagonismo vivido metalinguisticamente ganha um sentido, que é esse sentido do imaginário coletivo que vai sendo construído, que vai sendo operado pela Central Globo de Produções. É um roteiro. É uma novela que está sendo escrita em parceria com o protagonismo do cidadão. É muito curiosa essa sobreposição, esse entrecruzamento. Ali se derruba a presidente, porque, é claro, a gente contou com a incompetência da Dilma em evitar… O seu governo é um desastre. Ela chama Levy, traiu todos os seus compromissos no dia seguinte, rompe com as suas bases e ao mesmo tempo não dá o passo necessário para cooptar as elites, porque se ela quisesse efetivamente fazer isso, ela chamaria o Meirelles e não o Levy, não é? Ela não foi capaz de operar esse pacto alternativo para preservar o seu governo. Não estou defendendo que fizesse isso; mas se era esse o movimento, não seria Levy, seria Meirelles e não seria ambíguo, seria pleno. E aí chama o Temer para conduzir a política. Enfim… Uma série de desastres, uma série de equívocos, além da depreciação das commodities, além de todos os outros problemas que a gente sabe que existiram. O fato é que foi se constituindo uma situação farsesca em que emergiu um “partido da toga” (Werneck Vianna escreveu um belo texto sobre as togas e os tenentes, sobre um novo tenentismo da toga). A toga passa, enfim, a se transformar em uma variável significativa independente que redefine o quadro político.
Eu acho que compreender que houve essa criação, uma criação artificial, visando a implementação de uma agenda neoliberal selvagem, é absolutamente crucial. Derruba-se a presidente com um propósito de implementar uma agenda neoliberal de devastação de direitos e o antipetismo é uma pré-condição para essa operação. Então, quem visualiza criticamente isso é “anti-antipetista” e desmonta essa operação que atribui ao PT a fonte de todos os males.
Pedro Lima: É curioso que nessa cenografia que você está descrevendo, dos atos de 2015 e 2016 pelo impeachment, há ali um coadjuvante indesejado, que se expressava naquelas faixas em favor de uma intervenção militar. Os repórteres da GloboNews sempre arrumavam um jeito ou de não mostrar, ou exibiam sob a ressalva de que “há uma minoria aqui muito minoritária”… Eles estavam ali. Acho que nós da esquerda também subestimamos um pouco aquela presença. Era uma presença minoritária, de fato. Não dá para dizer que um milhão de pessoas (ou quantas fossem) na Avenida Paulista eram a favor. Mas estas estavam ali, e faziam barulho…
Luiz Eduardo Soares: E não eram expulsos pelos outros…
Pedro Lima: Não eram expulsos. Exatamente.
Jorge Chaloub: Acho que já conversamos um bom tempo, mas para uma última questão, que vejo vinculada a isso: essa crença que nós e outros colegas tivemos e que se vincularia a uma outra. Uma certa crença de que alguns meios de dominação típicos da ditadura militar eram meios que estavam em parte relegados ao passado. Um colega meu de departamento, o Gilberto Felisberto Vasconcellos relançou a tese dele, sobre o integralismo. O que me marcou é que a tese teve um prefácio do Florestan, que diz algo nesse sentido: “Olha, o trabalho do Gilberto se detém a algo muito interessante, mas essas questões são questões do passado. A nossa sociedade se modernizou com a ditadura e o integralismo é um dos resquícios do passado”.”.
Uma chave muito central é o discurso da segurança pública, que está articulado a outra questão dos silêncios da esquerda. A tese de um amigo nosso, Pedro Benetti, remonta à construção de um discurso punitivista. Quando trata da Comissão da Constituinte, ele mostra, por exemplo, como José Genoíno, representante do PT, claramente não toma aquele tema como tão relevante e estratégico para a Constituição. Mas quando eu leio o Florestan falando isso, penso: “Olha, isso era uma crença que me parece ser algo relativamente generalizada na esquerda da época, de que o tema da segurança pública seria resolvido através da questão da economia, reorganizando a sociedade.
