Propostas para o Rio, antes (e contra) a intervenção
O ano começa, no Rio de Janeiro, reproduzindo a história trágica das últimas décadas, em matéria de (in)segurança pública. Sendo o bem superior, a vida deve ser a referência central para diagnósticos e redirecionamentos. Por isso, o homicídio doloso, que atinge sobretudo os jovens negros e os jovens pobres, constitui o maior desafio. Preveni-lo tem de ser a grande prioridade. É necessário também assinalar que dois pontos centrais escapam à autoridade estadual: o modelo policial, definido no artigo 144 da Constituição, e a política criminal, especialmente a que se traduz em nossa irracional e destrutiva lei de drogas. Consequentemente, há limites para o que se pode fazer no âmbito do Estado, o que é dramático, na medida em que nossas polícias e a lei de drogas são partes essenciais do problema. Ocorre aqui o que se passa em todo o país: a polícia que dispõe do maior contingente e que está 24 horas nas ruas (a PM) está proibida de investigar (a tarefa cabe à Polícia Civil). Entretanto, pressionada por todos os lados, ela é instada a “dar resposta”, e a resposta é quase sempre prender (e realizar algumas apreensões). Ora, se a PM é instada a prender mas não pode investigar, só pode prender em flagrante. Quais são os crimes que podem ensejar prisão em flagrante delito? É aí que entra a grande ferramenta: a lei de drogas. A PM joga a rede e recolhe pequenos varejistas das substâncias ilícitas – aqueles que atuam nos territórios vulneráveis, é claro, porque nos condomínios afluentes a polícia só entra com mandado de busca e apreensão, o qual só é expedido mediante justificativa apoiada em investigação. Por isso, aqui e alhures, o subgrupo que mais cresce na população penitenciária é formado por jovens de baixa escolaridade, pobres, na maioria negros, capturados em flagrante, negociando drogas. Acusados de tráfico, cumprem cinco anos de sentença pelo crime hediondo, em regime fechado. Essa barbaridade (injusta, que destrói vidas, criminaliza a pobreza, aprofunda o racismo e contrata violência futura) está em curso, ante a inércia da sociedade, que naturaliza o fenômeno, e graças à cumplicidade do Ministério Público e da Justiça.
Vale sublinhar que segurança pública é matéria multidimensional e requer políticas intersetoriais, e que políticas preventivas são decisivas.
Considerando-se todos os limites, o que fazer?
1) Estabelecer que a prioridade absoluta é a defesa da vida, sobretudo daqueles que têm sido as principais vítimas do verdadeiro genocídio em curso no Rio: os jovens negros e os jovens pobres, moradores dos territórios vulneráveis. Dado que as polícias deveriam prestar importante serviço público, visando à garantia de direitos, elas devem merecer atenção e cuidados, o que se traduziria em mudanças organizacionais, até o limite do que a Constituição autoriza.
2) Se a defesa da vida é a grande prioridade, o controle das armas deve ser uma verdadeira obsessão da política de segurança.
3) É urgente celebrar compromisso com os moradores dos territórios vulneráveis de que o Estado deixará de ser promotor de violência, por meio de suas polícias.
4) Também é urgente celebrar com os policiais o compromisso de promover um salto de qualidade em seu padrão salarial e em suas condições de trabalho, exigindo-se, em contrapartida, fidelidade absoluta aos direitos humanos e às determinações constitucionais, assim como aos protocolos de controle do uso da força, estabelecidos pela ONU. Essa repactuação ajudará a pôr fim à ideologia da guerra, tão difundida nas polícias.
5) É preciso deixar de prender varejistas das substâncias ilícitas e garantir emprego aos egressos. Os recursos economizados com a abdicação dessas prisões financiará as iniciativas positivas.
6) É indispensável descentralizar a PM, modificar o regimento disciplinar (que hoje fere os direitos dos policiais militares), transformar o processo de recrutamento e formação, negociar com vistas ao fim dos batalhões e à criação da entrada única na PM (só na Polícia Civil essa alteração exigiria mudança constitucional). Na Polícia Civil, valorização da central de dados e do potencial do sistema digital das delegacias legais para fortalecer investigações e orientar prevenção. Aproximar as duas polícias, tomando as delegacias legais como núcleos centrais de articulação, em torno das informações, o que requer a valorização do Instituto de Segurança Pública. Ampliação do número das áreas integradas de segurança, de modo a que cada uma seja menor e permita um trabalho mais efetivo de prevenção.
7) Seria necessário valorizar a perícia e integrar sua atuação à das duas polícias. Sabendo-se que pelo menos 55% dos homicídios ocorrem em cerca de 10% das delegacias distritais, e que se concentram em determinados horários, seria possível, com unidades móveis da perícia e o trabalho articulado com as polícias, aumentar as taxas de esclarecimento e prevenir a repetição desses crimes.
8) A separação entre o passado e o futuro tornará viável elevar a taxa de esclarecimento, nas investigações de homicídios. Explico: como há dezenas de milhares de inquéritos abertos, as delegacias não têm meios de enfrentar os desafios do dia a dia, muito menos de prevenir futuros crimes. Portanto, é indispensável designar um percentual de policiais para, com peritos, dedicarem-se a investigar todos os novos crimes letais, a partir do tempo zero.
9) A segurança privada como segundo emprego informal dos policiais é ilegal, mas amplamente tolerada, porque os governos assim terceirizam o aumento salarial, via complementação clandestina. Disso resultam situações bem intencionadas, mas também todo tipo de perversão, cuja culminância são as milícias. Ė preciso investigá-las e libertar as populações locais que estão sob seu domínio. Na outra ponta, cumpre impedir que policiais trabalhem, ou pior, sejam proprietários, via testas de ferro e laranjas, de empresas de segurança privada. Como cabe à Polícia Federal a fiscalização da segurança privada, essas iniciativas teriam de ser articuladas com a instituição.
10) Devem ser definidas linhas de ação especialmente voltadas para investigar e, sobretudo, prevenir o feminicídio. O mesmo, guardadas suas especificidades, deve se aplicar aos crimes homofóbicos e racistas. Esses objetivos e essas linhas de ação, a par de serem evidentemente transversais, devem ocupar lugar central na concepção da política.
11) O Estado tem de garantir acesso e frequência a todos os adolescentes em escolas de tempo integral no segundo grau.
12) A guerra às drogas tem de ser substituída por um grande esforço do governo, em conjunto com a sociedade, para o investimento em iniciativas culturais dos próprios jovens, nas periferias e favelas.
13) Políticas habitacionais e investimento no saneamento consistem em reconhecimento da dignidade das camadas mais pobres da sociedade. São indispensáveis à pactuação de um futuro governo com as comunidades.
14) Devem ser celebradas alianças com prefeituras, sobretudo da região metropolitana, estimulando a formação de consórcios que viabilizem iniciativas intermunicipais, com a participação do Estado.
Esses pontos, embora insuficientes, são importantes e podem ajudar a definir o caminho a seguir rumo à redução de desigualdades, ao enfrentamento do racismo e à ampliação da participação democrática.
*Antropólogo, cientista politico, escritor, ex-secretário nacional de Segurança Pública