Luiz Eduardo Soares: Sim, claro. Esse é um outro aspecto. Eu falei da demanda por ordem e passei pela segurança dizendo que se tratava ali de um sintoma, de uma subquestão. Estou convencido disso. O que está em questão na eleição de Bolsonaro não é tanto a solução imediata da problemática da violência, da segurança pública. É mais do que isso. É uma ancoragem mais profunda do que estava desestabilizado, que ameaçava ruir: os padrões de referência, etc. Acho isso mais profundo, mais importante. O que não significa que a violência e a criminalidade não sejam muito importantes nesse momento para Bolsonaro e para sua eleição, nesse contexto mais amplo.
Se antes de um idealizado mundo sem Estado nós temos um mundo com Estado, em havendo o Estado há leis, justiça e, portanto, enforcement. Portanto, polícia. Como é que nós podemos passar ao largo dessa questão? Como é que nós podemos não disputar as políticas relativas à construção dessa institucionalidade e de seu funcionamento, se nós nos ocupamos de todos os outros aspectos que estão associados ao Estado, à presença do Estado e à natureza do Estado? Como é possível negligenciar a dimensão repressiva do Estado – supostamente monopolista da violência? Como é possível passar ao largo disso? Falar disso é ser conservador? Por quê? A não ser que você diga: “Não. Nós estamos na iminência de fazer a revolução. Já estamos na iminência da sociedade sem Estado e não estamos preocupados com resíduos desse Estado. Estamos já em outra dimensão”. Não sendo este o caso, por quê? E nos calando, nós permitimos que a única voz enunciada seja da direita e que a direita continue mandando e ditando as normas e conduzindo a política nessa área, que é o que acontece. E nós lavamos as mãos. É inacreditável que seja assim.
Foi interessante você citar o Genoíno, porque, de fato, na Constituinte, todos os integrantes que dão seus testemunhos nos lembram de que havia uma correlação de forças específica e que nós não podemos levar ao pé da letra o que se dizia ali. Todos sabiam que essa é uma área muito sensível aos militares. “Vamos deixar para lá”. Esse é um dos aspectos muito importante. Mas não explica tudo, porque simultaneamente poucos dispunham de alternativas ou visualizavam alternativas, julgavam isso interessante, como o Bicudo, o Fábio Konder Comparato, o Paulo Sérgio Pinheiro. Havia alguns que já se pronunciavam sobre isso, que consideravam relevante, mas, de fato, a esquerda não se debruçara sobre isso, não considerava relevante e pensava essa problemática toda como epifenomênica: “Vamos tratar da economia, das grandes questões da sociedade, o resto se ajeita. Isso se ajeita, se ajusta. Isso é reflexo e tudo mais. Então não vamos tratar disso”. Por mais que seja verdade, que haja um pacto extraordinariamente importante entre estruturas econômico-sociais sobre o que ocorre no comportamento no que diz respeito à violência; isso, entretanto, não significa que não haja alguma autonomia relativa desse nível, como acontece em todas as áreas da sociedade, porque os processos se desgarraram das suas origens, de seus condicionamentos. Assumem características próprias, desdobram-se com vigor, com dinamismos próprios, e acabam atuando sobre os próprios fatores condicionantes.
Mas Genoino é um personagem interessante, porque em 2002 ele era candidato ao governo de São Paulo e nós tivemos uma última reunião. Acho que foi a última vez que eu discuti pessoalmente com Genoino. Nunca mais. Ele apresentava lá o seu programa de governo, os seus esboços, e eu e alguns companheiros criticávamos: “Genoino, se for para ir por aí, o Maluf já ganhou a eleição, porque ele é muito melhor do que você para botar a Rota na rua. Se o discurso é esse, se se trata dessa política, quem pode fazê-la é quem entende dela e quem já deu demonstrações de que sabe conduzi-la, é o Maluf. Nós já perdermos se você adotar esse discurso, esse viés. Se for competir com ele no rigor da Lei e Ordem, nós estamos roubados. Já foi. Já perdeu. Não é esse o caminho. Também não é o de abandonar essa questão. Não é isso que estamos falando”. Mas a incapacidade de perceber que há vida inteligente entre a negligência ou omissão e o discurso de Lei e Ordem, como se isso fosse um deserto, é muito impressionante. Não havia nada que o persuadisse. Ele fez isso e foi derrotado. E, segundo as análises da época, essa foi uma das razões pelas quais ele foi derrotado. Isso aconteceu com ele, mas também com muitos outros personagens. É, enfim, muito lamentável. E continua sendo um “calcanhar de Aquiles”. E é tão insistente, tão reiterado e tão obviamente contrastante com o que a razão sugere, que merece a nossa reflexão, a nossa pesquisa. Há algo aí.
Então, eu escrevi muito sobre isso, formulando as mais diversas hipóteses. O que estaria determinando essa resistência? Temos elementos de todos os tipos, até psicológicos. Claro, saindo da repressão, da ditadura, ninguém queria falar de polícia. Eu me lembro de algum depoimento, quando eu estava começando a estudar isso: “Como é que você pode falar com essas pessoas, lidar com isso?” Então, existe isso, que é compreensível. Segundo, você tem a ideia de Lenin do Estado e a Revolução. Tudo que faz parte do Estado é instrumento de dominação de classe. Então não há reforma possível deste Estado de classe. Você só pode destruí-lo. Mas isso perde muita força, porque se torna irreal na prática política. Tudo passa a ser objeto de disputa. Nós estamos em um universo muito mais, digamos, gramsciano do que leninista. Mas isso ainda perdurou por muito tempo. Ainda existe.
Há elementos que vem mais de uma ideologia moral, com raiz religiosa. “Os pobres são os que perpetram transgressões ou crimes, eles merecem o nosso perdão e nós não podemos endossar uma perspectiva de críticas a esse comportamento e muito menos de repressão, porque tal violência não é senão uma transgressão a uma ordem injusta, inaceitável. E como é expressão da luta de classes, se nós adotarmos a perspectiva da repressão, nós estamos no lado oposto ao lado justo”.
Isso está roteirizado de uma maneira vulgar, mas real, porque eu ouvi discurso desse tipo por muitos anos, que dizia o seguinte: “Quando derem vez ao morro, toda cidade vai cantar”. A ideia de que o morro vai descer e esses que estão em armas são nossos irmãos, companheiros que farão a revolução, mas neste momento estão se dedicando ao tráfico de drogas para acumular forças… “Mas eles virão. Eles não são empreendedores capitalistas com relações selvagens ali, buscando lucro, vantagem. Não. Eles são revolucionários em potencial”. Já ouvi isso. E por aí vai. Você tem a ideia de que qualquer compromisso com repressão é necessariamente contenção da liberdade. É curioso, porque quando a gente pensa em termos de garantias de direitos (que é a perspectiva até liberal, mas do Estado democrático de direito também, que eu acho que a esquerda deve encampar), a repressão é repressão à transgressão dos direitos, à violação dos direitos. Então a criança vai ser violada, e ninguém criticaria uma ação de contenção à ação desse violador. Não seria sua liberdade que estaria sendo ilegitimamente cerceada. Seria um direito e a vida que estariam sendo protegidos, defendidos e, portanto, é curioso que nesse discurso há uma absorção de uma leitura conservadora do que seja a repressão, a repressão como contenção de liberdade e não como contenção de atos de violação a direitos. Enfim, há uma multiplicidade grande de razões pelas quais isso não ingressou no nosso vocabulário, na nossa agenda de fato, ainda que tenha sido tema da origem do pensamento social moderno. A gênese da ordem é a grande questão para formuladores do século XVI, XVII: o problema da guerra, da paz ou da violência, da sociabilidade e dos limites da obediência e desobediência são as questões-chave, porque são questões estruturantes. Essa problemática estava presente ali todo o tempo.